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"Efeitos do bom governo", parte do conjunto de afrescos da "Alegoria do bom e do mau governo", de Ambrogio Lorenzetti.
“Efeitos do bom governo”, parte do conjunto de afrescos da “Alegoria do bom e do mau governo”, de Ambrogio Lorenzetti.| Foto: Google Art Project/Wikimedia Commons

Para a fé cristã, Deus estabelece na criação várias instituições para a ordem social, cada qual com sua própria esfera de atividade e missão, que é também responsável diante dele. Esta visão da sociedade não se centraliza no indivíduo nem na instituição, mas na soberania de Deus sobre as esferas da criação. Como David Koyzis afirma, esta posição é uma afirmação não hierárquica da sociedade civil, na medida em que “1. a soberania derradeira pertence somente a Deus; 2. toda soberania terrena é subsidiária da soberania de Deus e 3. não há nenhum foco último (ou penúltimo) de soberania neste mundo do qual todas as demais soberanias sejam derivadas”.

Tal compreensão destaca, como escreveu Gordon Spykman, que “todos os homens vivem numa rede de relacionamentos divinamente ordenada”. Nesse sentido, “as pessoas não encontram sentido ou propósito quer em sua própria individualidade, quer como parte de um todo coletivo”. Na verdade, “elas atendem a seus chamados dentro de uma pluralidade de associações comunais, como família, escola e Estado”; portanto, “Deus ordenou cada uma dessas esferas de atividade como parte da ordem original. Juntas, elas constituem a comunidade da vida”.

Em outras palavras, Deus governa sobre toda a sociedade, e as várias instituições que a compõem – Estado, família, escola, Igreja, trabalho – se encontram todas debaixo de seu reinado e estão em igualdade diante dele. Como escreveu Karl Barth: “Aquele de quem procede todo o poder e por meio de quem toda autoridade existente é estabelecida é Deus, o Senhor, o Deus desconhecido e abscôndito, o Criador e o Redentor, o Deus que elege e rejeita. Isso significa dizer que os poderes constituídos são medidos tendo Deus por referência, assim como são todas as coisas humanas, temporais e concretas. Deus é o seu princípio e seu fim, sua justificação e sua condenação, seu ‘Sim’ e seu ‘Não’”. Nessa posição, a família, a escola e a igreja e o trabalho são esferas independentes do Estado, pois existem sem este, derivando sua autoridade somente de Deus. O papel do Estado é mediador intervindo quando as diferentes esferas entram em conflito entre si ou para defender os fracos contra o abuso dos demais.

Deus governa sobre toda a sociedade, e as várias instituições que a compõem – Estado, família, escola, Igreja, trabalho – se encontram todas debaixo de seu reinado e estão em igualdade diante dele

Abaixo, é oferecido um desenvolvimento dessa posição por meio de algumas premissas que podem guiar o entendimento evangélico da relação entre o cristão e a política.

A distinção entre a Igreja e o Estado

Em primeiro lugar, afirma-se a distinção entre igreja e Estado, lembrando que toda autoridade procede de Deus. As tarefas da igreja e do Estado são de dois tipos e são distintas, não podendo ser confundidas. Deus instituiu o governo civil para nosso benefício a fim de refrear o mal e promover o bem, e deve haver distinção entre aquilo que é governado pela igreja e aquilo que está sob a autoridade do governo civil. A existência do Estado deve ser reconhecida como um dom e uma ordem de Deus. Portanto, os que assumem cargos públicos devem reconhecer que sua autoridade é delegada. O governo estabelecido por Deus é mediado pelo povo, que elege seus governantes. Estes são eleitos para servir ao povo, ao mesmo tempo em que cumprem suas tarefas com senso de dever, pois sabem que darão contas de seus atos perante uma autoridade maior.

Somente Deus tem todo o poder

Em segundo lugar, rejeita-se o conceito de soberania absoluta do Estado e o conceito de soberania absoluta do povo. Para a fé cristã, o poder reside em Deus e em Cristo, que é o Senhor de todo poder e autoridade e “o soberano dos reis da terra” e “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 1,5; 19,16), comandando todas as esferas sociais. Somente Deus detém o poder absoluto. Portanto, Deus é a fonte final da lei e de toda autoridade. Logo, prestar fidelidade ou lealdade absoluta ao Estado é idolatria, pois é Deus quem estabelece o certo por meio de sua lei; portanto, deve-se compartilhar a lei de Deus por meio da mudança das estruturas sociais.

Por isso, na mesma medida em que as leis estabelecidas numa nação devem ser derivadas da lei de Deus, essas leis devem ser aplicadas a todas as pessoas, incluindo os governantes. Mesmo numa nação que não é cristã, pode-se apelar à lei de Deus escrita na criação e gravada na consciência dos seres humanos, que é coincidente com a lei revelada. Portanto, numa nação, não há ninguém que esteja acima da lei. Esse é o princípio da lex rex, a lei é o rei, que se opõe ao princípio despótico da rex lex, o rei é a lei. Como Calvino escreveu: “O Senhor, portanto, é o Rei dos reis, e a ele devemos ouvir acima de todos tão logo abra sua boca. De forma secundária, devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre nós, mas somente sob a autoridade de Deus. Se as autoridades ordenarem algo contra o mandamento de Deus, devemos desconsiderá-lo completamente, seja quem for o mandante”.

Autoridade delegada

Em terceiro lugar, Deus delega autoridade tanto ao governante quanto às pessoas. Ao ocupar um cargo de autoridade, nenhum homem tem poder sobre outro, a não ser quando essa capacidade é delegada por Deus. Mas essa autoridade é relativa e revogável. Por isso, os cristãos devem opor-se a todo sistema político totalitário. Mais do que um direito, isto é um dever. A fé cristã honra as autoridades, embora negue ao Estado o direito de intervir em matérias de culto, doutrina e ética. O respeito à autoridade é necessário, mas jamais ao custo da liberdade de consciência, pois somente Deus é o único Senhor. Neste sentido, como afirma Harro Höpfl, “no momento em que os magistrados vão além dos limites de sua autoridade, [...] tornam-se semelhantes aos ladrões, usurpadores e violadores”. Já que a autoridade não é algo intrínseco ao governante, mas delegado por Deus, os cristãos devem resistir, pelos meios corretos e legítimos, a quem exerce a autoridade política contra a vontade de Deus.

Para a tradição cristã, o governo é governo legítimo quando e na medida em que é servo de Deus. Assim, não devemos identificar um governo, de forma direta e automática, com a vontade de Deus. Nesse sentido, a resistência ao Estado que faça mau uso da autoridade que lhe foi delegada deve ser entendida como desobediência civil. Desde que exercido dentro de limites aceitáveis, esse é um mecanismo legítimo a que tem direito todo cidadão e, de forma específica, todo cristão, quando em confronto com um Estado totalitário que interfere na esfera litúrgica, doutrinária ou ética, e requer para si o que equivale à adoração. Portanto, a “rebelião contra os tiranos é obediência a Deus”.

Nenhuma ideologia é absoluta

Em quarto lugar, nenhuma ideologia é absoluta nem pode ser confundida com o evangelho. Com acerto, a Declaração Teológica de Barmen afirma: “Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel-prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes”. Sempre que cristãos identificam determinada ideologia com o reino de Deus ou com a mensagem bíblica, essa mensagem não apenas foi distorcida, como também acabou sendo obliterada. Por outro lado, a igreja deve manter vigilância sobre o Estado. Não se pretende com isso substituir o sermão baseado na Escritura pelo discurso político. Adorar a Deus, proclamar sua Palavra e ministrar os sacramentos é a principal tarefa da igreja, além da qual não existe outra. Ao proclamar com fidelidade a Palavra de Deus, a Igreja influencia o Estado, fazendo com que suas leis se conformem com a vontade de Deus. De tal fidelidade ao chamado primário da comunidade cristã decorrem consequências políticas e sociais na sociedade.

Para a tradição cristã, o governo é governo legítimo quando e na medida em que é servo de Deus. Assim, não devemos identificar um governo, de forma direta e automática, com a vontade de Deus

A origem da corrupção

Em quinto lugar, o realismo cristão ressalta que a corrupção na política tem origem primariamente no coração dos seres humanos. Se a doutrina da criação afirma a dignidade humana, o ensino bíblico sobre a queda afirma a corrupção humana. Os pecados individuais se tornam pecados estruturais, tais como idolatria, egoísmo, violência, despotismo, corrupção; estes acabam por afetar as estruturas do poder constituído. A solução para essa situação seria uma conversão verdadeira e individual dos governantes e também dos governados. Apenas quando houver uma inclinação do coração das pessoas ao Deus verdadeiro poderá haver transformação na política. Haverá esperança quando os governantes pautarem suas ações em como podem agradar a Deus através do poder público e não apenas em benefício próprio ou mesmo dos governados. Mas, na prática, não é isto que temos visto. Mesmo os governantes que se dizem cristãos acabam por reproduzir atitudes semelhantes àqueles que não são cristãos. E, assim, reproduzem em suas ações os pecados da sociedade, em vez de influenciá-la, santificando-a.

Por outro lado, a revelação geral e a graça comum ensinam que há princípios que, se aplicados, fomentarão uma agenda moral e virtuosa na política. Ao fim, nem todos os governantes se converterão a Cristo e tão pouco apenas cristãos ocuparão cargos públicos. Portanto, deve-se buscar que a lei de Deus seja propagada e reconhecida como o caminho para a ética na política. Sendo assim, podemos cooperar com não cristãos como cobeligerantes na esfera política, lutando contra males aos quais também nos opomos.

O fundamento da cobeligerância é a área de consenso ético que tem por base a Escritura: por exemplo, homicídio, adultério, furto e “falso testemunho” são moralmente errados. Na esfera política, pode-se servir pontual e transitoriamente com pessoas, grupos, movimentos, organizações e instituições que convirjam em termos de valores éticos cristãos. A Igreja mantém sua independência e identidade, tendo a Escritura como padrão e o Espírito Santo como fonte de discernimento, assim como a confissão de fé e catecismos como “fiel exposição do sistema de doutrina, ensinado nas Escrituras”.

A mais viável forma de governo

Em sexto lugar, por causa do pecado na sociedade, a república se torna não apenas o melhor sistema, mas o sistema mais viável. A forma de governo que mais se aproxima do modelo bíblico é a república, na qual a nação é governada pela lei constitucional e administrada por representantes eleitos pelo povo. Porque somente Deus concentra em si todo o poder, deve haver a divisão e a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, de modo que nenhum governo ou ramo do governo monopolize o poder. Assim, de acordo com Gary Crampton e Richard Bacon, a república se torna o melhor sistema, pois é a salvaguarda das liberdades individuais, “designada para fragmentar o poder político, de modo que ele não possa ameaçar as vidas, liberdades e propriedades”. Portanto, devido à inclinação humana para a injustiça, advinda do pecado, a república torna-se necessária; e devido à inclinação humana para a justiça, capacitada pela graça comum, a república torna-se possível.

Portanto, em conclusão, os cristãos defendem os fatores que definem uma república, que são aqui esboçados e que podem ser deduzidos ou inferidos da Escritura:

1. Ênfase nas funções primordiais do Estado, em que os governantes têm a obrigação de zelar pela segurança do povo, afinal, para isso pagamos impostos;
2. Limitação da extensão e do poder do Estado, pois, a partir das Escrituras, entende-se que o governo não tem autoridade para estabelecer impostos exorbitantes, redistribuir propriedades ou renda ou confiscar depósitos bancários;
3. Separação e cruzamento fiscalizador (freios e contrapesos) entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para que nenhum poder possua poderes absolutos, e para que sempre haja entre os poderes separação, independência e harmonia;
4. Lembrar que o papel do Estado não é igualar a todos, mas dar oportunidade de ascensão social a todos, investindo e promovendo educação e serviços médicos de qualidade;
5. Apoio a associações e organizações voluntárias que promovam a justiça em todos os aspectos da vida, especialmente o pobre, o estrangeiro, o órfão, a viúva e o que sofre violência. Niall Ferguson oferece um exemplo da amplitude de serviço oferecida por comunidades voluntárias no passado: “As associações afiliadas a 112 igrejas protestantes em Manhattan e no Bronx [em Nova York] na virada do século 20 eram responsáveis por 48 escolas industriais, 45 bibliotecas ou salas de leitura, 44 escolas de costura, 40 jardins de infância, 29 bancos de depósitos e associações de empréstimos, 21 agências de empregos, 20 ginásios e piscinas de natação, 8 dispensários, 7 berçários em tempo integral e 4 pensões”;
6. Promoção de uma ética protestante do trabalho, que, como escreveram Gary Crampton e Richard Bacon, “é um conjunto de virtudes econômicas [fundamentadas na Escritura]: honestidade, pontualidade, diligência, obediência ao quarto mandamento – ‘seis dias trabalharás’, obediência ao oitavo mandamento – ‘não furtarás’, e obediência ao décimo mandamento – ‘não cobiçarás’”, reconhecendo que a ênfase no “trabalho produtivo origina-se da Bíblia e da Reforma”;
7. Direito à propriedade privada como direito fundamental. A advertência de Wayne Grudem é importante: “Em algumas culturas, direitos de propriedade são egoisticamente reservados a uma minoria de pessoas poderosas, e as regulamentações [burocráticas] governamentais são tão complexas e morosas que tornam impossível às pessoas pobres possuir qualquer propriedade ou um negócio pequeno. Nos países comunistas, a propriedade privada de casas e negócios é proibida por lei, e o governo possui todas as fábricas e todos os imóveis. Tal sistema é maligno porque permite às pessoas possuir apenas alguns bens e, dessa maneira, as impede de ter a oportunidade de glorificar a Deus pela posse de um bem, de uma casa ou de um negócio”;
8. Alternância do poder civil, que impede que um partido ou autoridade se perpetue no poder, assim como a defesa do pluralismo político e partidário;
9. Centralidade do contrato social, que é um acordo entre os membros de uma sociedade pelo qual reconhecem a autoridade sobre todos de um conjunto de regras; a constituição, que limita o poder, organiza o Estado e define direitos e garantias fundamentais;
10. Garantia das liberdades individuais, por meio do estabelecimento de normas gerais de conduta, que redundem em liberdade de expressão, associação e de imprensa.

Esses são o conjunto de princípios que a tradição da Reforma tem afirmado, ao tratar da relação dos fiéis e da comunidade cristã com o Estado.

O Estado não é a solução última (ou penúltima) para a sociedade, pois o melhor que o Estado pode fazer é refrear a injustiça causada pelo pecado. A salvação somente é encontrada em Deus e em Jesus Cristo

Somente Deus é a solução última

O alerta de Stephen C. Perks deve ser considerado com seriedade:

“Hoje, a maioria das pessoas de nossa sociedade, entre as quais os cristãos, busca no Estado a maior parte daquilo que em uma sociedade cristã deve ser buscado em Deus, incluindo-se segurança, saúde, prosperidade, paz, etc. [...] Essas coisas, como mostra a Bíblia, são bênçãos de Deus para um povo obediente. Mas, como nação, não mais as buscamos em Deus; em vez disso, nós as buscamos no Estado todo-poderoso, entendendo que é o Estado moderno que nos abençoa com tudo isso em sua generosidade. [...] Entende-se que o Estado existe para providenciar para a sociedade todas as bênçãos que devemos buscar em Deus. Se isso não for idolatria, é difícil definir o que seja. Transformamos o Estado em religião, em ídolo, e aí está um problema sobretudo para aqueles cristãos entre os quais o socialismo, tanto como ideologia quanto como modo de vida, é muito forte. [...] Em vez da liberdade de viver a vida sob o comando de Deus e a seu serviço, praticando as virtudes cristãs, temos o Estado humanista e secular, que a tudo controla, gerenciando a vida em nosso lugar, de acordo com sua própria ideologia religiosa. É inegável, porém, que esse Estado não consegue oferecer a justiça nos moldes da visão de mundo cristã. Em suma, o Estado secular moderno tornou-se igualmente um deus, um ídolo ao qual as pessoas se voltam”.

Portanto, que os cristãos orem e intercedam pelos governantes, “para que tenhamos uma vida tranquila e serena, em toda piedade e honestidade” (1Tm 2,1-3). O Estado não é a solução última (ou penúltima) para a sociedade, pois o melhor que o Estado pode fazer é refrear a injustiça causada pelo pecado. A salvação somente é encontrada em Deus e em Jesus Cristo. Portanto, o papel da igreja é proclamar essa salvação como a única solução final para a sociedade: “Porque o Senhor é o nosso juiz, o Senhor é o nosso legislador, o Senhor é o nosso Rei; ele nos salvará” (Is 33,22).

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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