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Estudantes da USP protestam em favor de cotas raciais na universidade.
Estudantes da USP protestam em favor de cotas raciais na universidade.| Foto:

Considero problemático defender política pública de cotas raciais apelando apenas para estatísticas e evidências “científicas” – coloquei científicas entre aspas porque nem sempre quem fala em nome da ciência está em posse da verdade ou disposto a argumentar racional e cientificamente, embora deseje dar essa impressão e tratar qualquer crítico como ignorante. Como diz um amigo, tem gente que vai da petição de princípio ao ad hominem num piscar de olhos – com um domínio invejável de si para não corar de vergonha.

Não, não basta ciência e muito menos os bons resultados estatísticos para legitimar políticas de ação afirmativa. Na verdade, qualquer política de Estado também deve considerar certos limites deontológicos que restringem seu poder e ação – por exemplo, o princípio de isonomia já bastaria para demostrar que recorrer a planilhas do Excel não legitima o Estado a deter o monopólio do uso da força. Instituições, sobretudo instituições de poder, precisam de algo a mais além do fato de existirem. Esse “algo a mais” tem a ver com a aventura humana pelo reino dos valores.

Ninguém ousaria defender a escravidão simplesmente porque com o trabalho escravo seria possível resolver o problema do desemprego (meu exemplo é meramente hipotético). Hoje, somos contra o trabalho escravo justamente porque consideramos o valor universal da dignidade de todos os seres humanos como membros de uma mesma comunidade moral. A instituição escravidão foi destruída não por causa de “bons ou maus resultados sociais”, mas porque reduzia pessoas a meros utensílios e objetos.

Decisões políticas dependem, antes de tudo, de como um povo concebe a si mesmo enquanto povo e como ele desejaria viver

Se um belo dia cientistas criassem uma máquina capaz de curar todas as doenças no mundo, mas o seu funcionamento dependesse do sacrifício de uma única vida humana, jamais uma máquina dessas deveria ser usada. Não se negocia vidas humanas, mesmo se o sacrifício de única vida trouxesse benefício para um número ilimitado de pessoas. Só em sociedades arcaicas seres humanos eram sacrificados para saciar a sede dos deuses.

Em geral, decisões políticas não se sustentam em dados científicos, pois se sustentam no senso de justiça e dever. Decisões políticas dependem, antes de tudo, de como um povo concebe a si mesmo enquanto povo e como ele desejaria viver. No limite, o poder político transita entre o mundo dos fatos e o mundo do dever ser. As leis declaradas em uma Constituição expressam essa transição.

Como o pluralismo de valores é uma realidade incontornável, a política seria a arte de administrar conflitos. Ou seja, trata-se de uma sabedoria prática, para usar uma definição de Aristóteles, que depende de virtudes como prudência, lealdade e coragem, muito mais do que um economista, do seu escritório com ar condicionado, apresentando dados estatísticos e dizendo “olha só como o mundo é melhor e mais justo segundo esses dados estatísticos”.

Ninguém duvida da relevância de estatísticas e dados científicos. Porém, do ponto de vista político, estatísticas e dados científicos são insuficientes para determinar a decisão política que visa transformar o mundo num lugar melhor e mais justo – exceto para engenheiros sociais e tecnocratas, que dominam a arte de maximizar o bem-estar apelando para “pesquisas científicas mostram que o mundo pode ser melhor se seguirmos dados em planilhas”. Não à toa as teorias racialistas modernas tiveram amplo respaldo em dados científicos (hoje, pseudociência). Ah, e não vamos esquecer que eugenia não foi obra de visigodos barbarizando seus inimigos civilizados, mas o anseio de gente civilizada querendo viver num mundo mais belo e higiênico.

Um dos pressupostos básicos para legitimar a política de cotas raciais é o fato de que esse tipo de ação afirmativa corrigiria uma longa história de injustiças sociais contra minorias, sobretudo a negra. A dívida é histórica, porém o tribunal racial instaurado emana de grupos ideológicos que aparelharam os Estados para impor tais políticas e mandar às favas o princípio de isonomia.

Eu defendo que dívida histórica se pague com o tribunal do tempo. Há uma reserva de racismo no Brasil cuja origem não é difícil de ser rastreada. Contudo, o nosso atual Estado Democrático de Direito e o povo que o constituiu já não são mais os mesmos da época da escravidão e buscaram corrigir essa injustiça na forma “sagrada” da lei. Então, que o tempo cicatrize nossas feridas. Políticas de cotas, por sua vez, reabilitam o racismo no nível institucional, reafirmando o próprio racismo social.

Mas e as injustiças estruturais? Bom, se para você tudo bem corrigir uma injustiça estrutural na sociedade com injustiças circunstanciais que operam, agora, no nível da lei, então cota racial pode fazer algum sentido. A mim não faz nenhum sentido, até porque não se trata de suspender um direito fundamental para corrigir o prejuízo histórico de determinados grupos.

Políticas de cotas reabilitam o racismo num nível que é institucional

Ter uma Constituição Federal fundamentada nos princípios de “cidadania” e “dignidade da pessoa humana”, e que busque “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” pode não ser suficiente para corrigir nossas injustiças históricas e sociais, mas certamente não tem nada a ver com estatísticas e ciência, já que a Constituição não descreve fatos. Mais do que isso, ela aponta para o nosso senso de justiça e dever.

Nosso atual Estado Democrático de Direito expressa o desejo de um povo traduzido na forma da lei. O reino do direito consiste na mais importante declaração de intenções desse povo na medida em que sinaliza o que entende por justiça. Nesse sentido, não importa tanto o que as estatísticas dizem; importa, primeiro, que não aceitaremos discriminar pessoas por raça, sexo, religião etc.

Ora, se uma Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração Étnico-racial discrimina pessoas por raça, um princípio fundamental que legitima a própria existência desse Estado de Direito foi suspenso. A mim, esse mundo que classifica, com o amparo da lei, pessoas segundo uma raça só é aceitável se você é um canalha preconceituoso fantasiado de cientista.

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