Para Drauzio Varella, a Igreja Católica cometeu um crime ao se posicionar contra o uso da camisinha. E os religiosos devem ficar longe de políticas públicas – embora ele conceda, vejam só, o direito de eles falarem desde que não falem demais; parece que vivemos numa sociedade livre em que pessoas como Drauzio devem ser mais livres e mais poderosas que as outras.
Religiosos não podem definir estratégias públicas, mas Drauzio pode imputar crime aos cristãos. Afinal, só pessoas consagradas pela luz da ciência podem determinar, com o braço opressor do Estado, como os outros irão viver. Como médico, Drauzio deve ser excelente. Agora, isso não autoriza o doutor a dar pitaco em matéria de fé e moral para se posicionar como juiz da história e condenar toda sabedoria moral da Igreja.
A fala completa de Drauzio foi a seguinte: ao responder a uma pergunta sobre a política de combate à gravidez na adolescência recentemente adotada pelo governo (e que não tem exatamente a ver com Igreja Católica), ele disse:
“Eu acho que toda vez que a religião interfere em programa de saúde, atrapalha. ‘Ah, mas os religiosos têm direito de se manifestar.’ Lógico que têm direito de manifestar, mas não de definir estratégias. Isso é coisa para os técnicos fazerem. Você lembra que na época, quando começou a epidemia de Aids, o papa da época se posicionou claramente contra o uso da camisinha. Isso é um crime que a Igreja Católica cometeu. Uma doença sexualmente transmissível, uma epidemia mundial, que se transmite por sexo, e que a camisinha realmente protege, você ir contra o uso da camisinha, isso é um crime que você está cometendo. Não tem outro nome.”
Religiosos não podem definir estratégias públicas, mas Drauzio Varella pode imputar crime aos cristãos.
Primeiro, a ideia de que a Igreja Católica condena o uso ou dificulta a distribuição da camisinha é uma mentira. Drauzio não faz ideia do que a Igreja pensa sobre o assunto da sexualidade humana (eu recomendo estudar a Teologia do Corpo de João Paulo II). O jeito que ele coloca é irresponsável sob o ponto de vista do debate público.
A Igreja Católica não condena a camisinha em si, mas defende uma concepção de sexualidade cuja consequência lógica implica a exclusão do uso da camisinha. Isso tem uma dimensão teológico-moral e não meramente sexual. Não se trata de dizer “não use camisinha”, porque a discussão da sexualidade humana para a Igreja não se dá nesse nível instrumental da busca de satisfazer desejos. O problema tem uma dimensão muito mais ampla a respeito do sentido da vida humana como um todo.
A proibição moral da camisinha não caracteriza propriamente um “dogma” ou um pecado; trata-se de uma conclusão lógica, bastante coerente com todo o seu sistema de crenças, de como o patrimônio teológico católico concebe e valoriza a pessoa humana.
- Vouchers e gravidez na adolescência: o poder de escolher (artigo de Anamaria Camargo, publicado em 10 de fevereiro de 2020)
- Abstinência sexual, as críticas infundadas e o que dizem os números (artigo de Raphael Camara, publicado em 21 de janeiro de 2020)
- É preciso confiar nos adolescentes (editorial de 24 de janeiro de 2020)
Num documento importante sobre o tema da sexualidade humana, a Igreja evoca o mais íntimo da pessoa no âmbito da experiência sacramental:
“O amor, que se alimenta e se exprime no encontro do homem e da mulher, é dom de Deus; é, por isso, força positiva, orientada à sua maturação enquanto pessoas; é também uma preciosa reserva para o dom de si que todos, homens e mulheres, são chamados a realizar para a sua própria realização e felicidade, num plano de vida que representa a vocação de todos. O ser humano, com efeito, é chamado ao amor como espírito encarnado, isto é, alma e corpo na unidade da pessoa. O amor humano abarca também o corpo e o corpo exprime também o amor espiritual. A sexualidade, portanto, não é qualquer coisa de puramente biológico, mas refere-se antes ao núcleo íntimo da pessoa.” (os destaques são meus)
Diferentemente da moral secular hedonista-utilitarista, a teologia moral católica não reduz o sexo ao exercício do prazer egoísta, da satisfação do corpo pelo corpo, da maximização de bem-estar. A felicidade envolve também a transcendência da pessoa humana em sua unidade substancial como corpo-alma e não só na sua utilidade ou redução do ser humano como corpo. Pois a sexualidade é “dom de si que todos são chamados a realizar para a sua própria realização e felicidade, num plano de vida”.
A Igreja defende uma coisa muito simples: todo homem e toda mulher devem entregar-se sexualmente com base no reconhecimento profundo e mútuo de que são livres e de que se reconhecem não como um meio para satisfação dos prazeres ou para o exercício de um poder. A pessoa do outro nunca pode ser reduzida a um mero objeto sexual, mas o próprio fim pelo qual se dá a realização humana. Em suma, “o uso da sexualidade como doação física tem a sua verdade e atinge o seu pleno significado quando é expressão da doação pessoal do homem e da mulher até à morte”. Trata-se, portanto, de um sacramento.
A pessoa do outro nunca pode ser reduzida a um mero objeto sexual, mas o próprio fim pelo qual se dá a realização humana
Nesse caso, a camisinha é excluída porque instrumentaliza e rebaixa o ser humano ao corpo. Não é máxima política, mas corolário de um arcabouço teológico moral que não reduz o ser humano a um pedaço de carne ambulante.
Agora, é cristão quem quer ser. A Igreja Católica não obriga ninguém a ser cristão, apenas diz que para ser “salvo” (teologicamente falando) deve-se prezar pelo reconhecimento de que a vida humana é o mais radical de todos os valores, e cujo fundamento antropológico último não é outro a não ser a noção de Imago Dei.
Drauzio Varella é médico e deve ser respeitado como médico. No entanto, quando fala de moral, já não fala mais como médico, fala como demagogo progressista; e, quando fala de moral religiosa, não passa de um palpiteiro preconceituoso e um completo ignorante no assunto.
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