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O escritor tcheco Franz Kafka.
O escritor tcheco Franz Kafka.| Foto: Reprodução

Em termos de leituras, confesso que 2019 foi um ano muito produtivo. E eu gostaria de fazer uma retrospectiva de alguns dos melhores livros que li este ano. Para facilitar, vou dividir essa coluna em duas partes. Nesta semana, falarei apenas de alguns livros de ficção que foram mais marcantes; na semana que vem, reservo o espaço para os de não ficção.

Neste ano, meu contato com a literatura se deu basicamente pelo compromisso que tenho com um clube de leituras. Para alegria de todos os envolvidos, foi o segundo ano consecutivo em que conseguimos manter um clube desse tipo aqui na minha cidade não tão pacata, no interior de São Paulo. Portanto, com exceção de obras que li por conta própria, boa parte das melhores coisas de literatura que eu li em 2019 esteve relacionada a esses encontros.

Foi uma experiência fascinante e, ousaria dizer, libertadora organizar e participar desse tipo de evento. Sobretudo para quem não aguenta mais o ambiente tóxico da política brasileira. Com relação a ambientes tóxicos, nada se compara ao prazer de reunir pessoas para conversar sobre literatura. Trata-se, para falar de um sentido muito específico acerca do potencial libertador da arte, de uma opção existencial – e, levando às últimas consequências, espiritual.

Imagine se por um momento você pudesse ouvir a conversa entre Shakespeare, Kafka, Philip Roth, Flannery O’Connor e Machado de Assis?

Na verdade, meus amigos e eu resolvemos criar o clube com pelo menos dois propósitos em mente: conversar sobre as grandes obras da literatura universal e reunir, em carne e osso, pessoas com afinidades para falar da experiência de ler tais obras. Em resumo: sair um pouco do espaço sufocante e saturado do mundo virtual. Desligar por algumas horas o celular e dar espaço aos imortais. Funcionou – embora não dê para lotar uma Kombi, de fato.

Penso que uma das razões para um clube de leitura funcionar é oferecer um eixo temático. Claro que é bacana pegar um livro aleatório e ler ou deixar de ler pelo prazer ou pelo desprezar da leitura. Ler os clássicos motivado por puro prazer literário consiste em uma aventura antropológica das mais significativas. E tudo isso se torna ainda mais enriquecedor quando a gente consegue estabelecer um “diálogo” entre os grandes autores. Imagine se por um momento você pudesse ouvir a conversa entre Shakespeare, Kafka, Philip Roth, Flannery O’Connor e Machado de Assis?

Os leitores desta coluna sabem que não sou um crítico literário. Leio por prazer, assim como não tenho pudor de deixar de ler quando um livro não convence. Leio, assim como deixo de ler, sem crise de consciência. Com relação à literatura, sou um diletante, porém um pouquinho organizado e comprometido com a capacidade de a experiência literária despertar minha consciência para os dramas da condição humana.

Sou perturbado pelo problema da liberdade e do mal. Há esperança diante do absurdo da vida humana? Não sei responder. Tenho fé na Graça e misericórdia do Nosso Senhor Jesus Cristo, mas não deixo de consultar os grandes autores para saber o que eles pensam a respeito. Em 2019, o eixo temático das minhas leituras literárias girou em torno deste tema: do absurdo à esperança.

Ler à luz dessa pergunta muda tudo. Então, eu diria que as melhores obras lidas em 2019 foram estas, lidas na seguinte ordem: O processo, de Kafka. Ninguém pode falar em absurdo sem entender o que se passa com o destino de Josef K. Outro livro fundamental para entender a condição do homem é Édipo Rei, de Sófocles – pois não é o homem um enigma para o próprio homem? Dessa vez, resolvi ler Édipo pela perspectiva do antropólogo René Girard, que trata da questão do bode expiatório. Recomendo muito A Violência e o Sagrado, do próprio Girard, e um livro específico sobre a tragédia de Sófocles chamado Édipo Mimético, de March Anspach.

Sou perturbado pelo problema da liberdade e do mal. Em 2019, o eixo temático das minhas leituras literárias girou em torno deste tema: do absurdo à esperança

Ainda no ciclo de obras que colocam em xeque a nossa condição, o livro seguinte foi Homem comum, de Philip Roth. Essa leitura foi seguida de A Invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares. Para minha surpresa, essas duas obras “dialogaram” muito bem entre si. O homem que busca resolver toda sua existência neste mundo está fadado ao fracasso. Depois seguimos com , das Escrituras, e Um homem bom é difícil de encontrar, uma coletânea de contos da escritora americana Flannery O’Connor (Meu Deus, como essa mulher escreve bem! dispensa comentários).

Enfim, dessa lista de obras, eu gostaria de destacar aquelas que mais me tiraram do meu eixo existencial. A primeira é O braço direito, do Otto Lara Resende. Escrita na forma de um diário, essa obra conta a história do zelador, religioso, de um asilo de órfãos em uma cidade ficcional chamada Lagedo, no interior de Minas Gerais. A segunda foi Diário de um pároco de aldeia, de Georges Bernanos. Ela conta a história, relatada também em diário, de um pároco do pequeno vilarejo de Ambricourt, na França. Para fechar este ciclo, reli Miguilim, de Guimarães Rosa, sem dúvida um dos livros mais bonitos de toda a literatura universal.

Todas eles, de forma ou de outra, tratam do problema da graça, da santidade e do amor de Deus. Diante do absurdo, há esperança – e a literatura é dos melhores caminhos para nos conduzir a isso.

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