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Vista da cidade de Jerusalém.
Vista da cidade de Jerusalém.| Foto: Walkerssk/Pixabay

A Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) ofecere a seguinte definição de antissemitismo: “É uma certa percepção dos judeus, que pode ser expressa como ódio aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são dirigidas a indivíduos judeus ou não judeus e/ou suas propriedades, a instituições da comunidade judaica e instalações religiosas”. Antissemitas frequentemente acusam os judeus de conspiração para prejudicar a humanidade e culpam os judeus por “todas as coisas que dão errado”. Essa percepção está expressa na fala, na escrita, em representações visuais e por meio de ações, e emprega estereótipos e traços de caráter negativo. Pode-se citar como exemplos de antissemitismo negar ao povo judeu seu direito à autodeterminação e aplicar padrões duplos de julgamento, exigindo de Israel um comportamento que não é esperado ou exigido de qualquer outra nação. Tristemente, o antissemitismo ainda está presente na teologia cristã, mesmo depois do Holocausto e das ameaças contínuas de destruição feitas por países islâmicos.

Um objetivo impossível

O livro De quem é a Terra Santa: o contínuo conflito entre Israel e a Palestina, de Colin Chapman, publicado pela Ultimato, apresenta-se como uma tentativa de oferecer uma interpretação “imparcial” do conflito entre israelenses e palestinos pela Terra Santa. O autor – ordenado na Igreja Anglicana, e que integrou a equipe da Catedral Anglicana no Egito e foi professor na Escola de Teologia do Oriente Médio, em Beirute – pretende oferecer as percepções dos dois lados do conflito, por meio de fartas citações dos principais personagens. Mas suas muitas e longas citações são altamente seletivas, e seu argumento se apoia em notórios oponentes do Estado de Israel, como Naim Ateek, Norman Finkelstein, David Hirst e Edward Said.

O autor tenta alertar para o perigo do antissemitismo e se concentra em algumas das dificuldades sofridas pelos judeus. Mas não distingue entre o antissemitismo religioso, tristemente propagado por alguns dos Pais da Igreja e Martinho Lutero; e o antissemitismo étnico, que foi dominante, nos séculos 19 e 20, na Rússia, na França e na Alemanha, onde se originou o Holocausto, quando 6 milhões de judeus foram mortos pela máquina de guerra nacional-socialista.

O antissemitismo ainda está presente na teologia cristã, mesmo depois do Holocausto e das ameaças contínuas de destruição feitas por países islâmicos

No entanto, seu argumento central é de que a culpa do conflito seria das potências ocidentais: do Reino Unido, que fez promessas a judeus e árabes quando a terra era um protetorado britânico, sabendo que não poderia cumpri-las; dos Estados Unidos, que supostamente coagiram outros membros das Nações Unidas a votar em favor do plano de divisão de 1947; e, sobretudo, dos sionistas, que teriam supostamente comprado a terra com dolo dos proprietários, os absenteístas, em meados do século 19.

A falta de contexto

Mas o autor, em momento algum, coloca a história em contexto, deixando de retratar a situação desta parte do Império Otomano neste momento-chave que vai do fim do século 19 até o início do século 20.

Tomemos, por exemplo, a região do Vale de Hula, na Alta Galileia. Havia pouquíssimas aldeias sobrevivendo precariamente numa região pantanosa infestada de malária, em terrenos pertencentes a ricos latifundiários que moravam em Damasco e não ligavam para a população árabe, vivendo num império corrupto e que ruiria ao fim da Primeira Guerra Mundial. A partir do século 19 chegaram grupos de judeus organizados da Europa. Entre estes, cerca de 54 mil judeus, que chegaram à região entre 1880 e 1921, fugiram da onda de pogroms que varreu o sul da Rússia entre 1821 e 1906, escapando da pilhagem e morte.

Estes judeus compraram essas terras a bom preço dos latifundiários, que acreditavam que os judeus eram tolos por comprar pântanos que não serviriam para nada. Mas os judeus drenaram os pântanos, trabalharam duramente e transformaram o vale num paraíso. Isso se aplica de forma geral ao resto da região. Como o rei Abdullah, da Jordânia, escreveu, a verdadeira história dos judeus que assumiram o controle de terras dos árabes é uma história de comércio, e não de roubo: “Os árabes são tão pródigos em vender suas terras quanto em [...] chorar por elas”.

Portanto, qualquer pesquisa mais profunda do conflito na região precisa levar em conta o que era essa região do Império Otomano antes e depois dos sionistas, ou antes e depois da fundação de Israel – algo que o autor não faz.

A identidade palestina

Outro ponto problemático na obra refere-se à origem da identidade nacional dos palestinos. O debate, em linhas gerais, concentra-se na afirmação de alguns de que a identidade palestina teria começado a surgir após a Primeira Guerra Mundial, quando a região passou a integrar o Reino Árabe da Síria e, depois, o Mandato Britânico da Palestina, como resposta ao sionismo. Outros sugerem que esta identidade teria nascido somente após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, pois a Cisjordânia estava sob o controle da Jordânia, e os moradores da região não estavam fazendo protestos para ter seu próprio Estado palestino independente da Jordânia.

Somente em 1974 a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) passou a reclamar um Estado palestino independente. Em 1977, Zuheir Mohsen, membro executivo da OLP, disse ao jornal holandês Trouw que “não há diferenças entre jordanianos, palestinos, sírios e libaneses”, são todos parte de uma “nação árabe”, embora a identidade palestina fosse enfatizada por razões políticas: “Não existe ‘povo palestino’. A criação de um Estado palestino é apenas um meio para continuar a nossa luta contra o Estado de Israel”. Curiosamente, o principal líder da OLP, Yasser Arafat, nasceu no Cairo, no Egito, em 24 de agosto de 1929.

Assim, a suposição de que haveria “palestinos” vivendo na terra, na altura da chegada dos judeus em fins do século 19, é uma compreensão anacrônica dependente do revisionismo islâmico, mas que parece ser endossada pelo autor.

Qualquer pesquisa mais profunda do conflito na região precisa levar em conta o que era essa região do Império Otomano antes e depois dos sionistas, ou antes e depois da fundação de Israel

Há outras lacunas. Chapman não aborda o caráter defensivo das guerras travadas por Israel em 1948, 1967 e, especialmente, 1973 (iniciada no dia do Yom Kippur, quando o povo de Israel estava em sua maioria orando nas sinagogas), os repetidos apelos à aniquilação de Israel por parte dos líderes árabes e dos meios de comunicação árabes e, sobretudo, as políticas britânicas extremamente opressivas contra os refugiados judeus do Holocausto que queriam fugir para a região, ao fim da Segunda Guerra.

Não é surpresa que ele também não mencione em momento algum a associação do Grande Mufti árabe com os nacional-socialistas, seu encontro com Adolf Hitler e as intenções genocidas compartilhadas por ambos os líderes. Aliás, o Grande Mufti era um pioneiro no massacre em massa, depois de ter incitado multidões de árabes a linchar centenas de judeus nos tumultos de Jerusalém ocorridos em 1920, 1921, 1929 e 1936. E isso ocorreu com a complacência das forças de ocupação britânicas. Ignora também que cerca de 25 mil muçulmanos se alistaram nas Waffen-SS e serviram no exército alemão, e estiveram envolvidos em crimes de guerra cometidos inclusive contra civis judeus nos Bálcãs, em 1944.

Graves distorções

O autor também relativiza o papel do islamismo nas tensões entre Israel e os palestinos, afirmando que o islamismo não estaria na raiz do conflito e a ênfase no Islã seria apenas uma reação recente à opressão israelense; também sugere que Israel seria o responsável pela formação do Hamas, uma notória organização terrorista. Também é incapaz de discutir as tensões no Oriente Médio num contexto de terrorismo militante islâmico, após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.

Além disso, o autor assume a ideia de que Israel fez uma “limpeza étnica” nos territórios palestinos. Durante a guerra de 1948, cerca de 700 mil árabes que viviam nos territórios que se tornaram o Estado de Israel fugiram ou foram expulsos de suas casas. De outro lado, a pretexto da fundação do Estado de Israel, cerca de 900 mil judeus foram expulsos de países árabes, entre 1948 e 1970. O êxodo judaico dos países árabes não é mencionado em nenhum lugar da obra – uma omissão séria para uma obra que se propõe ser isenta.

No entanto, cerca de 20% dos cidadãos israelenses são árabes e cerca de 17% destes são muçulmanos (os judeus são 75% da população e os cristãos, 2%), um número próximo a 1,6 milhão de pessoas. A título de comparação, só restam, hoje, menos de 8 mil judeus em países árabes.

Na última contagem, os cidadãos árabes de Israel foram representados por 13 (de 120) membros no parlamento israelense, pertencentes a quatro partidos políticos: Balad, Hadash, Lista dos Árabes Unidos e Ta’al (enquanto isso, não há nenhum parlamentar judeu em países árabes; na verdade, poucos países árabes têm sequer um parlamento). Aliás, em 2016, um parlamentar cristão árabe, Basel Ghattas, do partido Balad, foi preso por usar sua imunidade para entregar telefones e chips de celular a terroristas na prisão de Ketziot, ao sul de Berseba. Após concordar em renunciar ao parlamento (Knesset) e fazer um acordo com os promotores, foi condenado a dois anos de prisão.

A impressão oferecida é de que o autor busca encontrar desculpas que irão apoiar a conclusão de que os judeus não têm o direito à terra, ainda que haja alguma disposição de permitir que vivam nela como concessão, pois ele defende a noção de “um Estado, dois povos”, um Estado binacional (que levaria ao fim do caráter judaico do Estado de Israel), como possível solução para o conflito.

Há outros erros e imprecisões graves na obra de Chapman: a afirmação de que na Guerra Árabe-Israelense de 1948, Transjordânia, Egito, Síria, Iraque, Líbano, Arábia Saudita e Iêmen não queriam destruir o recém-criado Estado de Israel (página 31); o Hamas, considerado grupo terrorista por Estados Unidos, União Europeia, Japão, Israel e Canadá, é chamado de “movimento de resistência” e “grupo extremista” (páginas 38 e 40); coloca a culpa do fracasso do Acordo de Camp David em Israel, quando o príncipe saudita Bandar bin Sultan reconheceu publicamente a culpa de Yasser Arafat; a afirmação de que, enquanto os foguetes lançados de Gaza por palestinos provocam “vítimas”, os ataques de Israel em resposta são “assassinatos” (página 45); Israel é um país arrogante e colonialista (página 386), um verdadeiro Estado de apartheid e culpado de não haver paz no Oriente Médio (página 388).

Problemas teológicos

A obra também pretende ser uma crítica ao pré-milenismo dispensacionalista. O livro cita uma declaração do Conselho de Igrejas do Oriente Médio que afirma que esta interpretação escatológica seria uma heresia para os cristãos do Oriente Médio. Parece-me que Chapman cai na falácia do espantalho, porque ele critica o modelo escatológico dispensacional sem explicar direito qual modelo dispensacional (darbiano, clássico, revisado ou progressivo) é alvo de sua crítica. Assim, o autor critica uma forma de dispensacionalismo que, embora seja o modelo que mais conhecemos no Brasil, na academia teológica norte-americana é um modelo já ultrapassado, e poucos dispensacionalistas de renome hoje afirmam o modelo criticado pelo autor.

Devo deixar claro ao leitor que me enquadro como pactualista e amilenista. Mas cedo me impactou a recomendação aos clérigos puritanos de se “orar pela propagação do evangelho e Reino de Cristo em todas as nações, pela conversão dos judeus [ao Messias], a plenitude dos gentios, a queda do Anticristo, e o apressar da segunda vinda de nosso Senhor”, antes da pregação do sermão dominical, no Diretório de Culto de Westminster. Em anos recentes, Wilhemus à Brakel, Charles Spurgeon, J. C. Ryle, Horatius Bonar e, sobretudo, Jonathan Edwards me ajudaram a compreender o significado literal das profecias que previram o restabelecimento do Estado de Israel pelo povo judeu; assim também, Dietrich Bonhoeffer e Corrie Ten Boom solidificaram a compreensão da necessidade de se apoiar Israel.

O autor busca encontrar desculpas que irão apoiar a conclusão de que os judeus não têm o direito à terra, ainda que haja alguma disposição de permitir que vivam nela como concessão

Assim, como lembra Gerald McDermott, não é necessário apoiar uma corrente escatológica controversa para afirmar que tanto o povo quanto a terra de Israel continuam relevantes para o futuro da redenção. E ele também diz: “Há muitas manchas e rugas [na história de Israel], e o povo e a terra atuais parecem estar distantes do cumprimento da promessa. No entanto, assim como no que diz respeito a nós mesmos e à igreja, há sinais claros de que Deus está em ação, que Deus colocou Israel onde ele está hoje. [...] Deus mantém sua aliança com o povo judeu, [...] ele os conduziu de volta à Terra Prometida por caminhos notáveis e [...] ele tem um futuro para o povo e para a terra”.

Um supersessionismo modificado

Chapman rejeita corretamente toda noção de que “a cristandade ‘tomou o lugar de Israel’”: “Essa ideia, às vezes descrita como ‘supersessionismo’ e em outras como ‘teologia da substituição’, não encontra respaldo no Novo Testamento. Ainda que seja possível dizer que Jesus ‘substituiu’ o templo, não há justificativa para dizer que a igreja ‘substituiu’ Israel” (página 307).

Mas, ainda assim, Chapman termina por ressignificar as profecias do Antigo Testamento que prometem um grande livramento ao Israel étnico, um retorno da nação ao Senhor e um final completo do exílio (Am 9,15; Jl 3,20; Is 49,6.15-20.22-23; 60; 62; Jr 23,7-8; 31,31-37; Ez 36,24-29.37; Zc 12,14). A análise que o autor faz de Romanos 11,26.28-29 é ambígua, mas termina por rejeitar “um grande projeto do futuro do povo judeu” (página 313). Ao leitor recomendo a análise de Romanos 11 nos comentários de Romanos escritos por John Murray e C.E.B. Cranfield, que oferecem bom corretivo à posição supersessionista de Chapman.

O movimento BDS age de forma parecida com o boicote que os nacional-socialistas fizeram aos negócios judaicos na Alemanha, na década de 1930

Assim, pode-se concluir, de acordo com Daniel Juster, que “a teologia de rejeição do Israel étnico é uma raiz importante do antissemitismo”. E, como ele ainda afirma, “este é o caso das declarações de Colin Chapman, que considero antissemitas embora se diga que sejam apenas antissionistas”. N. T. Wright, de quem Chapman depende para sua compreensão de Romanos 11, também é criticado por Juster, por sua aderência ao supersessionismo.

O único Messias não é a resposta?

E não há nesta obra nenhum apelo ou desafio sobre a veracidade das cosmovisões dos grupos étnicos envolvidos, muito menos uma ênfase na pregação do evangelho do Príncipe da Paz, Jesus, o único Messias e Senhor, redentor de todas as etnias, incluindo judeus e árabes. Em nenhum lugar isso chega a ser sequer discutido.

Um parágrafo desconcertante do livro serve de ilustração de suas fraquezas inerentes (página 395-396):

“Talvez tenha chegado o momento de aprender com o modo pelo qual outros conflitos foram resolvidos. Na África do Sul, as sanções e o forte apoio moral de todo o mundo contribuíram para que, finalmente, o apartheid terminasse. Na Irlanda do Norte houve considerável envolvimento e mediação de terceiros (especialmente os Estados Unidos). Um grande avanço ocorreu lá quando os governos perceberam que tinham de lidar não só com os moderados de ambos os lados, mas também com os chamados extremistas. Poderia ser também que os debates ferozes que estão ocorrendo nos campi norte-americanos e o trabalho de organizações e redes como One Democratic State (Um Estado Democrático), Boycott Divestment and Sanctions (BDS; Boicote, Desinvestimento e Sanções), Jewish Voices for Peace (Vozes Judaicas pela Paz) e Kairos Palestine (Káiros Palestina) venham a contribuir para uma grande mudança de pensamento por parte dos governos, o que acabará por estimular a vontade deles de ver a situação mudada?”

Fica o receio de que os adeptos da esquerda “progressista cristã” usem este livro para promover uma onda antissemita entre os evangélicos

Tal parágrafo – em que se apela a uma solução puramente política ao conflito – é chocante por, sobretudo, comparar o Estado de Israel com o regime de exclusão racista da África do Sul de 1948-1994 ou o terrorismo praticado pelo Exército Republicano Irlandês (IRA) durante o conflito na Irlanda do Norte em 1968-1998. Mas mais chocante é supor que grupos de pressão controversos, antissemitas e esquerdistas, como o movimento BDS, podem resolver o conflito. Este movimento, que se opõe ao sionismo, defende a prática de boicote econômico, acadêmico, cultural e político a Israel. Na verdade, o movimento BDS age de forma parecida com o boicote que os nacional-socialistas fizeram aos negócios judaicos na Alemanha, na década de 1930. Além de promover em escala internacional a difamação e deslegitimação do Estado de Israel. Conforme M. Zuhdi Jasser, autor e fundador do Fórum Islâmico-Americano pela Democracia: “Temos de entender em primeiro lugar o que é o movimento BDS. É um movimento antissemita, basicamente genocida, que quer destruir Israel”.

Parece que este é o primeiro livro lançado por uma editora evangélica no Brasil que faz uma defesa da causa dos árabes palestinos. Fica o receio de que os adeptos da esquerda “progressista cristã” usem este livro para promover uma onda antissemita entre os evangélicos, afirmando a narrativa pró-Islã dos palestinos como “as verdadeiras vítimas do conflito”. Portanto, é preciso ler esta obra com cautela, pois, ao que parece, há nela nuances que revelam forte preconceito contra Israel – a única democracia verdadeira no Oriente Médio.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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