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O crítico literário George Steiner
O crítico literário George Steiner, falecido em 3 de fevereiro de 2020.| Foto: Bertrand Guay/AFP

Quando eu entro em sala de aula para dar início ao ano letivo da minha disciplina, geralmente eu começo minhas aulas com uma provocação filosófica bem kierkegaardiana: “se você não é capaz de ficar sozinho, dificilmente você entenderá filosofia”. Dou aulas para adolescentes que já não sabem mais viver sem conexão de internet. Em outras palavras: já não sabem suportar o peso da solidão. Nunca foi tão fácil resolver o tédio. Hoje, o tempo todo se está conectado fazendo alguma coisa, enquanto o silêncio interior da solidão se tornou a mais pura expressão do horror.

Certa vez li em George Steiner que “a meta de toda educação consiste em não ter medo de ficar sentado em um quarto silencioso”. Concordo tanto com isso e acho que a imagem mais poderosa do inferno é ter de viver para sempre com o rosto desfigurado em meio à multidão fazendo alguma coisa – não importa o quê.

Não que o inferno seja os outros. Não me refiro a “outros” no sentido de uma experiência concreta de alteridade, um rosto bem delimitado de alguém diante do meu. Sartre estava errado nesse particular ao tentar subverter a compaixão cristã do amor incondicional pelo próximo.

O materialismo consiste numa concepção de mundo inaceitável sob o ponto de vista moral

O problema não são os outros, mas o quanto cada um de nós é diluído na multidão sempre fazendo alguma coisa, um negócio. O outro, com o qual compartilho minha vida doméstica e social, meus dramas e angústia – inclusive a minha solidão –, não é a multidão indiferente, mas alguém de carne e osso, com nome e sobrenome. O outro é pura presença. A multidão, pelo contrário, não tem personalidade presente. Não há ninguém na multidão. Não há detalhes. A multidão é o vazio.

Por isso o materialismo consiste numa concepção de mundo inaceitável sob o ponto de vista moral. No materialismo, a singularidade pessoal, que é irredutível em cada um de nós, não faz o menor sentido. Nem sequer faz sentido falar em dignidade. A compaixão pelo outro é a vitória dos fracos. O sofrimento não passa de mudanças que ocorrem na matéria, tão cega quanto uma porta. A morte, um evento qualquer.

Racionalmente, pode até ser uma das mais consistentes e poderosas visões de mundo – um sistema filosófico que causaria inveja a Hegel: nós, humanos, não passamos de um pedaço de matéria diluído na multidão material do universo. Fim. Eis o primeiro passo para tomar consciência a respeito do peso dos pesos, para lembrar de uma famosa expressão de Nietzsche.

George Steiner, num dos mais belos textos que já li sobre Alexander Soljenítsin, diz que o autor de Arquipélago Gulag não tinha grande apreço pela razão, sobretudo “quando brota do ‘intelectual’, do homem que faz da imparcialidade seu ganha-pão mais ou menos mundano”. Segundo Steiner, “diante do desumano, muitas vezes a razão é um agente fraco, até risível. Também pode ser levemente presunçosa, e Soljenítsin troça impiedoso da ‘objetividade’ fácil daqueles que argumentam, que tentam ser razoáveis sem ter sido expostos a um milímetro sequer do arquipélago da dor”.

Então, nesse sentido, e daí que o materialismo se apresente como a mais poderosa e consistente visão de mundo? Se for assim, eu também prefiro dar de ombros à razão.

Ora, com o advento do smartphone conectado à internet penso que já não sabemos mais ficar sozinhos e precisamos da multidão como peixe precisa da água. Para gente da minha geração, que teve o privilégio de viver a adolescência sem internet, sem smartphone e sem redes sociais, o tédio imposto pela solidão não era exatamente um problema. Mas falo por mim, obviamente. Pelo menos no quesito “saber lidar com a solidão”, acho que éramos melhores (desculpem a generalização, estou pensando a partir da minha experiência).

Não há mais adolescentes sozinhos, sem fazer nada, entediados. Eles estão conectados e distraídos, estão compartilhando, curtindo, argumentando, comentando, jogando

Hoje, para onde quer que você olhe, encontrará grupos de adolescentes com um celular na mão. Aparentemente, cada um desses adolescentes está vivendo no seu mundinho particular, sozinho. Mas essa solidão é só aparente. Não há mais adolescentes sozinhos, sem fazer nada, entediados. Eles estão conectados e distraídos, estão compartilhando, curtindo, argumentando, comentando, jogando, enfim, fazendo qualquer coisa numa multidão de gente fazendo a mesma coisa.

Para encerrar, vou recorrer mais uma vez a George Steiner, esse mestre da solidão: “O respingo do ruído e a impossibilidade de reencontrar os espaços designados para o silêncio, seja na vida privada, na vida pública ou na educação das crianças, me parecem ser a mais grave poluição que a cultura moderna conhece. Para muitos seres humanos a noite se tornou tão ruidosa quanto o dia, um quarto silencioso, um inferno e uma tortura. Uma subversão total vai acontecer em nossa cultura”. Nunca um diagnóstico foi terrivelmente tão preciso.

A morte de Steiner, em 3 de fevereiro, me faz pensar em todas essas coisas. Como diz Plotino: ele foi só em direção ao só. Espero que tenha encontrado seu repouso.

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