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Lembro que, dos três meses que passei diariamente pelo centro da cidade, o que mais me chamou a atenção foram as residências improvisadas que se confundiam com meu trajeto. Sim, eram residências. Completas e complexas por sua falta de intimidade, mescladas com aquele terreno impróprio, decoradas com colchões de casal, cobertas, travesseiros, pets e grupos que formam verdadeiras mini comunidades alocadas no mesmo endereço sem número.

Nunca fui incomodada diretamente por nenhum deles, sempre passei por ali – na Marechal Floriano com Rua XV, mais especificamente – e olhei-os. De longe. Que me viram. De longe. Nenhum se colocou à frente do outro. Nenhum estaria nunca na vida do outro não fosse o fato de que eu poderia pisar em seu quintal sem precisar pedir. Mas nunca o fiz para não me dar ao trabalho expor ao risco. Atravessei a rua, desviei caminho e – depois de dar aquela reparada – desviei o olhar. Olhei-os e, sim, somente por tempo suficiente para formar um rápido sentimento.

Não sou uma má pessoa. Sou uma cidadã correta, que não comete crimes e paga seus impostos. Uma pessoa que estuda, namora, ama os pais e que trabalha bonitinho desde que se formou na faculdade. Eu sou uma pessoa normal, dessas que luta para ser mais agradável, que pede desculpas nas brigas em que acha que errou, que diz “ai meu deus” quando tem medo. Eu sou igual a você! Ao seu amigo. À sua mãe. A seu namorado ou namorada. Sou igual ao meu chefe e ao chefe dele. Não sou igual, e é aí que entra a coisa, ao pessoal que mora ali na esquina da Marechal com a XV. Nem você é. Nem a sua mãe, nem seu amor, ou seu ou o meu chefe. Somos diferentes.

Engraçado que, se pegarmos o código civil brasileiro, em lugar nenhum encontraremos argumentos que justifiquem o que estou falando, muito pelo contrário. O código preconiza que todos sejamos iguais, em direitos e deveres. Lá diz que não há diferenças perante o estado, a jurisprudência, perante nenhum órgão legislativo, mas eu insisto em dizer que somos diferentes.

Sinto que sou diferente daqueles que moram na calçada, pois eu posso exercer e usufruir das benesses da minha liberdade. Liberdade. Não é a primeira coisa que passa na cabeça de quem vê pessoas que moram sem portões? “Esses sim são livres! Não há muros que os separem ou grades que os prendam! São livres, podem correr para onde e quando bem entenderem”. Bom, sim, podem ir para onde e na hora que quiserem, mas: correr para onde? Para fazer o que e com qual propósito? Correr da polícia? Ah, isso não é exercer da liberdade, não é, amiguinho? Ir quando bem entender? Mas o que é o “quando”, se não se tem relógio?

Caminhamos, eu e você (os iguais), em nossos calçadões sempre com propósito, indo ou vindo do trabalho, do almoço, do banco, dentista, loja de mimos, enfim, caminhamos exercendo nossa liberdade e tendo a plena certeza do que fazemos, por qual motivo fazemos e que se quisermos temos a opção de não fazer nada.

Eles, que em nada se parecem conosco, não têm compromisso. Eles não têm hora para sair e nem pressa para chegar. Por eles ninguém espera e nem fazem questão de que estejam ali, muito pelo contrário: por eles cobram ações do poder público que garantam seu sumiço.

Sumiço humanizado, pelo amor de deus! Não se pode obrigar sua retirada – mas ah, se pudesse! – então roga-se ao poder público que faça sua parte para que não precisemos nós, os iguais, olhar para eles que, de tão diferentes, nos ferem o ego. Fazem questionar nossas mais arraigadas certezas: a de que não se pode viver sem conforto, que não se pode ficar sem um banho quentinho e nem sem tv antes de dormir.

Que faça o tal abstrato do poder público, sua parte. Que dê um destino a eles, dizemos nós. Que vão para longe de nossos olhos, pois a discussão sobre “como tornar ‘eles’ um pouco mais ‘nós’” é complexa demais. É dura, difícil e longa. Exige compromisso, meu, seu, nosso, para trazer eles para o nosso lado.

*Artigo escrito por Mathisa Stachuk, colaboradora do Instituto GRPCOM em Curitiba.

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