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Republicanismo sem República e República sem republicanos
| Foto: Reprodução

Uma das principais confusões do nosso tempo é a confusão entre republicanismo e liberalismo. Embora tenha gente que ainda não desenvolveu um pingo de vergonha de sair por aí tuitando que “o neoliberalismo é um autoritarismo”. De qualquer maneira, vivemos na era de ouro do liberalismo? Chegamos ao fim da história? Sinceramente não sei; tenho cá minhas dúvidas.

O fato é que vivemos em uma república federativa – nome pomposo inscrito na certidão de nascimento do Brasil para descrever a forma política do nosso Estado: “República Federativa do Brasil”. Quem vê pensa...

Agora, só entre nós aqui, caro leitor, independentemente do time de futebol cuja camisa você veste, ou da religião para a qual você paga o santo dízimo: podemos afirmar que somos republicanos? Bem, aí já são outros quinhentos. E por que não é tão simples assim “viver numa república e, ao mesmo tempo, não ser republicano”? Eu suspeito que as ordens liberal e republicana possam ser incompatíveis. Ainda não sei. Lanço a hipótese.

Dom Pedro II amava mais a liberdade que os generais positivistas que o sucederam

Ter instituições republicanas não significa absolutamente nada se não desenvolvermos as tais das virtudes que sustentam uma... república. Sendo assim, por exemplo, não há contradições em ser um monarca com comportamento republicano. Dom Pedro II muitas vezes é lembrado como um imperador republicano. Enquanto – vejam vocês a ironia – o marechal Deodoro da Fonseca tendia mais para a monarquia. Mas não quero polemizar fatos históricos tão caros à formação do nosso imaginário nacional.

Justiça seja feita ao nosso imperador – e ninguém precisa morrer de amores pela monarquia para saber disso –, dom Pedro II amava mais a liberdade que os generais positivistas que o sucederam. Difícil mesmo é chamar Josef Stalin de defensor das liberdades republicanas. Governar a “União das Repúblicas Socialistas Sov­­­­­­­­­­­­­­­iéticas” definitivamente não quer dizer nada. Sim, tem todo tipo de gente insana que acredita ser possível combater a “ordem liberal” com o exemplo soviético. Os reacionários, por sua vez, querem instaurar uma nova cruzada ao som de Da pacem domine, o antigo e belíssimo canto dos Templários.

As palavras aqui enganam. No caso do Brasil império, não vivíamos em uma república. De fato, digo, como forma de governo não era mesmo uma República. Entretanto, alguns monarcas podem muito bem ter cultivado um genuíno apreço ao espírito dos repúblicos. Deixo aqui uma provocação. Nós, por outro lado, vivemos numa república com raros espíritos republicanos.

Em política, os termos arrastam muitas ambiguidades. “República” é um bom exemplo. Nada de querer precisão matemática em ciência política. Ciência política, como dirá Aristóteles, consiste na “ciência das coisas humanas”. Ou seja: permeada por ambiguidades e pela impossibilidade de estabelecer classificações unilaterais. Quem diz que a política pode ser medida com compasso, régua e representada em gráficos e tabelas do Excel não entende nada de política.

Com relação ao conceito de “República”, ele pode ser definido ou como uma forma de administração da coisa pública ou pode ser uma virtude.

Se for uma forma de governo, refere-se não só à boa gestão, como também à forma de constituir os poderes. Sobretudo para dar mais participação ao cidadão, que deve governar direta ou indiretamente segundo os princípios da soberania, da liberdade e da isonomia. Instituições republicanas levam em consideração leis criadas pelos próprios cidadãos. Em uma república, a liberdade deve ser caracterizada como não dominação contra toda forma de sujeição. Nada como estabelecer freios contra o capricho dos poderosos.

As bases antropológicas para a tradição republicana, que depois darão fundamento para a política, são aquelas que pensam o homem como cidadão

Por outro lado, se a república for concebida como virtude, então refere-se à disposição espiritual de se reconhecer como membro de uma comunidade que sabe – tem sabedoria prática para isso – direcionar seus interesses ao “bem comum”.

Historicamente, o republicanismo é anterior ao liberalismo político. Entre gregos, romanos e renascentistas, você encontra, cada um ao seu modo, Aristóteles, Cícero e Maquiavel. Há quem fale até na possibilidade de uma tradição republicana que pode ser sustentada pela filosofia política de Tomás de Aquino. Não sou especialista em Tomas de Aquino, mas sim, a expressão “tomismo republicano” não é contraditória. Não deve ser estranha a filósofos contemporâneos como Jacques Maritain, para dar um exemplo.

Para diferenciar o republicanismo do liberalismo é preciso fazer algumas distinções importantes. Todos sabem que o liberalismo concebe o indivíduo como a categoria privilegiada da experiência política. No liberalismo, o indivíduo é soberano. O antagonismo da ordem liberal diz respeito ao grupo que defende que soberano é o coletivo. Republicanismo não tem nada a ver com essa “polarização” – para usar o termo da moda. A tradição republicana não pensa à luz dos termos “indivíduo” ou “coletivo”. E essa não é a maior batalha civilizacional.

As bases antropológicas para a tradição republicana, que depois darão fundamento para a política, são aquelas que pensam o homem como cidadão. Vale lembrar aqui do Aristóteles: o homem, por natureza, é um ser político. Isto é, que realiza sua vida na polis.

Os republicanos fazem referência ao Bem comum como elemento primordial do fim político em detrimento da satisfação dos desejos individuais. É possível satisfazer os desejos individuais, mas em casa. Nos limites da comunidade doméstica. Por isso, uma das mais importantes fronteiras preservadas pelos republicanos é aquela que separa a vida privada da vida pública, o bem individual do bem comum. Entre a intimidade da casa e a experiência política há uma barreira intransponível que só os tiranos não têm pudor em ultrapassar.

Para lembrar de Platão, monstruosamente difícil é o exercício que harmoniza a ordem da alma com a ordem da cidade. O que deve ser assunto para próximos textos.

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