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Detalhe de A Torre de Babel, de Pieter Brueghel o Velho.
Detalhe de A Torre de Babel, de Pieter Brueghel o Velho.| Foto: Reprodução/Google Art Project

“O pecado de Babel foi sua busca por unidade – uma interpretação, uma leitura, um povo – abandonando a diversidade e a pluralidade criacional em favor da exclusão e da violência.” (James K. A. Smith)

Seria o próprio Deus o causador da presente confusão política brasileira?

Segundo os rigores da teologia cristã da providência, sim e necessariamente. Já na mente parcialmente cristianizada do brasileiro, a fonte de tal desordem só poderia ser o próprio diabo. Obras próprias do capiroto; e o que vem de Deus será sempre e necessariamente a ordem. “Porque Deus não é Deus de desordem, mas sim de paz”, é o que diz o apóstolo Paulo em sua primeira carta aos Coríntios.

Mas, então, temos Babel, sempre lembrada como uma obra dos homens, uma tragédia causada pela soberba humana, a epítome da confusão. É a leitura popular entre cristãos e pagãos modernos, nessas terras, ainda que com sensibilidades diversas sobre a natureza da “confusão” ou da “ordem”. Para um exemplo trivial, há quem considere o atual governo bastante ordeiro.

Ocorre, no entanto, que na história de Babel não foi Satanás a origem da confusão; foi o próprio Deus mesmo.

A encruzilhada de Babel

Segundo o relato do Gênesis o próximo grande evento histórico, após o dilúvio (que consideramos na semana passada), é o episódio da “torre de Babel”. Esse episódio se encontra no capítulo 11, imediatamente após as histórias sobre os descendentes de Noé e a chamada “tábua das nações”, e imediatamente antes da história de Abraão, no capítulo 12. Até Babel temos a impressão de uma narrativa imemorial, quase arquetípica; de Abraão pra frente ganha-se a nítida sensação de tradição histórica e localização cultural e política.

Isso é relevante porque a história de Babel constitui uma espécie de “encruzilhada” e também uma preparação para a história patriarcal, que ocupará todo o restante do livro de Gênesis. A história patriarcal relata como Deus escolheu um ser humano e uma família específica para abençoar o mundo inteiro por meio dele. Não precisamos dizer que, segundo a interpretação canônica, essa bênção que começou a ser gestada lá atrás, em Abraão, se consumou com o aparecimento de Jesus Cristo.

Na história de Babel não foi Satanás a origem da confusão; foi o próprio Deus mesmo

Mas isso é assunto para outro artigo. O ponto a destacar, aqui, é que o relato de Babel fornece o pano de fundo imediato da história patriarcal. É o clímax de uma longa introdução de 11 capítulos na qual temos o quadro do que o mundo se tornou, e o porquê de Deus convocar Abraão para uma tarefa. Babel é o último lance antes da história que começa com Abraão e termina em Apocalipse. Definitivamente, não é uma história que possa ser subestimada.

Antes que os engraçadinhos me perguntem onde está a torre de Babel, lembro que o fenômeno, descrito na história do zigurate perdido, está em nossos noticiários, nos atormentando diariamente. Os descrentes estão livres para rir da torre, por ora, mas não do fenômeno e do que ele significa.

Não era só uma “torre”

Meu primeiro destaque vai para a distorção popular da história bíblica. É claro que havia uma torre em Babel, mas o projeto que fez o Altíssimo se debruçar de suas janelas não era meramente uma “torre”. Como de costume, vamos retomar o trecho:

“A terra toda tinha uma só língua e um só idioma.
Os homens deslocaram-se para o oriente e acharam um vale na terra de Sinar; e passaram a habitar ali. E disseram uns aos outros: Vamos fazer tijolos e queimá-los por completo. Os tijolos lhes serviram de pedras, e o betume, de argamassa.
Disseram mais: Vamos edificar uma cidade para nós, com uma torre cujo topo toque no céu, e façamos para nós um nome, para que não sejamos espalhados pela face de toda a terra.
Então o Senhor desceu para ver a cidade com a torre que os filhos dos homens edificavam; e disse: O povo é um só e todos têm uma só língua; agora que começaram a fazer isso, já não haverá restrição para tudo o que intentarem fazer. Vamos descer e confundir-lhes ali a linguagem, para que um não entenda a língua do outro.
Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e pararam de edificar a cidade. Por isso a cidade se chamou Babel, porque ali o Senhor confundiu a linguagem de toda a terra e dali os espalhou sobre a face de toda a terra.”

Em primeiro lugar, chamo a atenção do leitor para o fato de que o projeto de Babel era um projeto político. Não se tratava apenas de construir uma torre, mas de uma cidade com uma torre. Além disso, esse projeto envolve um sonho de compensar o fato da mortalidade com um nome grande e inesquecível, e a expectativa de unificar toda a humanidade sob uma única utopia política, “para que não sejamos espalhados pela face de toda a terra”. Era um projeto... civilizatório, se me permitem.

E a coisa não acaba aí. Sabemos que no mundo sumério, onde a civilização teve um de seus inícios e de onde o próprio Abraão veio (de “Ur dos Caldeus”), os zigurates, essas torres piramidais que dominavam a arquitetura das cidades, cumpriam todas as funções de um centro de controle total: eram sedes de governança, de observação militar, de culto religioso, e de organização do calendário. A partir deles o céu era observado e os calendários astronômicos antigos, com uso litúrgico e agrícola, eram compostos. E absolutamente tudo, naquele tempo, tinha relação com o calendário astronômico.

É assim que a ideia de “chegar até o céu”, longe de denotar a expectativa de encontrar uma portinhola no teto do orbe celestial, é uma referência ao saber absoluto, ao controle absoluto e à imortalidade. O céu é tanto a fonte do saber caldeu antigo quanto a representação narrativa desse propósito de uma ordem nova, uma superação humana das saudades do Éden: a Novus Ordo Seculorum.

O projeto de Babel era um projeto político. Envolve um sonho de compensar o fato da mortalidade com um nome grande e inesquecível, e a expectativa de unificar toda a humanidade sob uma única utopia política

Consideremos o fundador da cidade, mencionado no capítulo 10 de Gênesis, pouco antes do relato de Babel: o lendário Nimrode, que levantou muitas outras cidades. Filho de Cam, o filho amaldiçoado de Noé, “o primeiro a ser poderoso na terra”, e “o grande caçador diante do Senhor”. O que temos aqui é, nitidamente, a lembrança de um homem forte, eficiente, determinado, capaz de ignorar o próprio Deus e perseguir implacavelmente os seus objetivos de dominação.

Se, na história de Noé, temos a narrativa etiológica sobre a fundação da justiça pública e, assim, do que chamamos hoje de “governo civil”, com Nimrode e Babel temos a narrativa etiológica sobre a dominação. A dominação emerge no mundo com cidades controladas por homens da vontade, homens da violência, como Alexandre, Júlio César, Gengis Khan, Napoleão ou Hitler. São os construtores de impérios. É claro que Babel era um projeto coletivo; mas no centro desse projeto houve um homem, “o primeiro a ser poderoso na terra”.

O projeto de poder é um projeto de unidade, de coletividade; é também um sonho comum, um anseio pela imortalidade. E no centro dessa cidade-civilização-império havia a torre. A torre, agora sim, pode ser entendida como a ferramenta, o meio, a chave. A torre é o falo; é o poder humano incorporado numa instituição que a tudo concentra.

As duas cidades

É inevitável observar aqui o contraste com o Éden, do qual o homem foi expulso. O Éden é o jardim de Deus, plantado por ele, tendo no centro a Árvore da Vida, o sacramento da imortalidade. Lá o homem deve exercer domínio por meio do trabalho e do cultivo, mas tudo gira em torno da dádiva divina; tudo é uma resposta, um trabalhar sobre o trabalho divino. Isso é o que o “sábado”, o descanso divino, significa.

Em Babel temos também um esforço agrícola enorme, como era o caso das cidades caldeias; mas no centro da cidade não há um jardim ou uma graça divina; o que há ali é o falo, a vontade de poder. A força de construir a cultura e a história; a tecnologia e a utopia antropocêntrica. Em Babel o ser humano não é mais uma criatura, mas um competidor dos céus, um aspirante à divindade. Dos céus Deus contempla a impressionante unidade dos homens nesse objetivo e constata que, sem intervenção, sua revolta contra a realidade e a lei natural seria ilimitada.

Na trama canônica essa história vai longe. Segundo o Apocalipse, nos últimos lances da história antes da consumação, Babilônia reaparece como “a grande cidade que reina sobre os reis da terra” – uma referência dissimulada a Roma e, arquetipicamente, a todos os grandes impérios terrenos. Mas então, no capítulo 18, surge um anjo forte lançando uma pedra enorme no mar dizendo “A grande cidade da Babilônia será jogada com a mesma força e nunca mais será achada”.

No trecho, Babilônia é um centro de poder e riqueza, que governa todos os reis, e com os quais todos fazem comércio; é como Nova York, Londres ou Pequim. Mais do que isso: é uma capital imperial, cheia de opressões e impiedades. E então, no fim da história, depois da queda de Babel, temos outro relato: o aparecimento da “Nova Jerusalém”, a Civitas Dei.

De um modo interessantíssimo, na profecia apocalíptica de João (um tipo literário muito diverso do Gênesis), a Cidade de Deus desce do céu como uma dádiva divina – precisamente o oposto de Babel, que é um projeto utópico, bottom-up. Além disso, no lugar da torre fálica a Cidade de Deus tem no centro o próprio Éden e a Árvore da Vida. Finalmente, onde os homens buscavam não ser espalhados e ter um “nome”, a Nova Jerusalém acolhe os redimidos e todos trazem o nome de Deus nas suas testas.

Em Babel o ser humano não é mais uma criatura, mas um competidor dos céus, um aspirante à divindade

Pense o leitor incréu o que quiser sobre o princípio e o fim da história, está claro aqui o fundo moral e espiritual das tradições bíblicas, e que culminaria com a compreensão de Santo Agostinho em De Civitate Dei, redigido no princípio do século 5.º d.C. Ali Agostinho contrapõe o espírito da cidade dos homens, a vontade de poder, com o princípio da cidade de Deus, o amor agápico e o serviço mútuo, animados pela graça. As duas cidades estão misturadas até o fim da história, quando o próprio Senhor vai separá-las; de forma que o império é, a um só tempo, a Babel humana e o lugar no qual a cidade divina existe latente.

A antítese espiritual radical dessas duas cidades e a condenação de Babel significam que os sucessos que a graça divina permite à civilização não garantem a imortalidade ou a relevância do império. Ao fim e ao cabo, Deus redimirá uma sociedade, mas destruirá o império.

Deus contra o Império

E com isso podemos voltar a Gênesis 11. Está claro que Deus ordenou à família de Noé o cumprimento dos mandatos criacionais (há duas semanas) e a prerrogativa da justiça pública (na semana passada). A grande lista de famílias e nações no trecho indica a universalidade do plano divino. Mas Deus não ordenou a construção de nenhum império; isso foi obra e graça de Nimrode e de seu partido político hegemônico.

Podemos especular que, do ponto de vista celestial, o que Deus viu foi todas as famílias da terra sendo unificadas, homogeneizadas, diluídas, despersonalizadas e plasmadas em uma grande massa coletiva. Todos falando, vivendo, pensando e servindo ao mesmo Rei-Deus, como era de costume no antigo Oriente Médio. Mas esse não era o plano divino – se alguém quiser conferir, temos no capítulo 12 a resposta divina a Babel: não derreter e fundir todas as famílias da terra para construir a torre de Nimrode, mas espalhar a semente de Abraão para o benefício do mundo: “em ti serão benditas todas as famílias da terra”.

Então, em seu último ato antes de abrir o capítulo da história da redenção, Deus desce e traz a batalha contra o império. E qual é a arma divina?

Deus ordenou à família de Noé o cumprimento dos mandatos criacionais e a prerrogativa da justiça pública. Mas Deus não ordenou a construção de nenhum império

É nesse ponto que a divindade subverte os planos de Nimrode quase como por meio de uma travessura, um truque: em vez de mandar chover fogo do céu como faria com Sodoma e Gomorra, ou fazer a terra engolir os presunçosos militantes, Deus confunde as línguas. Garante que ninguém se entenda. E com aquela confusão dos diabos a obra foi abandonada, e vontade de Deus foi feita na terra, assim como no céu: eles foram espalhados por toda a face da terra. O relato segue contando que, com isso, a abençoada família de Sem foi preservada, e dela nasceu Abrão.

Poderíamos falar, aqui, em uma “divina confusão”? Em seu absolutamente indispensável tratamento teológico-filosófico da questão hermenêutica (The Fall of Interpretation: Philosophical Foundations for a Creational Hermeneutics, de 2000), Jamie Smith acerta na mosca:

“Segundo o pensamento evangélico tradicional, a multiplicação das linguagens foi uma punição que iniciou a necessidade de tradução, a qual se conecta intimamente à necessidade de interpretação... Uma segunda leitura da história de Babel, no entanto, apontará para a unidade como o pecado original e o ímpeto para a violência que Yahweh previne exatamente pela multiplicação das linguagens, uma restauração da pluralidade.”

Yahweh emerge, assim, como um pluralista, do lado da diversidade e da pluralidade de outros. E é por isso que a criação é uma ideia pluralista, e porque uma hermenêutica criacional busca honrar essa diversidade, não como o pecado original, mas como o bem primordial.”

O assunto de Smith é, naturalmente, teoria hermenêutica; e seu ponto, contraintuitivo, é que as pluralidades interpretativas resultam, sim, de pontos de partida irredutíveis, mas que o condicionamento hermenêutico não é primária e necessariamente uma obstrução ao olhar, mas o próprio meio de acesso cognitivo intrínseco às criaturas.

O que isso significa, no frigir dos ovos? Vamos expandir o ponto usando o contexto narrativo completo até agora: o estado inicial ou natural, pressuposto pela mente bíblica, era de uma harmonia primitiva, na qual a unidade da linguagem coexiste com um processo de diferenciação e criação de alteridades. Mas fora do jardim, a situação de injustiça provocada pela Queda de desenvolve em uma forma nova de perversidade: a uniformização sustentada por um poder hegemônico.

A vontade de poder mata a diversidade-na-unidade e, nesse sentido, poderia ser vista, segundo a filosofia da história de Herman Dooyeweerd, como um processo reacionário. Processos que exacerbam a unidade ou a diversidade e rompem o dinamismo histórico seriam sempre reacionários, sejam eles de esquerda ou de direita.

Deus não legitimará nenhuma universalidade baseada na vontade de poder, e nenhum império. Deus não quer uma única soberania, mas muitas soberanias; ele permite que existam reis, mas apenas Ele é o Rei dos Reis

Nesse sentido, Deus agiu na história novamente, mas dessa vez não instituindo, por meio de pacto, uma prerrogativa de autoridade, como se deu nos pactos com Adão e com Noé que já examinamos, mas sinalizando o que será a direção do processo histórico e a força da lei natural.

É claro, pode-se dizer, que essa diversidade “segunda”, que resultou do juízo divino contra Nimrode e seu coletivo político, mas que foi, ao mesmo tempo, um gesto de graça e misericórdia para com a humanidade, complicou bastante o mundo. Ela implica que, além da diversidade criada e harmônica, há uma dissonância que resulta de erros, de percepções unilaterais e reducionistas da realidade. Assim como acontecia com a Roma de Agostinho, a pluralidade é ambígua; ela é tragédia, mas também é bênção.

A ação divina nos informa que Deus não legitimará nenhuma universalidade baseada na vontade de poder, e nenhum império. Deus não quer uma única soberania, mas muitas soberanias; ele permite que existam reis, mas apenas Ele é o Rei dos Reis.

Policentrismo cristão

O que pede a espiritualidade política cristã?

Eu diria que ela deve trabalhar, sempre, não apenas para garantir a laicidade do Estado e a liberdade religiosa, mas por algo um pouco mais completo e consistente: uma sociedade simbiótica e policêntrica.

Isso pode ter vários sentidos; podemos pensar, em termos “verticais” (ou seja, em todos os graus da ordem política), em federalismo, subsidiariedade, “pesos e contrapesos”, processos democráticos e participativos, defesa de combinações e recombinações de democracia com outros sistemas (para evitar a tirania da maioria), fundamentações constitucionais estáveis, divisões de poderes etc. Não a anarquia, mas o poder sendo distribuído a partir de critérios de justiça e otimização.

O que Deus viu em Babel foi todas as famílias da terra sendo unificadas, homogeneizadas, diluídas, despersonalizadas e plasmadas em uma grande massa coletiva. Todos falando, vivendo, pensando e servindo ao mesmo Rei-Deus

De certo modo é o que encontramos em Israel, bem mais tarde: uma federação de tribos na qual nenhuma dominava sobre a outra. O que funcionou bem até Salomão.

Podemos pensar também em termos “horizontais”, considerando instituições de natureza diversa: numa sociedade policêntrica as esferas de soberania serão respeitadas, com campos sociais distintos, como a economia, a indústria, a ciência e a religião operando como esferas de justiça relativamente independentes; com a família e o casamento protegidos contra as incursões do capitalismo afetivo e do Estado terapêutico; com a cultura do bem comum e da cooperação sendo promovida também dentro desses campos.

O império hoje

Mas onde está o império hoje? Não apenas em um lugar; se ele nasce com a vontade de poder e a violência, está no homem machista que oprime sua casa, no policial abusador, mas, acima de tudo, como foi com Babel, numa ordem política totalizadora.

Eu acompanharia Robert Nisbet na visão de que o moderno Estado liberal de contrato existe, ele mesmo, à beira da tentação imperial. E, se há qualquer dúvida, basta repassar a história de como países com regimes monárquicos, depois de verem suas estruturas tradicionais corroídas pela modernidade, passaram ao caos e depois a ditaduras e totalitarismos em todo o mundo e, especialmente, na Europa. Não é preciso acolher sonhos monarquistas reacionários para admitir que o rito de passagem ao totalitarismo foi, historicamente, alguma forma de contrato liberal.

No liberalismo expressivo, pai do identitarismo moderno, Estado e indivíduo se unem para destruir as ordens intermediárias, como a religião, a família, a moralidade sexual, nacionalidades e regionalidades, as organizações civis não liberais, e a força das culturas e histórias locais

E isso nos leva de volta a críticas do liberalismo expressivo contemporâneo, como a de Patrick Deneen, que tantas vezes mencionamos nessa coluna. O liberalismo expressivo, pai do identitarismo moderno, aparentemente promove a “diversidade”, mas seu sonho secreto é uma sociedade de indivíduos genéricos, emancipados e “autênticos”. A diversidade é apenas uma senha para a lógica terapêutica de colocar a própria liberdade e felicidade pessoal acima de deveres comunitários não políticos – os nichos naturais de diferenciação cultural. Estado e indivíduo se unem para destruir as ordens intermediárias, como a religião, a família, a moralidade sexual, nacionalidades e regionalidades, as organizações civis não liberais, e a força das culturas e histórias locais.

Jonathan Leeman chega a descrever o liberalismo como uma “religião dissimulada” e totalitária.

Nossa caracterização não seria completa sem as pertinentes críticas culturais de Bob Goudzwaard e de Egbert Schuurman sobre o capitalismo e o tecnicismo como grandes projetos babélicos. Goudzwaard expõe, em Capitalismo e Progresso, um quadro bastante convincente sobre como tanto o capitalismo quanto o socialismo estão assentados sobre um grande ideal de progresso rumo a um paraíso terrestre e secular, que não admite atrasos, desaceleração ou desvio, e que atua de forma predatória em culturas tradicionais e mercados pouco desenvolvidos. Essa ideologia justificou grandes injustiças, uniformização cultural e degeneração ambiental.

Schuurman, por outro lado, notou que o avanço tecnocientífico e a esperança de solução de todos os problemas humanos por meio do controle tecnológico da natureza e da sociedade nada mais é do que a fé no poder humano – a torre no meio da cidade. O progresso tecnológico é a nossa torre de Babel. Isso não significa, claro, que a tecnologia seja ruim per se; o que caracteriza a tirania é a ilusão prometeica, ignorando o fato de que somos criaturas dependentes umas das outras, do planeta, e de Deus. O que significaria que não podemos cultivar sem guardar, construir sem cuidar. Ora, isso é precisamente o que estamos fazendo: destruindo o planeta.

Devo mencionar, é claro, o humanismo secular moderno, que deseja enquadrar todas as religiões em sua agenda moral. Mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, um documento de convergência universal que também subscrevo, tem se tornado, nas mãos de militantes liberais, uma ferramenta de uniformização; e o Conselho de Direitos Humanos da ONU, outra torre de Babel. Não precisamos concordar com o discurso “antiglobalista” conspiratório hoje instalado em altos escalões do governo brasileiro para admitir que temos uma grave enfermidade ideológica contaminando o sistema internacional de direitos humanos.

Uma palavra sobre a Babel brasileira

Seria Deus contrário a toda hegemonia? Não em sentido absoluto; nada indica que o poder da espada possa ser fragmentado. Governo é governo; e isso se aplica a outros ambientes não políticos como uma orquestra ou uma casa cheia de crianças. Além disso, a Bíblia ensina que o Reino de Cristo se mostrará, enfim, absoluto.

Mas num sentido relativo, no atual “entre tempos”, no qual aguardamos a grande intervenção divina chamada “consumação”, é necessário manter um jogo no qual a dignidade do “adversário” político seja preservada, e as regras permitam sua existência. Não pode haver uma guerra de eliminação contra a pluralidade.

Segundo os termos da “aliança de Noé”, precisamos lutar pela justiça no Brasil; mas, diante do julgamento de Babel, precisamos fazê-lo de modo cooperativo e dialógico, sem a mentalidade imperial, sem a sanha da dominação

Bolsonaro é um fenômeno interessante, nesse sentido; não é meramente o caos, mas o resultado de uma ordem que abertamente quis se ver hegemônica, que se pregou representante de todos, falsa e hipocritamente: o lulopetismo. A ascensão de Bolsonaro é a ascensão da confusão, de certo modo. É claro, também, que o seu projeto não inclui uma enorme parcela do Brasil. Sua guerra de eliminação reproduz o espírito hegemônico: fogo contra fogo, Nimrode contra Nimrode. Sua “ordem” fracassará, necessariamente.

As frustrações causadas por essa desordem são imensas, e as dores parecem intermináveis; mas elas podem, sim, ser mais um dos juízos de Deus na história brasileira, lembrando aos homens de que o céu é inacessível, e que a Civitas Mundi terminará no fundo do mar. O quanto antes aprendermos essa lição, mais prudentes seremos em nossos “projetos civilizatórios”. Ao mesmo tempo, nada disso legitimará o quietismo e a inação, e muito menos os desmandos do nosso desgoverno; a ordem de buscar a justiça pública não foi revogada por conta de Babel.

De modo que, segundo os termos da “aliança de Noé”, precisamos lutar pela justiça no Brasil; mas, diante do julgamento de Babel, precisamos fazê-lo de modo cooperativo e dialógico, sem a mentalidade imperial, sem a sanha da dominação. A sensibilidade para com a realidade plural humana é a primeira qualificação importante à prerrogativa de promover a justiça pública, e um princípio normativo para o exercício da atividade política.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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