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Não jogue xadrez com pombos
| Foto: Steve Buissinne/Pixabay

Falácia: artimanha do discurso capaz de fazer um raciocínio parecer algo que não é. Você toma o falso como verdadeiro e dispensa o verdadeiro como falso. Para ser mais preciso, em debates públicos, sobretudo políticos, a aparência de verdade exerce um conjunto considerável de efeitos psicológicos muito mais interessantes e promissores do que os fatos. Portanto, esqueça os fatos. Esqueça a justiça. Quem liga para os fatos diante da beleza retórica de um bom argumento? O fascínio de estar sempre certo, independentemente de estar com a razão, é o que move o debate público.

Uma falácia que tem tomado do atual debate público é o apelo à emoção: argumentum ad passiones. Darei um exemplo dentro do atual debate sobre a obrigatoriedade da vacina. Essa semana o governo federal lançou o seguinte debate a partir de uma campanha que apresenta o seguinte: “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina: o governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros”. Alguns defensores da obrigatoriedade foram para o ataque: “Vacina não é sobre nós individualmente apenas. É sobre solidariedade e coletivo. É sobre amor ao próximo. #VacinaÉAmorAoPróximo”. Logo, vacina deve ser obrigatório.

Tanto governo quanto esses defensores da vacina usam e abusam do apelo à emoção em seus jogos retóricos e não oferecem uma única justificativa razoável para suas posições. Por que deveríamos ser razoáveis? Ora, do ponto de vista político, é da natureza do governo obrigar o cidadão dentro dos limites da lei. O problema é a justificativa dessa obrigação. Apelar para “o governo preza pelas as liberdades dos brasileiros” é o apelo do governo a um ideal difuso e irresponsável de liberdades individuais. Retoricamente funciona, então é o que importa.

Até que ponto a política deve ser reduzida a um jogo retórico?

Agora, quem apela para “Vacina É Amor Ao Próximo” não faz outra coisa do que usar a estratégia do sentimentalismo retórico. Se a vacina deve ser obrigatória, é justamente por não ser ato de amor ao próximo. Trata-se, nesse sentido, daquele tipo de obrigação cívica independentemente de você amar ou odiar o vizinho. O Estado não pode obrigar ninguém a amar o próximo – afinal, ele é laico e o amor se refere à mais alta capacidade de transcendência do homem. Contudo, o Estado, dada sua natureza política e terrena, pode, sim, obrigar os cidadãos a tomarem vacina, pagar impostos, proibir certos tipos de drogas, obedecer às leis de trânsito... O problema não é o amor, mas a legitimidade de suas decisões políticas públicas.

Veja como essa falácia do apelo à paixão no debate público cria uma atmosfera interessante. Para governistas, se você é favor da obrigatoriedade da vacina, logo será contra a liberdade dos brasileiros. Por outro lado, para esses defensores da vacina, se você é contra a vacina, então é um porco individualista e não ama o próximo.

Retórica é como jogar xadrez. As regras do xadrez fornecem um conjunto considerável de postulados para você conduzir a partida com segurança. Ou seja, proteger o rei. O que interessa no jogo é uma única coisa: o prazer da vitória e usar de artifícios para o oponente errar. Jogar xadrez é divertido. Pergunta: debater assuntos políticos é um jogo?

Independentemente das consequências políticas, quem entra numa discussão pública para perder é porque nunca teve o prazer de jogar xadrez. Por isso, existem inúmeras técnicas para usar e detectar falácias, assim como inúmeras técnicas de estratégias para dar xeque-mate. Não à toa, quando encontramos um debatedor ruim, falamos em “jogar xadrez com pombos”. Não deveríamos jamais jogar xadrez com pombos.

De qualquer forma, nem toda falácia é intencional. Muitas vezes incorremos em argumentos falaciosos por pura distração ou simplesmente por não conseguir, no calor da conversa, detectar uma premissa falsa ou uma inferência inválida. Fora que a vaidade e o medo falam bem mais alto que a frieza do raciocínio. A paixão é parte incontornável da experiência humana. Amputá-la do debate público significa negar a própria experiência humana como um todo. Mas insisto na pergunta: até que ponto a política deve ser reduzida a um jogo retórico?

Se for realmente assim, então sempre que possível deveríamos recorrer ao jogo sujo (estratégias retóricas) da linguagem para construir um argumento com boa aparência a fim de enganar o interlocutor e sair vitoriosos. Verdade? Fatos? Justiça? Que a verdade, os fatos e a justiça vão para o diabo! Schopenhauer tem razão quando ensina, num livrinho que já se tornou um clássico da dialética erística, os estratagemas para ganharmos qualquer debate sem ter razão.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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