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O presidente Jair Bolsonaro, acompanhado do ministro Sérgio Moro, na comemoração do 7 de setembro.
O presidente Jair Bolsonaro, acompanhado do ministro Sérgio Moro, na comemoração do 7 de setembro.| Foto: Marcos Corrêa/PR

Um dos maiores erros políticos que já cometi foi votar e, sobretudo, declarar publicamente meu voto em Jair Bolsonaro. Em minha defesa, alego que fiz isso de última hora, no calor eleitoral e sem engajamento prévio. Mas fiz. Flertei com o projeto e apertei o 17. Como se não bastasse, justifiquei em texto no Facebook, com aquele tom de afetada superioridade moral antipetista. Um dia antes das eleições, meu exibicionismo foi justificado assim:

MEU VOTO: Ciro tomou a decisão correta de não apoiar Haddad. Pode ser uma opção consistente ao vácuo que será deixado pelo PT na esquerda (considerando, claro, que Bolsonaro ganhe). Estranho mesmo é o liberal que decidiu, de última hora, votar no Haddad, porque o antipetismo teria escolhido um líder complicado. Vamos considerar o líder do PT? Lula escolheu um poste para governar da cadeia. Haddad não é líder, mas um fantoche inexpressível. Se o Haddad tivesse algum resquício de liderança política e vergonha na cara, teria sido o primeiro a romper com o PT criminoso. Portanto, o voto no Haddad é voto no PT, e votar no PT é corroborar com o que a quadrilha fez para o país nos últimos anos. PT não cometeu ‘erros’, PT cometeu crimes. Teve a oportunidade de governar o país e jogou o país no lixo. Tudo em nome da ganância, da intolerância e do enriquecimento próprio. Tudo em nome do poder e de sua manutenção. Quem vota no PT não é moralmente superior por combater a ameaça do fascismo. Essa narrativa da superioridade moral, como se a existência estivesse em jogo caso Bolsonaro ganhe, é, por definição, antipolítica. Narrativa mítica das mais estúpidas, que vale para bolsonaristas fanáticos quando sentem ‘medo do comunismo’. Na verdade, quem vota no PT está entregando o país ao mesmo grupelho que sempre se vendeu como bastião da moralidade, mas nunca deixou de prestar culto aos piores facínoras, não teve coragem de romper com ditaduras e ditadores. Votar no PT é corroborar com o mesmo projeto criminoso dos últimos anos. É aceitar a narrativa do ‘golpe’. Haddad não mudou o discurso, pelo contrário, ele afirmou taxativamente a versão de que foi tudo ‘golpe’ de fascistas, de que tudo é perseguição. Haddad poderia ter sido o antipetista dentro do PT para demonstrar e resgatar a ideia de que o partido tinha um projeto de país. Fez exatamente o contrário. Foi pedir a bênção do Lula. Tentou mudar as cores para conquistar voto dos incautos. Vende a falsa esperança para o povo. Ontem o liberal que apoiou o ‘golpe’ era o fascista, hoje será parceiro desse mesmo projeto criminoso e populista. Se Haddad, de repente, propusesse uma forma ‘declarada de ditadura com outro nome’ para conter a ameaça fascista representada por Bolsonaro, artistas, intelectuais e simpatizantes o apoiariam sem o menor pudor. Tudo em nome da ‘democracia’. Tudo em nome da salvação. Tudo em nome da superioridade moral. O petismo é uma farsa, uma religião civil que se transformou no ópio dos intelectuais, essa ‘elite das palavras’ dominada pela arrogância. Dito isso, meu voto é ‘não ao PT’.

Nesse contexto, o “não ao PT” significava o “sim a Bolsonaro”. Hoje, arrependo-me profundamente desse voto. As razões são bastante simples: com ele, traí minhas convicções e fui condescendente com o que há de pior no jogo político.

Ao votar em Bolsonaro, fui surdo aos apelos da minha própria consciência política e me comprometi com uma agenda tão desastrosa quanto a do petismo

Afirmo que traí o que sempre acreditei no que diz respeito à ética do voto: vote por convicção de consciência e não por medo. Ao votar em Bolsonaro, votei por medo. Medo do PT. Medo da radicalização da esquerda. Foi, e na altura eu pensava, voto útil. Um cálculo pragmático diante do “mal menor”, a despeito de minhas convicções. Assim, fiz vista grossa para o perfil dos reacionários que chegavam ao poder. Curiosamente, uns dias antes de declarar meu voto em Bolsonaro, escrevi o seguinte sobre o voto útil:

No caso do Brasil, a justificativa mais comum para o voto útil tem a ver com a tentativa de frear a ascensão de um ‘inimigo político’. Muita gente com as quais eu converso pretende votar no candidato Jair Bolsonaro para impedir o retorno do PT. ‘Um espectro ronda a América – o espectro do comunismo’. Ou o contrário: vota-se no PT para impedir a ascensão do extrema-direita populista. Noutras palavras: vota-se não por convicção e afinidade ideológica, mas por puro medo. E se tem uma paixão que não é nada boa para política é justamente o medo. O medo infecta toda vida cultural e política, afrouxa as genuínas convicções e instaura o caos.

Ao votar em Bolsonaro, fui surdo aos apelos da minha própria consciência política e me comprometi com uma agenda tão desastrosa quanto a do petismo. O bolsonarismo, hoje, é tudo o que eu mais abomino em política. O voto mais consistente naquele contexto seria o voto nulo. Ou, para ser ainda mais coerente, nem mesmo ter ido votar.

Para piorar um pouco, em 2016 eu havia publicado A Imaginação Totalitária: os perigos da política como esperança. Para mim, o bolsonarismo é a expressão mais bem acabada desse tipo de imaginação. Tem todos os elementos de crença política missionária. Tudo o que condenei no livro. Por isso, não posso alegar como desculpa que, na época das eleições, eu não tinha as ferramentas intelectuais adequadas para avaliar o fenômeno. Eu sabia muito bem dos riscos, do que estava em jogo. Eu me converti, para mim mesmo, no exemplo vivo daquela fratura entre a vida intelectual e a vida prática.

E cometi esse erro em nome de que, exatamente? Hoje eu sei muito bem.

Parcela considerável dos meus leitores é, em alguma medida, ligada à direita neoconservadora brasileira. Portanto, a outra razão, ainda menos nobre e um tanto mais estúpida, para ter declarado meu voto em Bolsonaro, foi com isso ficar bem entre meus leitores, num temerário cálculo que, hoje tenho certeza, resultou em soma zero. Todos perderam. Eu, porque traí minha consciência. O público, porque teve de mim, naquele momento, menos do que merecia.

Esse é o tipo de erro que, se Deus quiser, só cometi uma vez.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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