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Detalhe de "Santo Agostinho", de Philippe de Champaigne.
Detalhe de “Santo Agostinho”, de Philippe de Champaigne.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Nas últimas duas décadas, a palavra discipulado foi suplantada pelo termo espiritualidade. Uma ênfase que, aparentemente, era restrita à devoção católica se tornou um dos aspectos centrais do interesse evangélico atual. Alister McGrath sugere que a espiritualidade cristã é “A busca por uma existência cristã autêntica e satisfatória, envolvendo a união das ideias fundamentais do cristianismo com toda a experiência de vida baseada em e dentro do âmbito da fé cristã. [...] No cristianismo, a espiritualidade significa viver o encontro com Jesus Cristo. A expressão ‘espiritualidade cristã’ refere-se a como a vida cristã é entendida e às práticas devocionais explícitas desenvolvidas com vistas a nutrir e sustentar esse relacionamento com Cristo. A espiritualidade cristã pode, então, ser compreendida como a maneira pela qual indivíduos ou grupos cristãos buscam aprofundar sua experiência com Deus ou ‘praticar a presença de Deus’, para usar uma frase associada particularmente ao Irmão Lourenço”. Assim sendo, devemos examinar onde a espiritualidade nasce e cresce, como deve ser protegida e quais sinais caracterizam uma espiritualidade autêntica, pois nem sempre percebemos a espiritualidade de forma correta. Para isso, trataremos do coração, em sentido bíblico, como o centro da espiritualidade, e examinaremos quais são aquelas tentações que afligem o coração do fiel e quais são os sinais que caracterizam o coração de um fiel realmente transformado pelo Espírito Santo.

O coração como o centro da espiritualidade

Na Escritura, no sentido metafórico, o coração é o lugar da vida espiritual e intelectual do homem, a natureza íntima da pessoa. É o lugar das emoções, seja da alegria ou da dor, da tranquilidade e da raiva, do entendimento e do conhecimento, das forças e poderes racionais, bem como das fantasias e visões. A estultice e os maus pensamentos também operam no coração. A vontade tem sua origem no coração, como também a intenção bem ponderada e a decisão que está pronta a ser colocada em ação. É o espaço da reverência e da adoração. Assim, o coração dos fiéis se inclina em fidelidade à lei de Deus e o coração dos ímpios é endurecido e está longe de Deus. Em sentido bíblico, coração significa a pessoa em sua totalidade.

O pecado marca, domina e estraga não somente os aspectos físicos do ser humano, não somente seu pensar, desejar, sentir, mas também a fonte dos mesmos, a parte mais íntima da existência humana, seu coração. Se o coração está escravizado pelo pecado, a totalidade do ser humano está em escravidão. Os pensamentos maus vêm do coração, desejos vergonhosos habitam no coração, o coração é desobediente e impenitente, duro e infiel, embotado e escurecido. Aqueles que nunca ouviram de Deus não podem se desculpar diante dele, porque têm no coração o conhecimento daquilo que é justo e reto aos olhos do Todo-Poderoso. Somente Deus pode revelar o que está escondido no coração do ser humano, examiná-lo e testá-lo.

Se o coração está escravizado pelo pecado, a totalidade do ser humano está em escravidão

E é no coração que se realiza a conversão do ser humano a Deus. E como John Bunyan lembrou: “A conversão não é um processo suave e fácil como algumas pessoas imaginam; se assim fosse, o coração do homem jamais teria sido comparado a um solo não cultivado, e a Palavra de Deus, a um arado”. Assim, é porque a corrupção brota do coração que Deus começa ali sua obra de renovação. Quando o Espírito Santo regenera o coração, o ser humano já não é escravo do pecado, mas sim um filho e herdeiro de Deus.

Devemos nos lembrar que o rei Salomão descreveu o coração como uma fonte da qual a vida procede, como a água que vem do poço: “Acima de tudo que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4,23). E, num sentido mais amplo, devemos nos lembrar que o cuidado com o coração nos leva a nos preocupar com muito mais do que um exterior legalista, moldado por atitudes e comportamentos de “fachada”, só para os outros verem. O homem vê a aparência, porém Deus vê o coração.

E, num nível mais fundamental, nosso coração só encontra satisfação em Deus. Como disse Agostinho de Hipona: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti”. E, como Richard Baxter afirmou, “em nada, a não ser no céu, vale a pena colocar nosso coração”. Sendo criados para nos satisfazermos em Deus, toda busca por satisfação que não começa e acaba no Deus uno e trino, criador e redentor, é uma busca estéril, infrutífera e idolátrica, que irá terminar em frustração, desilusão e, no fim, no inferno.

O que devemos vigiar no coração

Quais as áreas do coração para os quais precisamos estar atentos, sempre vigiando?

Richard Baxter notou quatro áreas em que precisamos vigiar: 1. A idolatria da busca por ser aprovado pelos homens, que é o temor dos homens. Esta idolatria se manifesta em nossa busca desesperada de buscar aprovação dos que estão à nossa volta; 2. A idolatria do poder e da influência, que é oorgulho. Esta idolatria se manifesta quando buscamos receber crédito por nossas realizações, nos impede de ver nossa grande necessidade de Cristo e nos leva a não termos medo das tentações; 3. A idolatria do prazer físico, que é asensualidade. Esta idolatria se apresenta quando dedicamos devoção aos apetites dos nossos sentidos e buscamos organizar a nossa vida em torno disto; 4. A idolatria das possessões, que é o materialismo. Os sinais desta idolatria se manifestam ao amarmos mais as possessões do que a Deus, buscando prover nossas famílias mais materialmente do que espiritualmente. Pode-se também acrescentar 5. a idolatria do Estado, do Partido ou da ideologia, quando esperamos deles o que deveríamos esperar de Deus, ou seja, saúde, prosperidade, segurança e propósito.

Assim, devemos notar que um comportamento modificado começa no coração: se quisermos que pessoas venham a conhecer a graça, devemos ir além de reduzir o comportamento delas a certas regras fixas. Isto é uma tentativa de manipular seu comportamento sem mudar o coração. Esta tentativa de mudança moralista não é durável, pois está baseada em abordagens emocionais ou superficiais. Pois, como Joseph Alleine escreveu: “A conversão é uma obra profunda – uma obra no coração. Ela invade o homem, a mente, os membros e toda a vida”.

A partir do ensino bíblico sobre o coração, todo trabalho de evangelização baseado em técnicas falha em notar o verdadeiro problema da conversão. Se Deus exige uma mudança interna, do coração, então uma mudança de comportamento não é o único problema da espiritualidade. As pessoas precisam ser levadas a entender seu coração, pois é ali que elas começam a se desviar. O evangelho é o poder de Deus para mudar as pessoas de dentro para fora. Então, pacientemente, devemos ensiná-las que seus problemas são do coração.

O ponto de partida é usar as exigências da lei moral para que pecadores compreendam sua situação diante de Deus. O problema é a maldade no coração, e a necessidade da graça de Deus em Cristo. De outro lado, o coração precisa ser enternecido pela graça. O comportamento pecaminoso é condenado por Deus, mas ele tem poder para assegurar: “E lhes darei um só coração, e porei dentro deles um novo espírito; tirarei deles o coração de pedra e lhes darei um coração de carne, para que andem nos meus estatutos, guardem as minhas normas e as cumpram; e eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus” (Ez 11,19-20). Assim, a verdadeira evangelização, enfatizando a lei de Deus e sua graça, coloca os pecadores numa encruzilhada. Nessa, uma das estradas é a estrada da necessidade. Ela deve levar os pecadores a clamar: “eu preciso ser salvo, salvação é a minha necessidade”. Também há a estrada da impossibilidade. Ela também os leva a suplicar: “eu não posso ser salvo; eu não consigo ser santo como Deus é santo; não posso ir a Jesus e me dobrar diante dele por minha própria força”. O alvo da evangelização é que estes pecadores clamem: “faze por mim, ó Senhor, o que eu não posso fazer por mim”.

Então, apenas arrependimento diante de Deus e fé no Senhor Jesus podem mudar o comportamento de seres humanos, pois assim o próprio coração é mudado.

Os sinais da verdadeira espiritualidade

As Escrituras nos exortam ao autoexame (2Co 13,5) e nos fornecem sinais pelos quais podemos detectar falsos cristãos (Mt 7,15-16). Quais seriam, então, as marcas da espiritualidade verdadeira? O que se deve esperar encontrar num coração verdadeiramente transformado?

Jonathan Edwards escreveu um tratado chamado Afeições Religiosas, em 1746, por época do Grande Avivamento ocorrido na Nova Inglaterra. Ele argumentou nessa obra que a fé verdadeira reside no coração, ou no centro das afeições, emoções e inclinações do ser humano. Assim, Edwards identificou quais seriam os sinais não confiáveis da espiritualidade. Esses sinais irrelevantes podem ser divididos em três principais áreas.

A primeira consiste de sinais não confiáveis de experiência religiosa. São eles: 1. a intensidade das emoções espirituais; 2. muitos tipos diferentes de inclinações religiosas simultâneas; 3. certa sequência e fervor nas emoções; 4. experiências dramáticas de conversão que não parecem produzidas pela própria pessoa; 5. versículos bíblicos vindo à mente de forma aparentemente espontânea; 6. manifestações físicas intensas.

A segunda consiste de sinais não confiáveis de comportamento religioso. São eles: 7. falar muito ou com eloquência sobre Deus e religião; 8. louvor a Deus frequente e emocionado; 9. amor aparente, concentrado em si mesmo, e que ama somente aqueles que são fáceis de amar; 10. dedicação zelosa ou demorada a atividades religiosas.

A terceira consiste de sinais não confiáveis de certeza de salvação: 11. estar convicto de sua própria salvação, na medida em que esta pode ser erroneamente baseada em moralidade e sinais místicos. Como Dietrich Bonhoeffer afirmou: “O único homem que tem o direito de dizer que foi justificado somente pela graça é o que deixou tudo para seguir a Cristo”; 12. também não se deve ficar convicto sobre a salvação de outros, pois um cristão verdadeiro e um hipócrita podem ser muito parecidos exteriormente, e somente Deus tem conhecimento absoluto de quem está em seu reino.

Apenas arrependimento diante de Deus e fé no Senhor Jesus podem mudar o comportamento de seres humanos, pois assim o próprio coração é mudado

Precisa ser dito que cristãos genuínos podem ter estes sinais. Mas confiar apenas neles, como sinais seguros de uma verdadeira espiritualidade, não é razoável ou sensato. É preciso buscar um fundamento mais sólido. Então, em segundo lugar, seguindo Edwards, devemos notar quais são os sinais confiáveis da espiritualidade e que devem estar no coração do fiel:

1. O reconhecimento de que uma espiritualidade autêntica procede de uma fonte divina e sobrenatural. O Espírito de Deus opera de forma permanente no cristão, e este passa a ter uma nova natureza, nascida e renovada graciosamente pelo Espírito Santo, que também transfere santidade ao cristão.

2. Atração a Deus e a seus caminhos por amor a eles. Como escreve Gerald McDermott: “O amor dos cristãos não está centrado em primeiro lugar nos interesses próprios, mas na beleza e grandeza de Deus e suas glórias. Ou seja, eles amam a Deus principalmente por causa do brilho da sua magnificência, beleza e glória, não pensando no benefício que podem ter de Deus. Eles são atraídos para o Filho de Deus, as obras e caminhos de Deus, especialmente o plano de Deus para a salvação dos seres humanos pecaminosos”.

3. Percepção da beleza da santidade divina. Edwards escreveu: “Deus apareceu a mim como um ser glorioso e amável, principalmente por causa de sua santidade”.

4. Conhecimento novo. A regeneração é uma mudança radical em que cada parte da pessoa é afetada, e passa-se a ver e conhecer toda a vida de modo diferente. Quem não tem o Espírito Santo não pode participar deste conhecimento, que envolve confiança e apreciação pelos fatos do Evangelho.

5. Convicção profunda de que as verdades divinas proclamadas pela fé cristã são concretas e fazem sentido intelectualmente.Crises de fé ocasionais podem causar lutas com dúvidas, e pode haver épocas de aridez espiritual, mas a mente e o coração estão convictos de que os fatos do Evangelho são reais.

6. A humildadese torna a base de toda virtude cristã. Em contrapartida, compreende-se que Deus odeia o orgulho.

7. Experimenta-se uma mudança de natureza, que é a transformação que o Espírito de Deus opera em nós. Aquele que tem fé no Senhor Jesus experimenta uma mudança interior, que é a implantação de uma nova natureza. Isso é chamado na Escritura de “nascer de novo”, tornar-se “nova criatura”, “ressuscitar”, tornar-se “renovado no espírito e na mente”, “morrer para o pecado e viver para Cristo”, “desvestir o homem velho e vestir o homem novo”, ser “enxertado em um novo tronco”, ter “a semente divina implantada no coração” e ser feito “participante da natureza divina”, e esta mudança é duradoura e gradual.

8. Um espírito semelhante ao de Cristo, que envolve mansidão, coragem para fazer a vontade do Pai, zelo contra ideias e comportamentos – não contra pessoas! –, perdão, amor e ajuda aos pobres. O fato de buscarmos crescer nisto é sinal de que agimos segundo o exemplo de Cristo.

9. A graça salvadora concede ao que crê em Jesus temor de Deus, que os faz ter medo de pecar, não por medo do inferno, mas porque eles não querem entristecer o salvador maravilhoso que amam. O sinal identificador do correto temor de Deus é a convicção de pecado e a dependência da graça.

10. Equilíbrio entre segurança e temor de Deus, alegria e tristeza, amor a Deus e aos outros, amor tanto pelos amigos como pelos inimigos, pelo vizinho bem como pela família, respeito pela alma e corpo, preocupação com nossos pecados e dos outros, confiança em Deus tanto para a salvação quanto para a provisão, perseverança nos bons e maus tempos, valorização da adoração pública e da oração secreta.

Os cristãos obtêm certeza de sua salvação olhando não para suas ações exteriores, mas sobretudo para as motivações dos seus corações

11. O cristão tem fome de Deus, deseja mais, não porque a graça não o satisfez, mas precisamente porque a graça o satisfez. A alegria em Deus nos faz querer conhecer mais de Deus.

12. Uma prática cristãqueenvolve comportamento e consciência transformados. Isso significa que o comportamento será caracterizado por entrega e perseverança, e a consciência internalizará o chamado ao sofrimento e obediência ao Evangelho.

Portanto, os cristãos devem procurar evidências em seu coração de que estão experimentando estes sinais, na prática. Se as experiências interiores não resultam em ação ou, pelo menos, na tentativa de agir, elas não são sinais confiáveis da graça. Pois os cristãos obtêm certeza de sua salvação olhando não para suas ações exteriores, mas sobretudo para as motivações dos seus corações.

Uma contínua dependência de Deus

E nunca é demais enfatizar que somente por meio do Espírito Santo um cristão pode ter uma vida marcada por estes sinais. Como coloca o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, estes sinais que se esperam encontrar num cristão “têm como origem, motivo e objeto imediato o próprio Deus. São infundidas no homem com a graça santificante, tornam-nos capazes de viver em relação com a Trindade e fundamentam e animam o agir moral do cristão [...]. Elas são o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas faculdades do ser humano”.

Em conclusão, como John Owen escreveu, “a inclinação constante do coração dos crentes é para o bem, para Deus, para a santidade, para a obediência”. Que o Deus uno e trino opere em nossas vidas de tal forma que tenhamos corações assim dispostos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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