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A máfia dos mendigos
| Foto: Pixabay

Nesta semana, converso com Yago Martins, autor da obra recém-publicada A máfia dos mendigos: Como a caridade aumenta a miséria: o pastor que fingiu ser morador de rua explica por que nossas tentativas de vencer a pobreza continuam fracassando, pela Editora Record (agosto de 2019; 252 páginas). Trata-se de obra polêmica, sobretudo para quem se limita a ler capa ou, no máximo, orelha de livro. E nesse caso específico, a polêmica tem uma razão muito simples: um pastor se passar por morador de rua para explicar como a caridade tem aumentado a miséria. Parece um contrassenso. De qualquer forma, Yago não está com o dedo em riste determinando verdades absolutos e dogmas contrários a santa doutrina cristã. O que ele mostra é justamente um sentido genuíno de entender a caridade.

Por isso, não poderia começar essa conversa com outra pergunta senão esta: O título do livro sugere que se trata de uma denúncia e uma denúncia que toca num dos pilares de toda vida cristã: a caridade. Considerando que você é um pastor, a ideia inicial era realmente fazer essa denúncia?

Se eu pudesse resumir de modo simples, minha ideia inicial com o livro era louvar a caridade cristã, mostrando que assistencialismos estatais prejudicavam mais que ajudavam os miseráveis, além de tentar entender como funcionavam as teias de significado da vida mendicante. Minha hipótese era que o Estado mais mantinha que removia pessoas da rua, e que a caridade privada era a grande responsável pela solução na vida de indivíduos mendicantes. Cedo na pesquisa eu já fui confrontado com realidades que eu não esperava. Percebi que, por mais que o Estado realmente fosse inútil na solução da miséria – também criando miseráveis ao seu modo –, a pretensa caridade cristã estava prejudicando os homens na rua mais que qualquer assistencialismo estatal. O motivo é o que eu chamo no livro de caridade irrestrita e impessoal, o tipo de caridade que aumenta a miséria. É quando simplesmente distribuímos renda de forma direta, através de esmolas e sopões, mas sem qualquer engajamento humano com aqueles que dizemos servir. Assim, temos uma caridade não apenas inefetiva, mas não-cristã, já que os profetas, os evangelhos e as epístolas apostólicas sempre apresentaram caridade como engajamento, não esta caridade preguiçosa e egoísta que tem dominado (com boas e louváveis exceções) as ruas das grandes cidades. É uma denúncia séria, e que graças a Deus já tem sido bem recebida e encorajado muitos a novos comportamentos de acolhimento.

Para escrever o livro, você fingiu ser um morador de rua. Como foi viver essa experiência e como você responderia a críticos que afirmaram que além de ser antiético da sua parte, esse tipo de vivência não tem valor científico?

Fingir ser morador de rua é mais simples do que parece. Bastar se vestir mal, remover certos acessórios menos comuns (como óculos, aparelhos dentários etc.) e se sentar no chão. Eu fiz mais esforço no começo, deixando a barba crescer desleixadamente, mas com o tempo eu percebi que não precisava de muito; até porque pouco se repara nos homens na rua. Por isso, eu não precisei mentir ou enganar ninguém diretamente. Eu simplesmente coloquei um boné barato, uma roupa surrada e me sentei ao lado dos homens em situação de rua da minha cidade. Os homens presumiram minha condição, e nunca questionaram a meu respeito de forma que me obrigasse a mentir. Isso mostra muito sobre o modo como tratamos homens na miséria – nós costumamos presumir demais sobre o outro. A experiência foi transformadora, acima de tudo. Aprendi mais sobre mim mesmo que sobre mendigos, e não sei se serei capaz de transmitir um dia todo o crescimento humano que ser confundido com mendigo causa. Muitas vezes tive medo de morrer, passei algumas noites assustado, mas com o tempo, você se acostuma com qualquer circunstância. De muitas formas, tudo era mais fácil para mim. Eu estava apenas visitando os lugares onde muitos estavam morando. Isso, no entanto, dificultava algumas coisas. Leigo, tudo me amedrontava. Demorei para entender os motivos de eu ser o único com medo ali. Sobre o valor científico da obra, espero que cientistas a julguem cientificamente. Antropólogos e etnógrafos já me enviaram algumas mensagens, felizes pelo resultado e pela metodologia (metodologia esta que possui longa tradição no jornalismo e nas ciências sociais). Críticas acadêmicas também são muito bem-vindas. Como não sou cientista da área – sou apenas um curioso de Malinowski e Geertz –, reservo-me em ouvir o que estudiosos dirão acerca do trabalho. Até agora, os feedbacks têm sido positivos.

Eu li muitos comentários negativos a respeito do livro antes mesmo dele ser publicado, o que um crítico de “orelha” deveria entender por “máfia dos mendigos” e por que seu livro não é exatamente um ataque ao fundamento da ética cristã?

Quando a capa – logo, título e subtítulo – do livro foi divulgada, houve alguma comoção nas redes sociais. Vídeos e artigos “resenhando” meu livro surgiram aos montes. O Diário do Centro do Mundo fez uma nota difamatória sobre mim e o livro, jornais locais acompanharam a repercussão nas redes sociais da obra, pintando-me como algum tipo de lunático radical, e grupos inteiros pediram minha cabeça. Houve quem pedisse que a editora Record retirasse o livro de circulação e quem conclamasse seus seguidores a atar baionetas (juro) para me matar. Veja só, tudo isto antes do livro estar disponível para a leitura. O problema é que as pessoas são rápidas em emitir juízo sobre aquilo que lhes causa sentimentos ruins. Interpretaram que “A Máfia dos Mendigos” significava que todos os mendigos eram mafiosos, e não que existe uma máfia composta por mendigos, ainda que não por todos. Interpretaram que “como a caridade aumenta a miséria” era uma declaração contra alguma doutrina específica da igreja católica, já que na literatura teológica corrente dos católicos, “caridade” é usada como principal tradução de ἀγάπη (agapē, “amor”), baseada na tradução latina caritas. Eu me refiro, no entanto, à caridade em um sentido mais popular – esmolas, sopões, bocas de rango e ações sociais de forma diversa, como mostra a pragmática da linguagem e o campo semântico da palavra. Houve quem apelasse até às traduções arcaicas da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, onde a fala do Apóstolo sobre amor é traduzida por “caridade”, como se eu tivesse me opondo diretamente à doutrina apostólica. Nada mais absurdo. Esta cultura de presunção, infelizmente, incapacita muitas boas pessoas ao debate público. O que eu mostro na obra é que existem grupos mais ou menos coordenados de homens em situação de rua que parasitam os verdadeiramente miseráveis, e que nossa caridade impessoal e descompromissada tem aumentado o número destes falsos desgraçados, assim como asseverado a miséria de humanidade. Nada mais cristão do que conclamar os indivíduos a fazer mais pelos desvalidos.

No livro tem um subcapítulo chamado “parasitas da miséria: como ONGs e Igrejas têm criado mendigos”. Você poderia falar um pouco disso – afinal, quais seriam os interesses dessas ONGs e Igrejas em criarem mais mendigos?

Eu me esforço por mostrar no livro que nossa caridade tem atraído mais homens para a rua. Parece algo absurdo quando não estamos envolvidos diretamente com esta realidade, mas é até óbvio se você pensar bem. Há um grupo de indivíduos que percebeu que nós não estamos interessados em engajamento, em desenvolvimento, em reabilitação ou em qualquer resposta daquele que recebe nosso dinheiro. Estes homens, parasitas da miséria, puseram-se em torno dos verdadeiramente miseráveis, daqueles que precisam de alívio imediato (famintos, doentes, insanos, viciados etc.). Com isto, ao nos dedicarmos a distribuir recursos sem distribuir algum relacionamento humano, pusilânimes se aproveitam para viverem vidas mais tranquilas. Renunciam a alguma segurança, privacidade, propósito e conquista, mas recebem tempo livre, vadiagem, descompromisso absoluto, irresponsabilidade – e com disponibilidade de comida, banho, corte de cabelo etc. fornecidos por ONGs e igrejas. É óbvio que ninguém o está fazendo conscientemente. Todos pensam estar trabalhando para diminuir a miséria. Eu mesmo estava lá dando sopa aos homens sadios e capazes da minha cidade. Foi duro perceber que fui usado por muita gente, mas foi pior entender que ao condescender a isto, eu estava deixando de ajudar quem realmente precisava destes recursos. Sempre que alimentamos um homem que poderia não estar na rua caso exercitasse sua vontade neste sentido, eu deixava de alimentar alguma criança ou mulher cujo estômago não recebia nutrientes há dias. É doloroso, e é urgente reorganizarmos nossos atos de caridade.

Por que um cristão deveria ler seu livro sem se assustar com o título e como você tem lidado com polêmicas dessa natureza?

Acho que o título é realmente assustador, mas não é sem propósito. A realidade que tento descrever é assustadora. No Antigo Testamento, Deus condena os falsos profetas por meio de Jeremias porque eles curavam superficialmente a ferida do povo, dizendo: “Paz! Paz!”, quando não havia paz alguma. É um livro de guerra, mas de guerra contra nós mesmos que usamos os homens em situação de rua como entretenimento moral e consolo espiritual. Achamos belo darmos esmolas sem nos importarmos com os efeitos disto em quem recebe, como se fossemos espiritualmente mais engrandecidos por usarmos a esmola como exercício de generosidade, como se fôssemos cristãos de primeira linha, mesmo que nosso dinheiro embebede uma criança e piore o vício em crack de uma mãe solteira abandonada pela família. Não são poucos os comunicadores que tentam convencer as pessoas que não devemos nos importar com o que o mendigo faz com a esmola. Por isso, não me assusta que muitos se ofendam com o livro. Minha esperança é que este seja o tipo de ofensa que ninguém estará disposto a deixar barato. Que venham comigo para a batalha. É só assim que escapamos das curas superficiais dos falsos profetas que teimam em jurar que está tudo bem com nossa caridade, mesmo que os mendigos abundem ao nosso redor.

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