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Estátua do filósofo grego Aristóteles
Estátua do filósofo grego Aristóteles| Foto: BigStock

Diferentemente do liberalismo e do socialismo, esses dois filhos legítimos da modernidade, a tradição política republicana tem raízes históricas bem mais profundas e ramificações robustas. O solo em que se desenvolveu é estável e rico em nutrientes. Há um republicanismo ateniense, um romano, um renascentista... e por aí vai. Falam até em Maquiavel republicano. Não sei; suspendo meus juízos. Não pretendo aquecer uma velha querela da historiografia. E olha que esse ano li duas excelentes biografias do grande filósofo político florentino.

De uns tempos pra cá, interesso-me cada vez mais pelo republicanismo. Meus motivos são relativamente simples: quem aguenta esse papo de “esquerda” e “direita”, “conservadorismo” e “progressismo”, Felipe Neto alçado à porta-voz do mau e do bom-mocismo, cultura de cancelamento...? Nosso debate político não pode pautar meus interesses mais genuínos. Por favor, tenho direito a ter preguiça do cenário atual. Isso pra não falar das políticas identitárias e todo seu arsenal de tolices perigosas.

Para não deixar margens de dúvida, republicanismo tem a ver com uma longa tradição do pensamento político que pode ser rastreada pelo menos até a filosofia prática de Aristóteles a Cícero. Muito mais do que uma forma de pensar e interpretar os eventos políticos, busca-se viver bem em em sociedade segundo as virtudes da inteligência política. Como desenvolver certas virtudes republicanas, ou para simplificar: em que condições políticas tangíveis é possível o exercício da liberdade? Como não estar sujeito à arbitrariedade do poder? Quais as condições da alma para não parecer um cão passivo que abana o rabo ao primeiro a jogar o osso?

Republicanismo não significa exatamente uma forma de governo. Sim, a República Federativa do Brasil é, de fato e de direito, uma forma de Estado contrário à monarquia. Exceto para Bertrand Maria José de Orléans e Bragança, até aí, tudo bem. Contudo, para existir um governo republicano, um conjunto de valores políticos, essencial para a vida em sociedade, precisa ser compartilhado pelos membros da república: os cidadãos — que não se confundem com os membros do governo. Portanto, uma coisa são instituições políticas aí funcionando; outra, mais substantiva e anterior em ordem de razões, refere-se ao valor que sustenta tais instituições.

Aqui, “deitado eternamente em berços esplêndidos”, não estou exatamente interessado na configuração da República Federativa Brasileira. Com trancos e barrancos, uma cruzada de linha aqui outra ali, nossa República vai muito bem obrigado (ironia, ok?). Antes, eu gostaria de entender o próprio espírito ou cultura republicana. Por cultura republicana entendo todo arcabouço teórico e prático a respeito de pelo menos dois eixos políticos: a noção de liberdade como ausência de dominação e uma consistente distinção entre espaço privado e espaço público. Há outros tópicos, mas considero esses dois o “DNA” do republicanismo.

Pegue a tradição liberal clássica e reflita sobre a liberdade individual e a participação dos cidadãos no espaço público. A ordem liberal centraliza suas forças na defesa da soberania do indivíduo e na defesa da chamada liberdade negativa (ausência de coerção). Em suma, indivíduos devem construir seus projetos de vidas segundo seus interesses desde que não interfiram na vida de terceiros. Do ponto de vista político, se quiserem ser cidadãos passivos, recolhidos em si mesmos, submissos à arbitrariedade do poder, não há nada o que se possa fazer. Essa possível passividade implícita no ethos liberal me incomoda. Fora o problema do bem comum, que deixarei para outra ocasião.

Não sei se vocês já assistiram o filme Planeta dos Macacos, a origem (2011), mas há uma cena que demonstra bem o que quero dizer com o esforço de não se sujeitar ao poder. César, o personagem central na trama, foi preso num cativeiro de macacos. Num determinado momento bastante dramático do filme, ele diz “não” para seu algoz humano. Ele não está bajulando-o para conseguir “favores”. Ele não pede desculpas públicas por ter ofendido a sensibilidade do grupo. Ele apenas demonstra que a liberdade exige a virtude de saber dizer “não” na hora que deve ser dito. Nessa quase-fábula, a comunidade política dos macacos nasce justamente desse processo de negação ativa em oposição da bajulação passiva. Da obrigação política de não ser submisso.

Classicamente, a liberdade republicana foi definida como contrária à servidão. Uma pessoa é livre quando não está sob o domínio de outras. Domínio aqui tem muito mais a ver com o problema da sujeição. Essa experiência deve ser refletida no contexto semântico do servilismo, que seria o caso da voluntária da servidão. Na liberdade de não dominação da tradição republicana, não há espaço para sujeição voluntária. Felicidade, para lembrar de Aristóteles, não se reduz à ausência de sofrimento, como acreditam os utilitaristas, porque é a atividade da alma, segundo a virtude perfeita, numa vida completa.

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