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“Visitando os doentes”, obra anônima de 1635
“Visitando os doentes”, obra anônima de 1635| Foto: Metropolitan Museum of Art

Nesta semana, converso com o autor dos livros Sou o Primeiro e o Último: Estudo em teoria mimética e apocalipse e História e Pré-História: as instituições e as ideias em seus fundamentos religiosos (ambos publicados pela É-Realizações). Maurício G. Righi é professor doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP e pesquisador do fenômeno religioso. Essa conversa teve colaboração de Dionisius Amendola, idealizador do projeto Bunker do Dio.

Em seu recém-publicado livro, Sou o Primeiro e o Último (É Realizações), você aborda o apocalipse à luz da teoria mimética de René Girard. Fale um pouco a respeito da relação entre teoria mimética, evangelhos e ciência.

Bom, a teoria mimética é, em sentido estrito, uma teoria científica; seu nível de “cientificidade”, caso usemos esse termo pedante, é particularmente alto, quando comparamo-la com outros conjuntos teóricos advindos das ciências humanas. Um bom número de experimentos recentes, tanto em psicologia comportamental quanto em primatologia, endossa, de modo bem consistente, as teses centrais da teoria mimética, muito embora Girard não tivesse conhecimento desses estudos, e não os tivesse adotado, quando começou a intuir os fundamentos de sua teoria. Na verdade, esses estudos apenas corroboram, nessas áreas, o que o teórico francês intuiu por outros meios. Um exemplo bem ilustrativo. Há poucas semanas, vi, no YouTube, um vídeo com um experimento em primatologia. O resultado do experimento indicava, e de modo um tanto cristalino, como um pequeno grupo de cinco ou seis chimpanzés fixara, em condições laboratoriais, ou seja, não naturais, algo que poderíamos chamar de um proto-tabu, uma interdição em nível primário, mas indiscutivelmente, uma interdição, e o fizera em bases absolutamente mimético-imitativas. Há outros vídeos semelhantes com experimentos com crianças bem pequenas e primatas. Todos dão razão aos pressupostos da teoria mimética.

Agora, a questão é que essa teoria, hoje corroborada em algumas experiências laboratoriais, passou a utilizar, em determinado momento de seu desenvolvimento, os evangelhos como material de análise, e o fez no intuito de confirmar e aprofundar os insights da própria teoria, isto é, começou a se valer dos evangelhos para fazer ciência, obtendo resultados muito bons, o que, obviamente, desagradou a muitos. Não podemos esquecer-nos de que a teoria mimética tem sua origem na literatura, num olhar antropológico sobre a literatura, e os evangelhos são literatura do mais alto nível, embora também sejam bem mais do que isso. Nesses escritos, o humano, suas relações e instituições fundantes recebem interpretações altamente elucidativas, fundadoras de uma nova ética, mas é preciso lê-los com máxima atenção e cuidado. E Girard foi um leitor atento e cuidadoso.

Para René Girard, há uma forte associação entre violência e religião. Como se dá essa associação numa religião como o cristianismo? E, aproveitando o tema, gostaria que comentasse uma possível abordagem girardiana sobre a questão da violência na era das redes sociais.

Girard avalia a religião como o sistema fundador da ordem social, o mecanismo que instaurou a ordem nas comunidades humanas/proto-humanas, um mecanismo capaz de transferir/deslocar e assim controlar a violência interna de um grupo qualquer, contendo essa violência coletiva, tanto no sentido de impedi-la quanto no de abrigá-la. Segundo os pressupostos da teoria mimética, não haveria sociabilidade humana possível, não fosse o surgimento da religião, ou seja, não fosse a presença desse mecanismo fundamental instaurador da ordem social por meio de uma violência maior ardilosa, uma violência que organiza e discrimina, uma violência sacralizada, constituída de ramos expiatórios que elegem vítimas substitutivas. Sim, a religião arcaica contém a violência por meios violentos, e o faz dissipando a violência mimeticamente alastrada de um grupo, uma violência que contagiou todo um grupo, canalizando-a para um ente que – ao absorvê-la em si e pacificar o grupo – torna-se sacralizado, responsável primeiro e último pela pacificação da vida social. Um entre que será divinizado, obviamente.

Todo esse entendimento sobre a função da religião como mecanismo pacificador primeiro das coletividades humanas foi formalmente desenvolvido por Girard em seu terceiro livro, A Violência e o Sagrado, de 1972, um livro difícil, denso e considerado, por muitos, sua obra-prima. Ocorre que a instalação desse sagrado primitivo, um sagrado violento, pelos mais variados agrupamentos humanos, e se trata realmente de um dado universal, uma vez que todas as religiões arcaicas são sacrificiais, nos revela a constituição de um ardil que engana as violências difusas num grupo, deslocando-as para um alvo comum, um bode-expiatório qualquer, o que deu condição para que a humanidade pudesse se constituir e prosperar, viabilizando culturas e civilizações, mas que, igualmente, tornou-a refém dos mais variados holocaustos humanos e animais. A paz que o sacer primitivo estabelece, a paz do sagrado violento, tem um custo altíssimo, absolutamente visível a todo aquele que resolve estudar o Mundo Antigo e Pré-Histórico.

Mas aí entra o cristianismo e, com ele, a revelação definitiva desse mecanismo primeiro da paz social, justamente aquilo que estivera “oculto desde a fundação do mundo”, o que levará, com o tempo, ao enfraquecimento de todos – e digo todos – os sistemas religiosos, inclusive o cristão. É por isso que muitos girardianos dizem que o cristianismo é a religião que sai da religião; de fato, por meio deste as sociedades secularizam-se muito rapidamente, e que vem sendo uma verdade histórica, desde a Paixão à nossa pós-modernidade. Isso não quer dizer que as religiões devam acabar, nada disso, mas que sua única saída será – ao reformarem-se continuamente na Verdade sobre o que estava “oculto desde a fundação do mundo” – descobrindo-se como fé. Seguindo os ensinamentos de Bento XVI, falamos aqui de uma razão ampliada, inspirada, capaz de comunicar-se com o verdadeiro transcendente, e não mais de coalizões sectárias que subsistem à base de expurgos violentos.

A violência que vem das redes sociais virtuais de nossos tempos é nada mais nada menos que a velha violência humana apropriando-se de uma nova ferramenta, um novo “armamento”. Uma vez mais, as pessoas terão de escolher entre edificação e guerra, entre auxílio-mútuo e sabotagem, entre acolhimento e linchamento, entre liberdade e obsessão. As redes sociais virtuais são mero ferramental, o qual poderá ser usado tanto para o bem quanto para o mal, aliás é o que vem ocorrendo todos os dias, creio. Sigamos em frente com ele, mas como ferramenta de aprendizado, auxílio e libertação.

No prefácio do livro, James Alison escreve uma frase interessante: “o verdadeiro humanismo é apocalíptico”. Eu gostaria de saber em que medida essa é uma boa chave de leitura para compreender Sou o Primeiro e o Último.

Essa frase do Alison é realmente muito boa. Penso que ele esteja dando uma dica ao leitor, pelo menos ao leitor culto: está dizendo que o nosso humanismo moderno tem seus fundamentos primeiros no conceito de “Filho do Homem”, um termo tipicamente apocalíptico. O apocalipse, e especialmente o de João, coloca o humano no centro da criação: a finalidade da História é justamente o humano, sua elevação e glorificação junto a Deus: Deus-e-o-Cordeiro glorificados. Ocorre que – e aqui está a ironia proposital de Alison, creio – o nosso entendimento atual de “humanismo”, um entendimento renascentista e sobretudo moderno, é deveras deficiente em relação ao que o apocalipse compreende como Humano. Alison está sugerindo que o humanismo moderno precisa reaprender, com o apocalipse, o significado profundo e abrangente sobre o que seria realmente humanizar-se.

Na terminologia e conceituação típicas dos apocalipses, e incluo aqui Enoque, Daniel e João, somos, em geral, enquanto seres históricos e mundanos, bestas-feras ou animais de abate. Tornar-se genuinamente humano, o que significa divinizar-se, participar da comunidade dos santos eleitos e anjos, ou seja, santificar-se, requer uma conversão profunda, um longo aprendizado, cuja reorientação nos conduz à realidade última e primeira do santo dos santos, à realidade do amor que cria tudo, que repara tudo, à presença de Deus-e-o-Cordeiro, didaticamente apresentada no Apocalipse de João. Para o apocalipse, tornar-se genuinamente humano significa tornar-se como o Filho do Homem, numa espécie de santificação permanente da vida. Em geral, ainda somos bestas-feras, e não exatamente humanos.

Ao pensarmos as instituições que formam as sociedades, em geral, pensamos em termos políticos, econômicos e sociológicos. Em sua abordagem, em especial no livro História e Pré-História: as instituições e as ideias em seus fundamentos religiosos (É Realizações), levanta-se aquilo que “está oculto desde as fundações do mundo”, na expressão de René Girard. Qual a importância – e o avanço – que essa análise pode trazer para a compreensão das sociedades atuais?

Política, economia e sociologia são tributárias de ordenamentos históricos previamente estabelecidos, fixados ao longo de milhares e milhares de cadeias humanas agrupadas. O “agrupamento humano” não é um dado somente natural, como muitos tendem a pensar, algo que está lá como as árvores e as cachoeiras. Ele faz parte da natureza, obviamente, mas, dado o altíssimo mimetismo do sapiens, e falamos de nós, aprendemos muito rapidamente e, igualmente, rivalizamos muito rapidamente, o que implica que não é muito fácil manter, entre nós, ambientes relativamente pacificados, em que a vida social possa se manter e prosperar naturalmente. Precisamos de cultura para sobreviver, o que significa que precisamos de coisas como política, economia e sociedade, entre tantas outras. Ocorre perguntar, penso, qual seria a instituição-chave ou as instituições-chave que nos moldaram enquanto animais culturais.  A proclamação das “coisas ocultas desde a fundação do mundo”, um versículo bíblico, encontrado em Mateus e no Deuteronômio, e que Girard emprega como título para um de seus livros mais importantes, seu best-seller, é justamente a revelação da estrutura que está debaixo das instituições humanas, o que significa, em grande parte, a estrutura que alimenta as ideias humanas. Que estrutura é essa? A estrutura que o apocalipse revela. E que estrutura este revela? A irredutibilidade da expiação amorosa no eterno processo de criação/reparação do universo. A criação nunca cessa.  Criar é doar-se amorosamente para algo ou alguém. Todavia, há, também, a sua contrapartida historicamente consagrada: o próprio Sagrado Violento, montado para a expiação dos outros, sacrificando o outro para o benefício de si, ou seja, oprimindo e destruindo. Trata-se de uma verdade eterna, portanto, absolutamente válida em todos os tempos, incluindo o nosso.

Em seus livros, há um cuidado e carinho para com a “imaginação”, isto é, você não apenas observa de modo científico a história, mas também de forma imaginativa. Isso parece vir de Christopher Dawson. Qual o peso que tem a “imaginação” para a ciência?

Não vou citar a frase surrada de Albert Einstein sobre o assunto, prometo. Imaginar significa “fixar imagens na mente”, subentendendo a própria capacidade de criar. Muitos animais têm excelente raciocínio e, de fato, encontram soluções eficientes para problemas práticos, conforme atestam inúmeros documentários sobre “o mundo animal”. Todavia, aquilo que esses animais carecem, mas que no ser humano abunda, é imaginação, a saber, a capacidade de projetar imagens na mente. Fiquemos no plano da sobrevivência: quanto mais imaginativo for um animal, maior será sua capacidade de antecipar perigos, eventualmente superando-os. Nossa imaginação superior nos tornou senhores e senhoras deste mundo. Fico imaginando as pobres zebras que, não podendo imaginar o perigo, mas somente senti-lo, reagindo quando este se apresenta fisicamente, convivem bem próximo a seus eternos predadores.

Quando você fala da valorização da “imaginação” em meu trabalho investigativo, penso que o mais correto seria atribuir-lhe uma valorização primeira no “imaginário”. O conceito de imaginário já vem sendo valorizado, em trabalhos historiográficos, desde a Escola dos Annales, mas como você bem observou, não é exatamente dessa corrente historiográfica que retiro minhas inserções nos mais diversos “imaginários”, e sim da historiografia de Christopher Dawson. Esse historiador galês percebeu muito bem, e com mais sensibilidade que a nova historiografia francesa, que o acesso ao universo dos símbolos religiosos, contos, lendas e mitos de um povo, ou seja, o acesso à sua vida espiritual, traria ao historiador de talento enormes benefícios para que este pudesse compreender as especificidades, os valores e dramas próprios de uma cultura qualquer, penetrando em sua mentalidade. Mitos, lendas e cânticos revelam os anseios, angústias e sofrimentos de um povo, e o fazem de um modo direto, um canal aberto ao historiador sensível. Mergulhar nesses imaginários é sempre um desafio tremendo, e as chances de fracasso são enormes, mas, quando se tem boas hermenêuticas à mão, tudo fica mais fácil.

Ao acessar, por exemplo, o imaginário de uma cultura pré-histórica, incorporando-lhe parte da simbologia religiosa, o historiador corajoso pode, sim, imaginar contextos, práticas e instituições, desde que tenha o cuidado de dar um passo de cada vez, fundamentando suas reconstituições no imaginário que resgata. Imaginário é documentação histórica, e da mais alta qualidade.

Uma imagem que sempre me impressionou é a do Trono como Pedra de Sacrifício. Isto carrega uma simbologia muito concreta, em especial, a de que o rei, além ser o de líder político de um povo, o é justamente por ser aquele que se sacrifica pelo povo ou comunidade. Hoje parece que essa visão se perdeu, e o político está sempre disposto a sacrificar o povo em nome de algum projeto de poder. Como você enxerga essa transição/mudança? 

Divido com você a mesma impressionabilidade. Quando se pensa no mobiliário do santo dos santos, o mobiliário mais sagrado do Templo de Jerusalém, percebe-se que o mais sagrado dentro do mais sagrado era justamente o kapporet, o propiciatório ou trono. Esse trono, um bloco retangular de pedra maciça era o lugar em cima do qual se aspergia o sangue de um cordeiro ritualmente imolado, um cordeiro sem máculas, durante o rito de expiação, celebrado exclusivamente pelo sumo sacerdote uma vez por ano. Aí está a base de toda a antiga teologia do templo, simbolicamente retratada, em riqueza de detalhes, e em linguagem notadamente celestial de um sacerdócio e uma realeza celestes, no Apocalipse de João. Cristo é Rei exatamente por esse motivo: Ele é o “Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”, conforme sabem todos os que frequentam a missa católica. No caso, Cristo retoma a linhagem davídica de reis sumo sacerdotes, finalizando-a em seu reinado eterno. Como você bem colocou, essa visão do papel redentor de um rei, seu valor sobretudo ritual, era algo muito difundido no Mundo Antigo. Aliás, o antropólogo James Frazer propõe, em O Ramo de Ouro, que a principal função de muitos reis africanos não era, sobremaneira, governar, mas sim servir de corpo expiatório, quando crises e carestias se agravassem. Girard, em suas reflexões, imagina como esses reis pré-históricos foram encontrando substitutos eficientes para o sacrifício, e o fizeram à medida que concentravam mais poder político-militar. Obviamente, começaram a sacrificar os outros. Isso nos leva a uma reflexão importante: a linguagem do sacrifício, universal e inescapável, nos coloca frente à realidade última e primeira da vida humana: viver para si mesmo ou para os outros? É uma questão difícil, pois infinitamente matizada, e penso que a modernidade, com seus inegáveis avanços morais e sua preocupação crescente com as vítimas, criou, nos modelos constitucionais democráticos, formas mais fáceis e viáveis de viver para o outro, mas ao mesmo tempo, também criou mais espaços para descartar, ignorar, leia-se sacrificar, o outro.

Diante desta tragédia em que vivemos, a peste do covid-19, há uma tendência natural de procurarmos bodes-expiatórios para culpar. Nada de novo, visto a tragédia de Édipo. Como pensar esta crise à luz das teorias girardianas.

Em momentos de crise aguda, as sociedades humanas se mobilizam para encontrar os culpados ou o culpado. Isso se torna particularmente dramático quando a remediação do mal não é mais possível, uma vez que este se alastrou por todos os cantos, restando a expectativa de uma cura, de um milagre, de uma solução final. O mais incrível é que essa doença, que hoje nos assola e intimida, atende a todos os critérios de uma típica “peste” trágica. Até acho que foi o Martim Vasques da Cunha que começou a falar, acertadamente, de peste. Isso significa que as soluções rituais, a saber, soluções remediadoras ou, melhor dizendo, preventivas, tornam-se rapidamente insuficientes, uma vez que é preciso encontrar e debelar “o culpado”, para então resolver a questão. No entanto, o nosso drama atual é saber, de antemão, que esse culpado, o causador, é um ser invisível, minúsculo, que se reproduz aos trilhões. Resta-nos, então, transferir a pressão acumulada pela crise a substitutos mais palpáveis, os quais serão facilmente encontrados na classe política e nas relações internacionais. Penso em escrever um artigo sobre isso, pois o material à disposição é formidável, indicando-nos como, mesmo em nosso mundo tecnológico, os dispositivos sacrificais, recorrentemente acionados em momentos como este, voltam com força total. Mas, antes de escrever um artigo sobre o assunto, quero ver o desfecho dessa pandemia, o que significa, concretamente, esperar pela descoberta e aplicação universal de uma vacina. Suspeito, todavia, que uma vacina será mero detalhe frente aos ódios já fecundados na crise. As pessoas que continuarem a alimentá-lo precipitarão expurgos violentos, sem dúvida.

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