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Cristãos “progressistas” tendem a selecionar os trechos da Bíblia com os quais concordam e desprezar aqueles dos quais discordam.
Cristãos “progressistas” tendem a selecionar os trechos da Bíblia com os quais concordam e desprezar aqueles dos quais discordam.| Foto: 1045373/Pixabay

Regularmente os meios de comunicação de massa destacam em alguns de seus programas na tevê ou em artigos algum “pastor” ou celebridade reiterpretando as doutrinas e ética cristã tradicionais. Ao ouvi-los, fica claro que são, na verdade, “cristãos progressistas”, não raro associados a partidos de extrema-esquerda. Recentemente, tratei dos valores desse movimento nessa coluna de forma introdutória. Agora, quero examinar o que os cristãos progressistas creem sobre a Escritura Sagrada.

Uma antiga heresia

Quando estudamos a história da igreja, aprendemos que cristãos sempre foram confrontados com falsas doutrinas e heresias. A principal heresia que a nascente igreja cristã enfrentou foi o gnosticismo, já no século 2.º. Este era um movimento sincretista, que se caracterizava por professar uma combinação das principais ideias religiosas e filosóficas de sua época, buscando ser um tipo de religião universal. No entendimento gnóstico, a alma seria salva não apenas pelo conhecimento de uma suposta verdade, mas também pelo aprendizado de várias fórmulas mágicas, pelas quais se poderia ter acesso a diversas partes do mundo espiritual.

O gnosticismo, então, pretendia transformar o cristianismo numa especulação esotérica. Ao subverter todas as principais declarações de fé cristãs, rejeitava ou reinterpretava o conteúdo básico cristão. Segundo Bengt Hägglund, os gnósticos combatiam a crença cristã na criação divina: o criador, algumas vezes associado com YHWH, não seria o Deus supremo, e a própria criação era considerada vil e má. Por trás da completa rejeição ao Deus de Israel, havia um forte componente antissemita no gnosticismo. Seus adeptos negavam a existência terrena do Messias, rejeitando seu nascimento virginal, sua morte expiatória e ressurreição corporal. E o Espírito Santo seria uma mera energia espiritual. Também negavam a ressurreição do corpo, baseados na ideia de que tudo o que é físico ou material é mau e não espiritual. No campo ético, oscilavam entre um moralismo radical ou um estilo de vida libertino e grosseiro. E, ainda que usassem linguagem cristã, esta era usada para significar o que queriam que significassem.

O gnosticismo pretendia transformar o cristianismo numa especulação esotérica. Ao subverter todas as principais declarações de fé cristãs, rejeitava ou reinterpretava o conteúdo básico cristão

A igreja cristã prontamente enfrentou esta heresia, afirmando que o verdadeiro evangelho está numa leitura do sentido natural da Escritura – e não em dependência a priori de categorias filosóficas impostas à Escritura. Para isto, a igreja afirmou o Credo dos Apóstolos como ajuda e guia no estudo da Escritura pelos cristãos, e como teste de fidelidade às doutrinas que os apóstolos e a Igreja pregavam e ensinavam. Como Irineu de Lião escreveu em Contra as heresias: “[Nós] nos esforçamos em pôr às claras e apresentar o corpo feio dessas raposas. Já não serão necessários muitos discursos para refutar uma doutrina que se tornou conhecida de todos. (...) Assim nós, que manifestamos os seus mistérios escondidos e envolvidos no silêncio, não precisamos de muitas argumentações para refutar a sua doutrina. Torna-se fácil [...] derrubar suas doutrinas falsas e sem fundamento e mostrar como discordam da verdade”. Ele ainda afirmou: “Arrancar-lhes a máscara e fazer conhecer sua doutrina já é uma vitória sobre eles”. Mas, mesmo tendo sido derrotado no passado, sobretudo pelos escritos de Irineu de Lião, o gnosticismo volta e meia reaparece. No século 19, com a teologia liberal e suas variantes, agora com as vestes do “cristianismo progressista”.

Mas, como Alister McGrath coloca, “N.T. Wright [...] recusa a ideia difundida de que o gnosticismo era inovador, fazendo surgir uma onda de energia intelectual criativa que ameaçava varrer as ideias tradicionais. Se muito, Wright argumenta, os gnósticos é que são [...] conservadores culturais, ecoando muitos dos temas das religiões de mistério da época. Em contraste, os cristãos ortodoxos ‘estavam desbravando novos terrenos’, e ao fazê-lo, encontravam oposição. Onde alguns sugerem que os evangelhos gnósticos representam alternativas radicais aos evangelhos canônicos ‘conservadores’, Wright afirma que a verdade é totalmente o oposto. É a mensagem do Novo Testamento a verdadeiramente radical”. Nesses termos, é a fé cristã que é inovadora e contracultural, e o gnosticismo e suas variantes são uma rendição reacionária à cultura da época.

O gnosticismo contra-ataca

Como o antigo gnosticismo, a princípio o chamado “cristianismo progressista” pode ser um pouco difícil de detectar porque, normalmente, os “cristãos progressistas” não estão unidos em torno de um credo formal ou um conjunto de crenças. Na verdade, o “cristianismo progressista” enfatiza a ação sobre a fé; o que se faz tem mais importância sobre em quem se deposita a fé. Como os antigos gnósticos, os “cristãos progressistas” usam muito do mesmo vocabulário dos cristãos. Também participam dos mesmos sacramentos – como o batismo e a ceia – e até cantam hinos e recitam os antigos credos. No entanto, para os “cristãos progressistas” – como também para os gnósticos, no passado – essas palavras, frases, sacramentos e tradições assumem um significado totalmente novo. São reinterpretadas segundo seus pressupostos, ditados por uma cultura relativista, sentimentalista e tribal. É por isso que pode ser confuso e frustrante identificar suas ideias em livros, entrevistas e palestras. No entanto, existem algumas crenças que sustentam este movimento.

A banalização da Escritura Sagrada

Alisa Childers, que foi integrante da banda cristã ZOEgirl, trata dos valores do “cristianismo progressista” em seu livro Another Gospel: A Lifelong Christian Seeks Truth in Response to Progressive Christianity, que será lançado em breve no Brasil pela Editora Fiel. Seguirei as percepções de Childers sobre a compreensão que esse movimento tem da Escritura Sagrada.

Segundo Childers, os “cristãos progressistas” veem a Escritura como um registro do que as pessoas acreditavam sobre Deus nos tempos e lugares em que viviam, em vez da Palavra de Deus inspirada e sem erro: “Na igreja progressista, a Bíblia é vista mais como um antigo diário de viagem espiritual do que como a inspirada, inerrante e autorizada Palavra de Deus. Os escritores bíblicos são vistos como pessoas bem-intencionadas da Antiguidade que faziam o possível para compreender Deus nos tempos e lugares em que viviam, mas não necessariamente falavam por Deus. A Escritura também é vista como contraditória, não coerente internamente e não autorizada para os cristãos”.

Não é incomum que um “cristão progressista” expresse desacordo com um escritor bíblico ou rejeite trechos bíblicos que considere inúteis. Na verdade, os líderes progressistas incentivam os cristãos a ignorar, negar e até mesmo se opor abertamente à Escritura, por serem, no entendimento destes, “patriarcalistas”, “imperialistas”, “punitivas” e “excludentes”. Esse ponto é importante, na medida em que os que aderem à agenda desse movimento têm transferido a autoridade da Escritura para seus pensamentos, sentimentos e preferências – e que têm como pressuposto o ideário esquerdista.

Como Childers destaca, uma das principais diferenças entre o “cristianismo progressista” e o cristianismo histórico é a sua visão da Escritura. Desde os primórdios, os cristãos consideram a Escritura como a Palavra de Deus e a autoridade suprema para nossas crenças e comportamento. Por exemplo, pode-se ler na Confissão de Fé de Westminster, muito influente entre presbiterianos, congregacionais e batistas:

“Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos os livros do Antigo e do Novo Testamento, todos dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e prática. [...] A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus [...] que é o Autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a Palavra de Deus. Pelo testemunho da Igreja podemos ser movidos e incitados a um alto e reverente apreço pela Escritura Sagrada; a suprema excelência do seu conteúdo, a eficácia da sua doutrina, a majestade do seu estilo, a harmonia de todas as suas partes, o escopo do seu todo (que é dar a Deus toda a glória), a plena revelação que faz do único meio de salvar-se o homem, as suas muitas outras excelências incomparáveis e completa perfeição são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser ela a Palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão e certeza da sua infalível verdade e divina autoridade provêm da operação interior do Espírito Santo que pela Palavra e com a Palavra testifica em nossos corações. [...] O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, o Juiz Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura”.

Não é incomum que um “cristão progressista” expresse desacordo com um escritor bíblico ou rejeite trechos bíblicos que considere inúteis

De outro lado, o “cristianismo progressista” enfatiza a crença pessoal combinada à consciência de classe ou identitária acima da inspiração e autoridade da Escritura. Uma forma de perceber isso, como Childers afirma, é que pastores e personalidades conectadas a este movimento constantemente estarão dizendo em suas palestras, ensinos ou entrevistas que 1. “a Bíblia é um livro humano”, 2. “não é possível tratar a Bíblia como um texto que revela verdades absolutas”, 3. “discordam do apóstolo Paulo nessa questão”, 4. “preferem ficar com Jesus e não com Paulo”, 5. “a Bíblia tolera a imoralidade, como o genocídio, então somos obrigados a rejeitar o que ela diz em certos lugares” ou 6. “a Bíblia ‘contém’ a Palavra de Deus, mas ‘não é’ a Palavra de Deus”.

Com isso, como aponta Childers, nas comunidades progressistas experiências pessoais, sentimentos e opiniões tendem a ser valorizados acima da verdade objetiva – em outras palavras, a subjetividade política e as classes identitárias passam a ser a verdade por meio da qual a Escritura é julgada. À medida que a Escritura deixa de ser recebida como a palavra definitiva de Deus, o que uma pessoa sente ser uma verdade torna-se a autoridade máxima para a fé e a prática. Assim, poderão ser ouvidos comentários por parte dos “cristãos progressistas” do tipo 1. “esse versículo da Bíblia não ressoa em mim”, 2. “a gente precisa atualizar a Biblia”, 3. “eu achava que a homossexualidade era um pecado até que conheci e fiz amizade com alguns homossexuais”, 4. “a prática homossexual condenada nos textos bíblicos não tem relação com as relações monogâmicas e estáveis do casamento homossexual contemporâneo, mas diz respeito à promiscuidade e abuso sexual” ou 5. “eu não consigo acreditar que Jesus enviaria pessoas boas para o inferno”.

Com isso, para os “cristãos progressistas” não apenas questões éticas como homossexualidade e aborto devem ser repensadas, mas doutrinas como o nascimento virginal, a morte expiatória e a ressurreição de Jesus passam a ser reinterpretadas ou rejeitadas. Então, poderão ser ouvidos comentários por parte dos “cristãos progressistas” tais como 1. “a ressurreição de Jesus não precisa ser factual para comunicar a verdade”, 2. “são os autores da Bíblia que criam na ressurreição”, 3. “a posição histórica da igreja sobre sexualidade é arcaica e precisa ser atualizada”, 4. “Deus cometeu ‘abuso infantil cósmico’ na cruz” ou 5. “a ideia de um inferno literal é ofensiva para os não cristãos”.

À medida que a Escritura deixa de ser recebida como a palavra definitiva de Deus, o que uma pessoa sente ser uma verdade torna-se a autoridade máxima para a fé e a prática

Portanto, os “cristãos progressistas”, seguindo o espírito desse tempo, rejeitam uma moralidade e verdade objetivas, aderindo ao relativismo. Para estes, se algo parece verdadeiro, então deve ser a verdade. Se parece certo, está certo. Se parece real, é a realidade. Em outras palavras, os próprios pensamentos e sentimentos da pessoa são sua autoridade final para o que é verdadeiro e real. Assim sendo, para os “cristãos progressistas”, a autoridade da Escritura deve ser negada. Mas ninguém vive sem uma autoridade final – se uma fonte de autoridade for removida, ela será substituída por outra. Se esta fonte não for a revelação de Deus na Escritura, pode ser a razão e a lógica, a ciência, a experiência ou os sentidos, a intuição, o Estado, o Partido ou a Ideologia. Logo, como Childers afirma, “[o cristianismo progressista] é baseado na ideia de ‘viva a sua verdade’. [...] Você precisa sair e descobrir a sua verdade” – ainda que necessariamente submissa à autoridade de certas “verdades” políticas. Mas, para a fé cristã, Deus não se revela por meio da experiência individual, somente em sua Palavra.

Assim sendo, os “cristãos progressistas” transferem a autoridade para o que acreditam ser verdade da Escritura para eles mesmos – tornando-se sua própria bússola epistemológica, que inevitavelmente será dirigida pela cultura ou o Zeitgeist político. Assim, no fim, somente aquilo que dignifica (em um sentido ideologicamente muito específico) as mulheres, os negros, os pobres e os excluídos em geral tem autoridade para os “cristãos progressistas”. Só que, como diz Alister McGrath, “a crença de que a heresia é intelectual e moralmente libertadora diz muito mais sobre o clima cultural de hoje no Ocidente do que sobre as realidades dos primeiros séculos da existência cristã. Mas, como permite qualquer ato de recepção cultural de ideia, a relevância para o presente de qualquer ideia antiga tem tanto a ver com o que os seres humanos contemporâneos estão buscando quanto com o que as ideias antigas têm a oferecer. O significado da heresia não está, portanto, dentro da própria heresia, mas é antes construído dentro da relação entre a heresia original e seus intérpretes contemporâneos”. No entanto, para a fé cristã, Deus não se revela por meio da cultura, somente em sua Palavra.

Veneno misturado ao evangelho

E o que isso teria a ver com a heresia cristã do século 2.º? Os “cristãos progressistas” são uma reaparição do antigo gnosticismo, que busca reinterpretar a Escritura e redefinir os ensinos e a ética cristãos, de acordo com a cultura e subjetividade pessoal. Crenças éticas cristãs tradicionais, como a exclusividade do casamento entre um homem e uma mulher e a abstinência antes do casamento são tratadas dentro do ambiente “cristão progressista” como opressivas e embaraçosas. Enquanto isso, esse movimento se identifica como “cristão” e afirma seguir a Jesus. Mas, como Childers corretamente insiste, essa heresia está seduzindo muitos cristãos desavisados ​​e confundindo o corpo de Cristo sobre o que a Escritura é, o que Jesus realizou na cruz e o que é o evangelho.

Mas não devemos nos surpreender com nada disso. Como Childers lembra, desde a época do Novo Testamento heresias e falsas doutrinas desafiaram a igreja. E Jesus nos alertou que isso aconteceria: “Cuidado com os falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em pele de ovelha, mas interiormente são lobos devoradores” (Mt 7,15). Jesus não apenas predisse que os cristãos seriam tentados por falsas doutrinas e heresias, mas apontou que esses ensinos seriam propagados por pessoas que afirmam ser cristãs. Eles se pareceriam com ovelhas, andariam como ovelhas e falariam como ovelhas. Mas eles não seriam ovelhas – seriam lobos predadores salivando para se banquetear com as ovelhas. Essas palavras de Jesus se aplicam ao movimento dos “cristãos progressistas”. Usando muitas das mesmas palavras tradicionalmente associdas à fé cristã e se apresentando como “cristãos”, os progressistas misturam o evangelho com veneno. Portanto, como afirma Childers, “o cristianismo progressista não é simplesmente uma mudança na visão cristã das questões sociais (...) é uma religião totalmente diferente – com outro Jesus – e outro evangelho”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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