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Samuel Rutherford (retratado em pintura de Robert Walker) é o autor de "Lex Rex".
Samuel Rutherford (retratado em pintura de Robert Walker) é o autor de “Lex Rex”.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Os reformadores trataram com seriedade o ensino bíblico sobre o poder civil e as tensões envolvidas entre as esferas da Igreja e do Estado ou entre as duas cidadanias do cristão. Martinho Lutero foi o primeiro dos reformadores a tratar do assunto, em sua obra Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. Foi seguido por João Calvino, que abordou a matéria nas Institutas da Religião Cristã, ao tratar “da administração política”.

Um impressionante corpus político

O mais surpreendente é que quase todos os reformadores articularam uma teologia do Estado e várias obras foram lançadas em rápida sucessão nessa época: De Regno Christi [O reino de Cristo], de Martin Bucer; A Short Treatise of Political Power (“Um breve tratado do poder político”), de John Ponet; How Superior Powers Ought to Be Obeyed of Their Subjects; and Wherein They May Lawfully by God’s Word Be Disobeyed and Resisted (“Como poderes superiores devem ser obedecidos por seus súditos; e em que ponto eles podem legitimamente, segundo a Palavra de Deus, ser desobedecidos e resistidos”), de Christopher Goodman; Franco-Gallia, Or, An Account of the Ancient Free State of France, and Most Other Parts of Europe, Before the Loss of their Liberties (“Francogália ou Um relato do antigo Estado livre da França e a maioria das outras partes da Europa, antes da perda de sua liberdade”), de Francois Hotman; De Jure Magisterium (“Do direito dos magistrados”), de Theodore Beza; De Jure Regni Apud Scotos (“Os poderes da Coroa da Escócia”), de George Buchanan; o influente tratado anônimo Vindiciae Contra Tyrannos (“Defesas [da liberdade] contra tiranos”), atribuído por muitos a Philippe de Mornay; Política, de Johannes Althusius, que, de acordo com Frederick Carney, tem “a distinção de ser uma das contribuições centrais para o pensamento político ocidental”; e Lex Rex (“A lei é o rei”), de Samuel Rutherford.

A Lei revelada é o Rei

Os reformadores enfatizaram que não se deve centralizar o poder nas mãos de algumas poucas pessoas, mas dividi-lo entre poderes claramente separados e equilibrados, e entre o maior número possível de pessoas. E os governantes devem sempre prestar contas ao povo, que tem o direito e o dever de afastar os injustos e corruptos do poder. Desse modo, o que se descobre nessas obras é que a verdadeira origem do contrato social, garantidor das liberdades fundamentais do ser humano, encontra-se na Reforma Protestante e, em última análise, na mensagem evangélica oferecida nas Escrituras e confiada à igreja.

O conceito anabatista de que a igreja devia isolar-se da cultura foi rejeitado por João Calvino, sendo a relação entre a igreja e o mundo marcada tanto por tensão quanto por interação. A partir do entendimento que cultivava a respeito do governo de Deus e da soberania de Cristo sobre toda a criação, e não somente sobre a igreja, Calvino defendeu a participação dos cristãos na sociedade. Em sua compreensão, o governo de Cristo manifesta-se idealmente por intermédio de governantes piedosos, sendo dever dos magistrados manter a ordem no Estado e a uniformidade de culto.

Os reformadores enfatizaram que os governantes devem sempre prestar contas ao povo, que tem o direito e o dever de afastar os injustos e corruptos do poder

Sua posição pode ser resumida no conceito de a igreja auxiliar o Estadona esfera do Estado, e o Estadoauxiliar a igrejana esfera eclesial. Ainda assim, igreja e Estado têm esferas separadas e autônomas de atuação. Para Calvino, os cristãos devem obedecer aos governantes, orando por seu bem-estar, porque foram instituídos por Deus. Mas suas últimas palavras escritas nas Institutas afirmam: “O Senhor, portanto, é o Rei dos reis, e a ele devemos ouvir acima de todos tão logo abra sua boca. De forma secundária, devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre nós, mas somente sob a autoridade de Deus. Se as autoridades ordenarem algo contra o mandamento de Deus, devemos desconsiderá-lo completamente, seja quem for o mandante”.

Seguidores posteriores da tradição reformada vieram a elaborar não só um conceito de resistência ao Estado, por parte dos magistrados inferiores, mas também o direito de tiranicídio. De acordo com Johannes Althusius: “[Um príncipe tirânico] só pode ser assassinado com justiça numa dada situação, ou seja, quando sua tirania tiver sido publicamente reconhecida e for incurável, ou quando, com fúria e com desprezo a todas as leis, ele pretende a total destruição do reino, suprime a sociedade civil entre os homens até onde pode e se torna violentamente colérico, e quando não existem outras soluções”.

Samuel Rutherford desenvolveu essas questões em seu livro Lex Rex. Essa obra foi escrita em 1644, enquanto ele estava na Assembleia de Westminster, primariamente para refutar o “direito divino dos reis”. Ele delineou cuidadosamente a posição dos presbiterianos escoceses em relação aos reis tirânicos e estabeleceu qual era a posição presbiteriana sobre a relação entre o povo da Escócia, a Igreja na Escócia e o rei da Escócia, defendendo uma limitação dos poderes dos governantes e o constitucionalismo.

Deve-se notar que Lex Rex foi escrito bem antes do livro de John Locke Two treatises on Government (1690). E foi a obra de Rutherford que ofereceu a justificativa teórica não apenas para a deposição do tirano rei Carlos I, mas para sua execução por crime de lesa-pátria, em 1649, e a consequente abolição da monarquia – para horror de toda a Europa, pela primeira vez um monarca era executado em público no Ocidente.

Nessa obra, Rutherford afirma que a premissa básica do governo civil, e, portanto, da lei, tem de ser a Lei de Deus, conforme revelada nas Escrituras. Nenhum governante está acima da Lei de Deus. Somente Deus tem o poder absoluto. Nesse sentido, a resistência ao Estado que faça mau uso do poder que lhe foi delegado deve ser entendida como desobediência civil – um mecanismo de defesa legítima, desde que exercido dentro dos limites cabíveis, com razões e intenções claras, a que tem direito todo cidadão, e de forma específica todo cristão, quando subjugado por um Estado que interfere na esfera litúrgica ou doutrinária e requer o que equivale à adoração. E, como escreveu Harro Höpfl, “no momento em que os magistrados vão além dos limites de sua autoridade, (...) tornam-se semelhantes aos ladrões, usurpadores e violadores”. Na tradição reformada, as causas da liberdade política e da liberdade de culto não só algumas vezes se confundem, mas, muitas vezes, acabarão por ser indissociáveis.

A tradição da desobediência civil

Rutherford foi um dos primeiros a escrever sobre a desobediência civil. Ele observou: “a comunidade retém em si mesma o poder de resistir à tirania”. Ele idealizou um sistema de três passos para a desobediência civil: petição, mudança e resistência armada.

A petição consistiria na procura de uma solução para remediar uma ação civil equivocada, cometida pelo governo, usando os meios legais, já estabelecidos. Num sentido mais abrangente, há várias formas em que se pode fazer uma petição. Pode-se fazer pressão junto ao representante eleito para criar leis a fim de mudar a situação. Pode-se também trabalhar na própria comunidade para estimular o eleitorado a eleger novos legisladores ou mudar o voto em futuras eleições. Pode-se, ainda, tentar convencer o Poder Executivo a mudar o próprio cumprimento da lei. Finalmente, pode-se mover um processo, procurando um julgamento imparcial, por parte do Poder Judiciário.

É possível que os governantes não desejem corrigir seus erros. O motivo pode ser político, como falta de disposição em contrariar as lideranças partidárias, ou pode ser de ordem legal, como a falta de jurisprudência para agir. Pode ocorrer também que a autoridade civil, a quem se pede para intervir, seja participante no mal que se está tentando corrigir. Então, se a petição falhar, o segundo passo seria a mudança de município ou estado, que se tornaria uma opção, ainda que limitada. Neste contexto, devemos lembrar que um dos privilégios da cidadania é o direito de ir e vir.

Na tradição reformada, as causas da liberdade política e da liberdade de culto não só algumas vezes se confundem, mas, muitas vezes, acabarão por ser indissociáveis

O último passo da desobediência civil seria a resistência armada, que poderia ser realizada apenas por um membro do governo que se colocasse entre o governante infrator e os cidadãos, com o intuito de devolver ao uso legal o poder civil. Normalmente, este direito de intervenção não está disponível às pessoas, mas apenas aos representantes legais eleitos pelo povo. Mesmo assim, há certas situações especiais em que as pessoas se fazem seu governante, como no caso da legítima defesa ou da detenção civil, quando uma pessoa comum pode prender um criminoso.

Deve-se destacar que a utilização dos magistrados inferiores, a remoção de políticos pelo voto e a proclamação de injustiças praticadas pelo governante ou pelo Estado não podem ser classificadas stricto sensu como resistência ao Estado, sendo mais bem descritas como o exercício das responsabilidades civis, perante Deus e os homens, como ordenado a cada um de nós e a toda a igreja.

Uma luz da Escócia

A Assembleia de Westminster foi um encontro de teólogos e parlamentares ingleses, nomeados de 1643 a 1653 para reestruturar a Igreja da Inglaterra. Vários teólogos escoceses também compareceram. Foi produzida uma Confissão de Fé, dois catecismos e um manual litúrgico, para as Igrejas da Inglaterra e da Escócia.

Para esta assembleia, os presbiterianos escoceses foram convidados a enviar delegados. Samuel Rutherford foi um dos escolhidos. Por quatro anos, a assembléia se reuniu na Sala Jerusalém da Abadia de Westminster, em Londres. Ao lado de seu companheiro escocês, George Gillespie, Rutherford prestou um serviço inestimável à Assembleia. Esta teve de determinar o tipo de governo eclesiástico que prevaleceria na Inglaterra. Não havia apenas presbiterianos representados na Assembleia, mas também congregacionais e erastianos. Os congregacionais propuseram uma forma de governo de igreja em que nenhuma federação eclesiástica teria qualquer autoridade sobre as congregações locais, mas cada um dessas seria independente. Os erastianos, por outro lado, favoreciam uma igreja controlada pelo Estado, na qual os assuntos eclesiásticos seriam regulados pelo rei. Rutherford lutou muito pela forma presbiteriana de governo da igreja, que acabou prevalecendo. Esta preconiza que a congregação local é dirigida por um conselho de presbíteros, e estes são coligadas em presbitérios, sínodos e assembleia geral. A Confissão de Westminster foi o produto doutrinário desta assembleia. Em 1646 Rutherford deixou Londres e retornou à Escócia. A Câmara dos Lordes ficou tão impressionada com seu trabalho que enviou uma carta às igrejas escocesas, que dizia: “Não podemos deixar de devolvê-lo [à Escócia] dando amplo testemunho de seu conhecimento, piedade, fidelidade e diligência, e oramos humildemente ao Pai dos espíritos para aumentar o número de tais luzes ardentes e brilhantes entre vocês”.

Um dos resultados da Assembleia foi o Catecismo Maior de Westminster, escrito em 1647. Ao elaborar “os pecados proibidos no sexto mandamento” – “não mate”, que é mais fielmente traduzido como “não assassine” –, esse documento ensina que são “pecados proibidos”: “o tirar a nossa vida ou a de outrem, exceto no caso de justiça pública, guerra legítima, ou defesa necessária”, e “a negligência ou retirada dos meios lícitos ou necessários para a preservação da vida”, assim também “tudo o que tende a destruir a vida de alguém”.

Deve ficar claro que é possível que alguém busque todas as soluções legais disponíveis para reformar as leis e, ainda assim, tenha seus direitos violados. Como proceder se isso acontecer? Como cristãos, devemos estar prontos a sofrer por nossas convicções. Devemos ficar firmes na fé, porque Deus julgará entre nós e nossos adversários. Ainda que o Senhor não nos conceda justiça durante nossa vida, nosso esforço pode assegurar a justiça para nossos filhos. Como Schaeffer escreveu: “Segue-se, da tese de Rutherford, que os cidadãos têm uma obrigação moral de resistir aos governos injustos e tirânicos. Embora devamos estar sempre sujeitos ao ofício do magistrado, não devemos nos sujeitar à pessoa que ocupa esse ofício e que comanda aquilo que é contrário à Bíblia”.

O impacto de palavras perigosas

Carlos II, o filho do rei executado e que assumiu o trono da Inglaterra após a morte de Oliver Cromwell, odiava Lex Rex. Em setembro de 1660, o livro foi examinado pelos comissários do rei. Rutherford foi condenado por alta traição e foi exigida à nação que quem tivesse comprado cópias da obra deveria entregá-las todas ao governo. Aqueles que se recusassem a fazer isso seriam declarados inimigos do rei. Assim, todas as cópias recolhidas foram queimadas em Edimburgo. Rutherford recebeu ordens de comparecer diante dos comissários do rei. Mas ele estava incapacitado para obedecer, por estar muito doente. Então ele foi julgado à revelia, condenado, deposto do ministério e demitido da Universidade de St. Andrews. Ele recebeu ordens de permanecer sob guarda em sua casa. Porém, ele faleceu antes que pudesse comparecer diante de seus acusadores e uma sentença de execução ser decretada.

O movimento da Reforma não foi somente um movimento de redescoberta do evangelho, como revelado nas Escrituras Sagradas, que visou renovar a igreja. Foi também um amplo movimento de reordenação da sociedade, à luz da revelação de Deus em sua Palavra. Assim, de acordo com Daniel Elazar, “a estrada para a democracia moderna começou com a Reforma Protestante no século 16, em especial entre aqueles expoentes protestantes reformistas que desenvolveram uma teologia política que remeteu o Ocidente de volta aos caminhos do autogoverno popular, com ênfase na liberdade e igualdade”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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