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Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará
“Não é por acaso que as instalações hidrelétricas tomam as cachoeiras e as conduzem em conduítes: o meio técnico absorve assim o meio natural”, diz Jacques Ellul.| Foto: Marcos Corrêa/Presidência da República

No terceiro artigo de nossa pequena série sobre cristianismo, ideologia do progresso e o desafio do Antropoceno, Luiz Adriano Borges expande sua lista de pensadores críticos que empregam lentes explicitamente cristãs na compreensão dessas questões. Suas influências são profissionalmente variadas, incluindo sociologia, filosofia, teologia, economia e ciências naturais. As análises desses pensadores, apresentadas em obras clássicas, fornecem uma utilíssima caixa de ferramentas para uma consciência a um só tempo espiritualmente comprometida com a fé e eticamente comprometida com os desafios de nosso momento histórico. Boa leitura!

A visão cristã do progresso científico e tecnológico no Antropoceno

Em nossas discussões sobre a crítica cristã à ideologia do progresso, já mencionamos aqui o teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, o literato anglicano C. S. Lewis e o economista neocalvinista Bob Goudzwaard. Mas, de forma independente deles, e antes mesmo de Lynn White ter, aparentemente, dado o pontapé nas discussões modernas sobre cristianismo e meio ambiente, outro estudioso cristão da tecnologia criticava a visão do progresso ocidental: o sociólogo francês Jacques Ellul, que também fazia pontes com a teologia cristã. Em 1954 ele publicou a obra La Technique, que mais tarde apareceu em português como A técnica e o desafio do século, em 1968. A visão criticada era de que a técnica poderia controlar completamente o meio ambiente, produzir riqueza e felicidade, e ser a solução para os problemas do mundo. Esta obra causou um grande impacto e se tornou um clássico instantâneo. Ellul fala da artificialidade da técnica e como isso afeta o mundo natural e, por consequência, os próprios seres humanos:

“O mundo que está sendo criado pelo acúmulo de meios técnicos é um mundo artificial e, portanto, radicalmente diferente do mundo natural. Ele destrói, elimina ou subordina o mundo natural, e não permite que este mundo se restaure ou mesmo entre em um relação simbiótica com ele. Os dois mundos obedecem a diferentes imperativos, diferentes diretivas e diferentes leis que não têm nada em comum. Não é por acaso que as instalações hidrelétricas tomam as cachoeiras e as conduzem em conduítes: o meio técnico absorve assim o meio natural. Nós estamos rapidamente nos aproximando do tempo em que não haverá mais ambiente natural em absoluto. Quando conseguirmos produzir auroras boreais, a noite desaparecerá e o dia perpétuo reinará sobre o planeta.”

Para Bernard Charbonneau, a expansão do poder humano e da ordem tecnoindustrial em escala planetária priva o ser humano de uma relação harmoniosa com a natureza e ameaça não apenas o equilíbrio ecológico, mas também a liberdade humana

Apesar de Ellul ter sido acusado muitas vezes de ser um ludita, alguém contrário à tecnologia, o que ele sempre quis apontar foram os riscos da totalização técnica e não a mera utilização tecnológica para melhoria do mundo e da vida humana. A mentalidade técnica, com seus ideais de autonomia, de autocrescimento, de automatismo e de aceleração, queria se justificar a si mesma enquanto necessária para o desenvolvimento humano. “Uma vez que podemos criar tal tecnologia, nós devemos criá-la”; um posicionamento criticado por muitos pensadores como determinista. E Ellul, juntamente com percepções da sociologia da técnica, assim como da teologia, procurou atacar as bases fracas desses argumentos.

Ellul condenava, por exemplo, a noção de automatismo, de que “o fenômeno tecnológico contivesse alguma força de progressão que o faz mover-se independentemente de qualquer interferência externa, de qualquer decisão humana”. Para ele, os humanos teriam poder de alterar avanços tecnológicos danosos. Mas, para tanto, precisaríamos pensar eticamente, em termos de qual a finalidade da tecnologia. Seria a alegria da humanidade? Mas qual alegria? Qual humanidade? Sem refletir sobre essas noções, o “progresso” segue uma rota tortuosa que nos levará ao colapso; e não haverá retorno.

Um amigo de Ellul, Bernard Charbonneau, passou quase 30 anos de solidão intelectual desenvolvendo sua análise dos custos socioeconômicos e ambientais do desenvolvimento tecnocientífico moderno, o que ele chamou de “a grande mutação”. Historiador e geógrafo por formação, trazendo a visão cristã para suas análises, ele descreve na obra O Jardim da Babilônia, de 1969, como a expansão do poder humano e da ordem tecnoindustrial em escala planetária priva o ser humano de uma relação harmoniosa com a natureza e ameaça não apenas o equilíbrio ecológico, mas também a liberdade humana.

A crítica de Charbonneau à civilização industrial está enraizada no que podemos chamar de filosofia da encarnação. Para ele, a vocação do homem não consiste em alcançar a pura liberdade intelectual, à maneira do filósofo. A maior conquista humana consistiria antes em se expressar – ou incorporar – a si mesmo tanto quanto se pode nas circunstâncias da vida diária. É encarnando-se no mundo e na vida dos indivíduos que a liberdade atinge seu ápice, e os valores espirituais revelam sua verdade quando inspiram nossas ações mais humildes, quando nos dão o poder de perceber o sentido em um mundo natural ou social que não sabe o significado. Portanto, o tipo de relação que o homem estabelece com o mundo para questões práticas não deve ser ditado apenas pelas regras de eficiência técnica e econômica. A tecnologia e a indústria devem ser julgadas levando-se em consideração todas as consequências que resultam para a pessoa, corpo e mente, como um todo.

Outro autor que levou à frente a discussão de Ellul foi o filósofo da tecnologia Egbert Schuurman, que também procurava agregar a herança intelectual de Herman Dooyeweerd. Como o francês Ellul, o holandês Schuurman rejeitou o culto positivista da tecnologia como uma ferramenta neutra que irá conquistar uma sociedade global na qual todas as necessidades humanas serão satisfeitas por meio de recursos inesgotáveis de um aparato tecnológico industrial. Ele e outros críticos cristãos identificam no discurso de progresso um tema subjacente, relacionado à redenção e transcendência humanas. Para ele, sob a influência de estruturas econômicas de poder, a tecnologia tem produzido desperdício e poluição. Assim, evocando uma ideia também cara à Charbonneau, Schuurman argumentou em Fé, esperança e tecnologia:

“A imagem do jardim, contudo, não é uma imagem romântica. Desde a Queda, o trabalho cultural extraordinário é uma necessidade, e todo trabalho cultural tem um preço. A criação como um jardim – a ser governado e mantido – não exclui de nenhum modo o desenvolvimento da ciência, da tecnologia, e da economia. Porém, neste caso, elas estão a serviço da vida em toda a sua diversidade. A perspectiva que se acena aqui não é a de um mundo totalmente controlado pela tecnologia, mas de uma cidade-jardim ricamente diversificada.”

Egbert Schuurman rejeitou o culto positivista da tecnologia como uma ferramenta neutra; para ele, sob a influência de estruturas econômicas de poder, a tecnologia tem produzido desperdício e poluição

Para o filósofo, a concepção corrente de progresso acaba por perverter o próprio significado básico de tecnologia e ciência, atribuindo-lhes a função de emancipar o corpo e a mente da escravidão e do próprio trabalho, repelindo os obstáculos naturais, provendo as necessidades materiais do homem e conquistando doenças.

Um pensador que também partiu do neocalvinismo de Dooyeweerd para traçar uma análise da relação entre tecnologia e meio ambiente foi Bronislaw Szerszynski. Segundo ele, em Nature, technology and the sacred (2005), a natureza tem sido progressivamente mecanizada e instrumentalizada, produzindo uma “dessacralização da natureza”. Agindo dessa forma, buscando controle total, o que se recebe em troca é imprevisibilidade e descontrole ambiental.

Entre os ingleses, o filósofo Michael S. Northcott é alguém que tem publicado bastante no estabelecimento de pontes entre a ética cristã e o meio ambiente, trazendo justamente o conceito de Antropoceno para a discussão. Para ele, precisamos ir além de soluções tecnológicas ou jurídicas para os problemas ambientais (ainda que elas sejam em parte necessárias); é necessária uma mudança radical no comportamento humano na civilização moderna. A questão principal reside no sistema global atual, que precisa ser repensado.

A resposta cristã ao desafio do Antropoceno tem incluído a tarefa do “reencantamento da natureza”. Reencantar a natureza é pensar nela de forma diferente, não somente como um meio para uma visão de progresso, mas, como afirma o cientista e teólogo britânico Alister McGrath, aceitar e valorizar suas origens e significados divinos, e também atentar para o que essa visão implica para nossa própria natureza e destino finais. Em The reenchantment of nature, McGrath afirma que devemos viver neste mundo apreciando-o, embora sabendo que é uma encenação de algum lugar ainda mais maravilhoso. Mas, enquanto permanecemos nesta terra, podemos saborear sua beleza e admirar sua majestade. Deste modo, reencantar a natureza não é apenas ganhar um novo respeito por sua integridade e bem-estar; é abrir as portas para um nível mais profundo de existência.

Entre os pensadores contemporâneos da questão ambiental, o téologo Norman Wirzba é um dos maiores luminares. Wirzba procura estudar as interseções entre teologia, filosofia, ecologia e estudos agrários e ambientais, e para ele, em uma época de mudança climática, degradação ambiental e injustiça social, a questão do valor e propósito da vida humana tornou-se urgente. Quais são os fundamentos da esperança em um mundo ferido? Esta Vida Sagrada oferece uma profunda articulação filosófica e religiosa da identidade e vocação da humanidade ao enraizar as pessoas em um mundo simbiótico e em rede que está saturado de dons sagrados.

Apesar dos benefícios da inteligência artificial e do aprimoramento genético, Norman Wirzba mostra como uma descrição dos humanos como criaturas interdependentes e vulneráveis tem maiores condições de orientar as pessoas a serem presenças criativas e curativas em um mundo pontuado por feridas. Segundo ele, a mercantilização de lugares e criaturas precisa ser resistida para que toda a vida possa ser apreciada e celebrada. A vocação fundamental da humanidade seria dar testemunho do amor de Deus pela vida das criaturas e comprometer-se na construção de um mundo belo e hospitaleiro.

O cristianismo não é o culpado de nossos problemas ambientais; muito pelo contrário, em seu bojo surgiram pensadores críticos de uma visão cientificista e tecnicista

E assim, nesse terceiro artigo, chegamos ao fim de nossa breve apresentação de alguns autores e pensadores cruciais para os debates sobre a ideologia do progresso e o desafio do Antropoceno: Bonhoeffer, Lewis, Goudzwaard, Ellul, Charbonneau, Schuurman, Szerszynski, Northcott e Wirzba. O contato com essas mentes me ajudou a reconhecer que o cristianismo tem uma cosmovisão robusta para pensar os problemas do progresso na era do Antropoceno, tanto teologicamente quanto na área de ética filosófica e de filosofia da tecnologia.

Precisamos mudar e nos relacionar com o mundo que por ora habitamos de forma ética e responsável. Como vimos, o cristianismo não é o culpado de nossos problemas ambientais; muito pelo contrário, em seu bojo surgiram pensadores críticos de uma visão cientificista e tecnicista. Precisamos ir além das soluções tecnicistas, e desenvolver uma mudança moral com relação a modos de viver mais ecologicamente harmoniosos. Conceitos como mordomia, responsabilidade, virtudes, cooperação, com soluções comunitárias precisam ser melhores conhecidos. Autores cristãos, ainda que não somente eles, têm produzido belas e iluminadoras análises de nosso modo de vida no Antropoceno. Ainda que discordemos quanto aos efeitos globais de nossas tecnologias, conhecer esses debates é extremamente pertinente e profícuo para repensarmos o mundo que queremos deixar para as próximas gerações.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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