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Édipo cega seus próprios olhos e encomenda seus filhos aos deuses, por Bénigne Gagneraux.
Édipo cega seus próprios olhos e encomenda seus filhos aos deuses, por Bénigne Gagneraux.| Foto: Erik Cornelius/Nationalmuseum/Wikimedia Commons

Todo mundo já ouvi falar da triste história Édipo Rei. Embora seja uma história bem antiga, lá da época dos gregos com suas tragédias, filosofias e democracias, acredito que ela possa nos ensinar sobre certos comportamentos em redes sociais. Fico desnorteado e com a sensação de que, com a vida vivida cada vez mais em redes, algo de muito esquisito impregna o ar.

Ainda não sei bem descrever o que é, confesso minhas limitações. Apenas suspeito de que estamos no meio de uma epidemia contagiosa. Não uma epidemia de doença como as outras, mas uma epidemia social de animosidade cujos sintomas se manifestam em linchamentos virtuais e desejos de destruir as reputações públicas e privadas do primeiro inimigo identificado.

Hoje, no lugar das ruínas de Acrópole, edificamos um eficiente sistema de algoritmos capaz de produzir poderoso efeito catártico a partir de likes, visualizações, compartilhamentos em massa e hashtags, que medem a “crise” do momento. Com essa arquitetura sofisticada, tornou-se fácil e atraente para o “homem algoritmo” identificar, julgar, condenar e punir culpados. Culpados exatamente do que não faz muita diferença, desde que haja, o tempo todo, crises e culpados em um ciclo constante de perseguição e violência.

Nada como a tecnologia para garantir que qualquer assinante de um pacote barato de internet tenha na palma da mão o poder de ser ao mesmo tempo polícia, tribunal, juiz e algoz de quem supostamente coloca em risco a causa sagrada do “povo”.

A crise que assolava o reino de Tebas não foi a peste, mas a epidemia de animosidade que nasce do permanente desejo de caçar e destruir culpados de “pestes”

Voltando aos gregos. Quando Édipo descobriu que seus antigos atos teriam sido a causa de uma peste responsável por desgraçar o reino de Tebas, sua pavorosa atitude foi perfurar os próprios olhos e se exilar para sempre da cidade que um dia reinou. Havia ali o desejo sincero e a esperança genuína de que a catástrofe fosse superada. De uma hora para outra, após um rápido episódio de investigação para caçar culpados, sobretudo a animosidade com seu antagonista, o adivinho e cego Tirésias, Édipo passou de poderoso, astuto e amado rei ao mais miserável dos homens.

Édipo, ao saber do que foi capaz, pagou a promessa que fez à multidão de que puniria o responsável pela epidemia que assolava seu reino. Pagou. E o reino de Tebas encontrou a paz. Não preciso entrar em detalhes da história, todos já ouviram falar de sua abominável relação com a mãe, Jocasta, e o assassinato do pai, Laio, antigo rei de Tebas; e que ninguém ouse esquecer o trágico destino de Édipo, pois ele serve de lição na medida em que revela o próprio destino dos homens.

Contudo, se Édipo decifrou a Esfinge; nós somos devorados pela Internet. Aqui a violência não cessa. Nessa atmosfera sufocante das redes, intoxicada por máscaras, memes e vaidades, pela exposição pública de cada detalhe da vida íntima, pela confusão entre o público e o privado, pelos registros dos hábitos e pelas trilhas virtuais deixadas em cada clique e curtida, todo algoz se tornou também uma vítima em potencial — de si mesmo e dos outros. Dia após dia. Ninguém escapa do destino e de um endereço de IP fiscalizando todos e tudo.

Se olharmos a tragédia de Édipo com o distanciamento correto, é impossível aceitar que exista qualquer relação entre esposar a mãe, matar o pai e ser o responsável por uma epidemia de peste. Em resumo a partir da interpretação que o antropólogo Réne Girard deu ao mito, a crise que assolava o reino de Tebas não foi a peste, mas a epidemia de animosidade que nasce do permanente desejo de caçar e destruir culpados de “pestes”. Entre nós, brasileiros, a política nunca se alimentou tanto dessa necessidade de criar, sempre, um inimigo responsável pela nossa miséria.

Por existir uma crise social permanente causada pelos “inimigos”, é preciso punir alguém, escorraçá-lo em praça pública, bani-lo para sempre do convívio. Se uma “epidemia” ameaça à ordem pública, o responsável tem de ser imediatamente identificado e punido, sua sorte deve ser escancarada, sua vida colocada à luz diante de todos os juízes e algozes. Nada como saciar a sede do coro.

A história de Édipo deu origem e significado a todos os atos de linchamentos públicos. Porém, naquele contexto mítico dos antigos gregos, as crises eram superadas pela violência dos sacrifícios, pela vítima substituta, ou seja, pelo bode-expiatório. Nós, ao contrário, herdamos o método da violência sem conseguir superar crises, porque elas nascem todos os dias, a animosidade surge como contágio constante. Dia após dia. As redes sociais se tornaram uma máquina de criar crises e bodes-expiatórios. Resultado: a violência é interminável.

Para o bem ou para o mal, a multidão de “homens algoritmos”, esses pequenos deuses sem expectativas, faz da vingança a insaciável sede de justiça. No caso, a única coisa que importa é que o culpado pela crise de hoje seja, hoje mesmo, publicamente destruído. Amanhã será um novo dia, com novas crises e novos culpados...

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