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O presidente da República, Jair Bolsonaro.
O presidente da República, Jair Bolsonaro.| Foto: Marcos Correa/Presidência da República

O conservadorismo exige deliberação cuidadosa sobre os melhores caminhos para a preservação da cultura, das instituições e do futuro nacional. Não pode haver “progresso civilizacional” com sistemática ruptura histórica, simbólica e comunitária. Por conseguinte, a oposição à esquerda brasileira, especialmente diante de seus projetos mais nitidamente disruptivos, como a promoção do fascismo identitário, é um imperativo.

Por outro lado, uma política conservadora não pode ser dogmática, de um ponto de vista estritamente principiológico; isso seria uma negação do caráter conservador. E, por isso mesmo, a oposição à esquerda não pode ser um imperativo absoluto. Ela é sujeita ao julgamento prudencial, e dependerá, necessariamente, das demandas históricas imediatas.

Não recorro a essas noções elementares do conservadorismo como se fossem as minhas categorias últimas para o julgamento político; o cristianismo transcende o conservadorismo e não pode submeter-se a ele. Mas certamente a graça não precisa anular o que há de melhor da racionalidade conservadora, se for possível aperfeiçoá-la. Falo, pois, a partir desse lugar, para levantar um assunto premente, que pulula as mentes de muitos eleitores de Bolsonaro, mas permanece exilado de suas falas. Ou que, quando é confessado, o é apenas à boca-pequena: o esgotamento moral e político do bolsonarismo. Indo direito ao ponto: não há projeto, nem fôlego, nem pessoal, nem capital político, nem autoridade moral para mais quatro anos do que já conhecemos.

Muitos conservadores e muitos cristãos entendem que apostar todas as fichas num governo de direita com qualidades tão duvidosas quanto o que temos agora é, com todas as letras, uma imprudência

E, no entanto, a plausibilidade de um novo mandato para o capitão segue acolhida por tantos, na maior naturalidade. Será, então, que a direita brasileira e os cristãos, em geral, são isso e nada mais, reféns eternos de Bolsonaro? Será essa nova síndrome de Estocolmo incurável? Para não poucos, qualquer retorno de um governo à esquerda tornou-se uma alternativa abominável e impensável, e o hábito os fez condescendentes com um ethos político cainita. Mas muitos conservadores e muitos cristãos entendem que apostar todas as fichas num governo de direita com qualidades tão duvidosas quanto o que temos agora é, com todas as letras, uma imprudência.

Convidei Fernando Pasquini, amigo e professor da Universidade Federal de Uberlândia, para expressar suas opiniões a respeito. Nós dois compartilhamos da fé cristã, de uma perspectiva crítica sobre a relação entre religião, tecnologia e cultura, e da crença na importância da coragem e da liberdade da consciência na imaginação política. É em nome dessa liberdade, e contra o medo e o servilismo da consciência, que apresentamos sua reflexão em nossa coluna. Boa leitura!

Como o medo tem nos deixado reféns de Bolsonaro

Fernando Pasquini Santos

“Que absurdo! Como é que, depois de tudo o que aconteceu, ele diz que votaria em Bolsonaro de novo se fosse preciso?”

Tenho visto muita gente expressando esse profundo inconformismo com potenciais eleitores recalcitrantes de Bolsonaro. Dizem que “não entendem como Fulano chegou a esse ponto” – uma percepção que, no calor das redes sociais e dos tempos incertos e perigosos que vivemos, pode até se transformar em avaliações pesadas como “só pode ser uma perversidade monstruosa dizer isso nesse momento”. Alguns dizem até que já “não têm mais coragem de olhar na cara de Fulano” nem querem saber o que gente assim diz sobre qualquer outro assunto.

Apesar de também achar essa insistência preocupante, eu não chamaria isso de perversidade monstruosa. Acho que ainda consigo entender por que alguém pensa assim. Um dos motivos é simples: eu mesmo já pensei assim. Para mim, Bolsonaro sempre foi o menor dos males diante da ameaça da esquerda. E por isso escrevo este texto: quero tentar explicar ao leitor perplexo por que acho que essa opinião ainda é atraente. Mas também quero explicar por que ela está gravemente equivocada, e por que parei de pensar assim.

A eleição de Bolsonaro não foi definida por aqueles que o amavam e o apoiavam incondicionalmente. Esses não são muitos (graças a Deus)

E aqui cabe um esclarecimento: enquanto tratamos desse assunto, em nenhum momento estará em pauta o problema dos bolsonaristas religiosos e idólatras. Esses já estão sendo bem tratados pela crítica. Refiro-me àqueles que, como eu, normalmente não se manifestam muito sobre política, mas, quando perguntados, dizem reconhecer que o presidente “faz algumas besteiras” (o que, em si, convenhamos, é um eufemismo preocupante), mas insistem em considerá-lo uma opção para 2022, dado que é o único que ainda se propõe a defender “valores e costumes cristãos” (seja lá quais eles forem).

O “menos pior”? Mesmo?

Vamos concordar que são esses os que efetivamente o elegeram e provavelmente o continuariam elegendo. Muitos de nós já estamos cansados de levantar esse fato para tantos que parecem ainda não percebê-lo: a eleição de Bolsonaro não foi definida por aqueles que o amavam e o apoiavam incondicionalmente. Esses não são muitos (graças a Deus). Bolsonaro sempre se apresentou, na cabeça da maioria, como o menor dos males. As pessoas estão bem conscientes de que ele não é um grande depósito de “valores e costumes cristãos”: palavrões, colocações maldosas, incentivo a armas, e até os seus vários casamentos. Mas me parece que, na cabeça dessas pessoas, isso não pesa tanto: o que pesa mais é sua proposta de simplesmente não fazer algumas coisas que a esquerda, do outro lado, (supostamente) faria. Na cabeça de muitos, alguns “valores e costumes cristãos” pesam mais do que outros (o que já é um enorme problema, como pretendo apontar adiante).

E, enfim, se Bolsonaro é visto como o menor dos males, também não nos deveria surpreender a forma como muitos têm receio de fazer ou demonstrar críticas duras a seu governo, e muitas vezes minimizam seus erros com eufemismos, ou até mesmo buscam interpretações e narrativas alternativas a todos os fatos colocados pela suposta “mídia comprada”. De certa feita fui orientado por amigos cristãos a parar de criticar o governo porque, diante do perigo da esquerda, fazer essas coisas era dar um tiro no pé. Bingo! Achei isso bastante revelador. É evidência clara para o fato de que uma eleição, hoje, não se define por apoio positivo a um político. Nosso voto, hoje, é um antivoto. A política se faz pelo medo do outro. Vota-se em Haddad por medo de Bolsonaro. Vota-se em Bolsonaro por medo de Haddad. Deixa-se de criticar Haddad por medo de Bolsonaro. Deixa-se de criticar Bolsonaro por medo de Haddad.

Assim, no caso de quem diz que votaria de novo em Bolsonaro se fosse preciso, o medo é, basicamente, de duas agendas. A primeira é o que chamaria de agenda identitária: políticas ligadas a uma sensibilidade moral WEIRD (como descrita pelo psicólogo social Jonathan Haidt), que pregam um tipo de indivíduo hiperliberal, desvinculado de um horizonte normativo de família ou comunidade, e que busca sua emancipação por meio da luta social. É uma agenda criticada até mesmo por autores de esquerda, como Mark Lilla, que identificam-na como um tipo perigoso de antipolítica. A segunda agenda eu chamaria de agenda totalitária: um receio que se manifesta desde sempre no imaginário da direita brasileira, temendo o aumento do poder estatal sobre as diversas esferas da sociedade e impedindo-as de funcionar adequadamente.

Confesso que, como cristão, não tenho como concordar com nenhuma dessas agendas da nossa esquerda. Não são coisas nem um pouco boas e só tenho tristeza e preocupação ao vê-las sendo levadas adiante. No entanto, o tempo me fez perceber duas coisas: 1. o medo delas pode, muitas vezes, se basear em uma caricatura exagerada e irracional da realidade política; e 2. tentar barrar tais processos é praticamente inútil – e, pelo contrário, atitudes imprudentes podem até mesmo fortalecê-los.

No que segue, discutirei essas duas percepções em detalhes. Creio que isso é o que precisamos deixar claro, se realmente não quisermos mais seguir votando em governos como o atual. Lembro-me de ficar um pouco chateado em 2018 com gente que se contentava em votar nulo. Pensava: “será que ele realmente não se importa com o PT continuar no poder?” Hoje, no entanto, com as considerações que apresento a seguir, já penso diferente. Comecei a me indagar: até quando ficaremos apavorados diante da esquerda?

Há realmente esse perigo tão grande “do outro lado”?

Começo perguntando se o medo da esquerda, com suas agendas identitária e totalitária, está tão bem justificado assim. Acredito que ele é, muitas vezes, superestimado (nem por isso nego que ele seja subestimado na mente de muitas pessoas, inclusive cristãos).

Em primeiro lugar, concordemos que é muito fácil botar medo nas pessoas exagerando o poder que um presidente pode ter para mudar as coisas em um país. No entanto, se observarmos a realidade, veremos que isso nunca é tão fácil como parece. Lembram-se de como a própria esquerda superestimava a agenda moral e econômica do governo Bolsonaro? Lembram-se do medo de perseguição e execução pública de gays a partir do momento em que ele foi eleito? (e olha que esse medo ainda continua por aí) A coisa também pode acontecer do outro lado. Suponhamos que Haddad houvesse ganhado. Como ficaria o medo da perseguição a cristãos, da imposição de “kits gay” nas escolas públicas, de fim das empresas privadas e da implantação de um modelo de produção comunista, entre outros medos? Em que medida tudo isso seria implementado com sucesso?

Observe as mudanças que o próprio Bolsonaro tentou implementar. Algumas foram realmente bem-sucedidas (e bem ruins para quem discorda delas); outras, no entanto, enfrentaram duras resistências. Observe a enorme rotatividade de ministros, desde 2019! Sempre houve vários interesses em jogo – políticos, econômicos, culturais – e ninguém conseguiu fazer exatamente tudo o que queria ou prometeu fazer. Não basta simplesmente subir no poder e impor tudo de cima para baixo. Governos revolucionários sempre tiveram essa dificuldade; a mesma que tem o atual governo, nessa “revolução brasileira” pregada de forma patética por alguns que ainda têm coragem de se chamar de “conservadores”. Na prática, muitos projetos dão lugar a uma boa dose de resignação, dados os perigos da instabilidade sociopolítica.

Em segundo lugar, há também o exagero no medo das duas agendas, que se liga a teorias conspiratórias como do globalismo e da nova ordem mundial. Essas, da mesma forma, acreditam num poder irrestrito de poucas pessoas que supostamente podem alcançar o que quiserem com dinheiro e influência. Ideias assim apavoram facilmente os cristãos, que já têm a tendência histórica de identificar rapidamente o governo do anticristo em diversas situações geopolíticas. Mas, novamente, se prestarmos um pouco mais de atenção, veremos que as coisas quase sempre são mais complicadas no cenário mundial. Veja-se, por exemplo, a própria China, que costuma ser acusada de estar propagando a agenda totalitária, mas que dificilmente pode ser associada à agenda identitária, mais ligada às potências ocidentais. E mesmo que alguém afirme esses ideais e agendas de forma explícita, o fato é que ainda existe muita fragmentação entre os países e obstáculos intransponíveis. Uma das falhas principais do conspiracionismo é ver poder demais em lugares onde ele não existe; talvez falte a ele fazer pequenas projeções financeiras e ver que nunca há dinheiro suficiente para subornar tanta gente por causa de um segredo.

Finalmente, em terceiro e último lugar, há de se considerar que muitos dos receios dessas agendas se baseiam em uma caricaturização da própria esquerda nacional, que não é um movimento monolítico e muitas vezes é até incoerente quanto à sustentação desses ideais.

Falo aqui de minha própria experiência como professor numa universidade federal, que às vezes até trabalha junto com outros professores de esquerda em pesquisa, ensino e extensão. Tenho visto, no Brasil, muitas iniciativas e movimentos ligados à esquerda que não focalizam diretamente as questões identitárias e até mesmo são críticos de certas soluções de assistencialismo estatal; pelo contrário, eu diria que até mesmo se alinham com agendas conservadoras ao se colocarem na defesa do meio ambiente, das famílias (principalmente agricultura familiar) e das comunidades locais, com incentivos à economia solidária e capital social. Às vezes observo a forma como algumas dessas coisas foram desenvolvidas durante os governos do PT (agendas totalmente desprezadas e ignoradas no governo Bolsonaro, acusadas como “coisa de esquerdopata”), e fico me pensando qual governo estaria realmente mais perto de alguns ideais cristãos e conservadores.

Mesmo que haja um real perigo por parte dessas agendas de esquerda (o que eu creio que há, de verdade, embora não tanto como se pensa), será que vale fazer qualquer coisa para barrá-las?

Às vezes vejo muitos cristãos morrendo de medo de um “kit gay” nas escolas públicas, mas que não dedicam um mínimo de atenção a mães solteiras que deixam os filhos na creche e vão para a sua jornada de trabalho das 6 às 20 horas para garantir o mínimo da sobrevivência, e que às vezes acabam sendo demitidas ao ficarem grávidas porque não são eficientes segundo o cálculo econômico. É verdade que a libertinagem sexual do progressismo identitário tem feitos graves danos à família (como aponta, por exemplo, a obra de Theodore Dalrymple), mas isso também não exclui o impacto do capitalismo desenfreado sobre a economia doméstica, que vem sendo notado por diversos autores cristãos desde G. K. Chesterton até Wendell Berry. Às vezes me pergunto o que é realmente mais urgente na defesa dos valores da família.

Com isso, percebi que ainda não encontrei argumentos sólidos para apontar um perigo grave; não um perigo grave o suficiente para justificar um mal como Bolsonaro. Mas, além disso, mesmo que haja um real perigo por parte dessas agendas de esquerda (o que eu creio que há, de verdade, embora não tanto como se pensa), será que vale fazer qualquer coisa para barrá-las? Um medo irracional pode muito bem acabar em um método irracional, que só vai piorar a situação.

Qualquer estratégia vale para barrar agendas opostas?

Pode um governo como o de Bolsonaro realmente barrar as agendas identitárias e totalitárias? Ou pode, pelo menos, adiá-las? Para responder a isso temos de atentar para o que realmente se está querendo fazer: assumir a liderança por meio do processo de eleição para, a partir daí, impor ou impedir certas agendas por meio de “canetadas” políticas; e, além disso, preocupar-se sempre para que ninguém o retire do seu posto para desfazer todo o seu trabalho. Em outras palavras: sem conversa. “Eu tenho minha opinião e você tem a sua; vamos ver quem sobe no poder e impõe a sua opinião primeiro, calando a boca do outro.” “Ganhei a eleição, então agora... chola mais”.

Martim Vasques da Cunha comenta sobre uma ocasião na qual citou, em aula, uma citação de Hans-Hermann Hoppe, em Democracia: O Deus que Falhou. Diz o trecho:

“Não pode haver tolerância para com os democratas e os comunistas em uma ordem social libertária [...] Eles [os democratas e comunistas] terão de ser fisicamente separados e expulsos da sociedade. Da mesma forma, em uma aliança fundada com a finalidade de proteger a família e os clãs, não pode haver tolerância para com aqueles que habitualmente promovem estilos de vida incompatíveis com esse objetivo.”

E então, o “fato revelador”, segundo o comentário do Martim:

“Enquanto explicava esse trecho, alertei aos alunos que essa ‘ordem social libertária’ de Hoppe era, de fato, uma ordem social totalitária. A sala de aula ficou em total silêncio – exceto Eduardo Bolsonaro, que disse: ‘Professor, lá em casa temos armas e facas para que isso aconteça aqui, no Brasil’.”

Estão arremessando a esquerda fora da mesma forma que se arremessa um bumerangue. A coisa volta, e com mais força

É claro que, até o momento, ninguém pegou em armas e facas, mas o ponto não é esse: o ponto é que nunca foi segredo que a estratégia do governo Bolsonaro não envolve diálogo. Assim, a pergunta é: será que realmente seremos bem-sucedidos contra o avanço de certas agendas por meio do simples exercício da imposição política? Ou será que essa combatividade extrema, de silenciar opositores, apenas colocaria mais lenha na fogueira? Tendo a ter a impressão de que estão arremessando a esquerda fora da mesma forma que se arremessa um bumerangue. A coisa volta, e com mais força; e talvez volte até mesmo com justificativas legítimas. Talvez a lição já devesse ter sido aprendida com nossa triste história da ditadura militar e, agora, com a subida de Biden nos EUA, ou mesmo o retorno do peronismo na Argentina.

“Ah, mas estamos apenas adiando”, alguns dirão, “o que já é bom”. Desculpem-me, mas, em primeiro lugar, eu penso nos meus filhos. Não quero garantir só o presente, em face de um futuro sombrio. E, em segundo, e mais importante, quanto mais insistirmos nesse método, mais difícil ficará lá na frente. Estamos, hoje, pregando o método do silenciamento dos outros. Se não fizermos nada para parar isso, é o que farão conosco amanhã.

O fato é que a grande maioria já está descrente quanto ao diálogo. “Paralaxe cognitiva” é, muitas vezes, um termo que costumamos ouvir por aí, mas que também pode ter suas contrapartes na filosofia protestante: argumenta-se, muitas vezes, que o incrédulo da esquerda não tem a mesma “cosmovisão” ou “conjunto de pressuposições” do cristão e, portanto, jamais conseguirá se engajar em um diálogo honesto e proveitoso com ele. Esses últimos muitas vezes até chegam a desconfiar de quem tenta algum diálogo: é bem comum que se interprete isso sempre como uma negociação de princípios; como se o cristão que estivesse disposto a conversar, ou mesmo conceder alguns pontos para o “esquerdista ateu”, se assemelhasse a um fariseu ou saduceu, abrindo mão da ortodoxia para conseguir favores da política romana. Diante dessa percepção, muitas vezes só resta a estratégia de zelotes: subverter o império por meio da força e, então, impor os nossos valores de cima para baixo. Basta considerarmos seriamente como Jesus se posicionou diante disso tudo, naquela época, para reconhecer que há algo errado aí.

Alasdair MacIntyre falou sobre isso, em Depois da Virtude, ao refletir sobre a situação de incomensurabilidade de visões morais em que nos encontramos. Desaparece uma ideia de bem comum como uma forma de vida envolvendo valores, virtudes e narrativas compartilhados, e acaba-se numa sociedade que diz ser neutra, liberal, onde “cada um faz o que lhe parece certo” (Juízes 21,25). O resultado disso, como ele aponta, só pode ser uma situação de um jogo de forças onde ganha aquele que fala mais alto: a política moderna se torna apenas uma forma de “guerra civil por outros meios”. É o que a maioria dos evangélicos na política tem demonstrado – como na recente polêmica sobre o fechamento das igrejas no STF.

Precisamos ir além dessas alternativas fáceis, porém destruidoras do bem comum. Não se vence agendas de esquerda desse jeito, como se a política fosse simplesmente um “dispositivo” no qual introduzimos nossos valores e colhemos os nossos resultados (refiro-me à teoria de Albert Borgmann, filósofo da tecnologia, que já tem falado há tempo sobre essa dispositivização da vida civil). O caminho é mais longo e árduo; passa por um engajamento mais “pé no chão” com a realidade, trabalhando nas bases e ouvindo mais os outros – é uma prática focal, como diria o próprio Borgmann. Deve-se compreender que, mesmo na palavra do esquerdista, há tons de realidade que precisam ser enfatizados e apoiados, ao mesmo tempo em que se aponta erros com muita humildade, paciência e mansidão. Em meu trabalho tenho tido contato com muito do que se chama no Brasil de movimento de economia solidária e tecnociência solidária (do professor Renato Dagnino). Ora, solidariedade é coisa muito cristã; ou melhor, a fraternidade.

Há muitos cristãos sérios – e conservadores – que podem ser trazidos para esse debate, para enriquecê-lo e transformá-lo. Isso chega até mesmo a assustar alguns, fazendo-os me acusar de estar “vendido para o império romano”, mas é porque nossa discussão intelectual está atrasada. Não conseguimos sequer pensar além desse velho e ultrapassado fusionismo de Thatcher/Reagan (liberalismo clássico + tradicionalismo social + intervencionismo muscular) que populou o imaginário político do evangélico nas últimas décadas. Mal temos conhecimento de movimentos como da nova direita, do pós-liberalismo, de gente como Patrick Deneen ou David Goodhart; muitas vezes achamos que é tudo mais do mesmo, que não há nada de criativo ou renovador, ou mesmo que é coisa de hereges e traidores do movimento (de “gente que não estuda a sua Bíblia”), e continuamos com nossas mentes fechadas.

Para além do medo, a coragem

O medo político, junto à perda de esperança, se transforma facilmente em covardia. Ou pior: começa até mesmo a perder a sensibilidade para questões sérias e urgentes que têm surgido, como as tentativas de encobrimento de investigações envolvendo a família, por parte de Bolsonaro, e a escancarada má gestão da pandemia pelo governo – uma situação seríssima que não pode ser relativizada. Sei que muita gente virá apresentar milhões de desculpas para isso, e virá me ensinar a ver que existem formas alternativas de narrar fatos como esses, mas lanço a pergunta: qual o ponto de fazer isso? Como já sugeri, será que não seria o medo de criticar Bolsonaro e, com isso, “dar munição para a esquerda” que se teme tanto? Será que o “fantasma da esquerda” nos tem forçado a não querer enxergar a gravidade da situação em que nos encontramos?

E muitos de nós, ao observar as mortes diárias crescendo a cada dia, fazemos duas coisas: 1. reinterpretamos a situação para tentar dizer que Bolsonaro teve pouquíssima culpa (e que isso é apenas o que “a mídia” quer que acreditemos) e, pior ainda, 2. muitas vezes, mesmo que implicitamente, nos relegamos ao pensamento de “é, mas seria muito pior se...”. Pior como, meus caros? Que senso de proporção é esse? Às vezes me pergunto se não estamos dando tamanho exagerado para questões de liberdade e adoção social da moralidade cristã, e ignorando todo o resto. Isso é coar o mosquito e engolir o camelo! Não, não dá para não criticar Bolsonaro ou sentir que quem está fazendo isso está sendo “inadequado”. E é claro que também não temos como saber como Haddad faria a gestão dessa pandemia – e os exemplos de outros governos de esquerda na América do Sul também não têm sido nada animadores –, mas, ainda assim, deveríamos realmente parar e pensar no que mais importa. Sinceramente, como cristão, não sei se estaria até mesmo disposto a suportar perseguição religiosa se, com isso, também pudesse garantir uma vida minimamente digna e saudável para meus vizinhos. Ainda prefiro uma banheira com água suja do que a banheira sem água e sem bebê.

O incêndio está aí e não temos nenhum bombeiro por perto. A única coisa que não quero fazer, no entanto, é, no desespero, atirar gasolina nesse fogo

“Mas, sinceramente, você realmente não tem medo das agendas identitárias e totalitárias?”. É claro que tenho – inclusive, mais da identitária que da totalitária, no que concerne à esquerda; a totalitária, por sua vez, creio que transcende o espectro direita-esquerda e hoje está mais ligada ao empreendimento tecnocrático. É importante ter algum medo, sim, e fazermos algo a respeito. E, para falar a verdade, não sou nada otimista: tenho poucas esperanças de que vamos conseguir impedir a coisa ou chegar a mudanças concretas (ainda mais, como disse, diante dessas estratégias que só pioram a situação). Afinal, essas agendas não são simplesmente políticas; são culturais, e aquilo que é cultural não se resolve simplesmente com imposição, com “revolução brasileira”. Mas, se for para isso continuar crescendo – e como cresce! –, que seja apesar de mim, e não apesar do meu voto em qualquer porcaria que apareça. Não me iludo: o incêndio está aí e não temos nenhum bombeiro por perto. A única coisa que não quero fazer, no entanto, é, no desespero, atirar gasolina nesse fogo.

Por fim, você pode me perguntar: “entendi, mas, então, diante disso tudo, o que faremos em 2022 diante de um possível cenário Lula x Bolsonaro nas eleições?” É uma boa pergunta, como sempre tem sido a cada quatro anos. O que posso lhe dizer é a forma como reagi em 2018 e a forma como não vou reagir em 2022. Em 2018, quando me diziam que votariam nulo, por princípios, minha reação era: “mas você não tem medo de o PT ganhar?” Hoje, não compreendo esse medo e não acho que o PT perder para gente como Bolsonaro vai melhorar muita coisa. E em 2018, quando alguns, inclusive cristãos, me diziam que votariam no PT porque não podiam deixar Bolsonaro vencer, achava isso o ápice da loucura. Poderia até dizer: “mas você realmente subestima essas agendas identitárias e totalitárias da esquerda, não é?” Hoje, já vejo que, embora algumas dessas pessoas realmente as subestimem (o que é um problema sério), de fato havia outras que as reconheciam, mas não usavam apenas isso como parâmetro para uma decisão. Além dos supostos “valores e costumes cristãos”, visualizavam também um possível desmonte da educação, da saúde, do meio ambiente – coisas que têm, de fato, acontecido, e que não estão nem um pouco de acordo com os tais princípios cristãos. Pensavam, talvez, na paz da cidade (Jeremias 29,7), além de uma simples adoção (ou imposição) de valores religiosos particulares em uma sociedade cada vez mais secular. Talvez pensassem: “é melhor recuar um pouco aqui, ou perder essa peça, para poder ganhar o jogo lá na frente”. Talvez tivessem coragem.

Não estou dizendo que será a mesma coisa em 2022. Muito ainda deve acontecer, e muito ainda deve ser pensado. O que eu não gostaria, apenas, é que o medo nos paralisasse e tirasse o juízo.

Que Deus nos dê sabedoria, presença de espírito e coragem. Precisamos de uma coragem verdadeira; a coragem de não aceitar qualquer coisa.

Fernando Pasquini Santos é professor de Engenharia Biomédica na Universidade Federal de Uberlândia e pesquisador nas áreas de inovação e avaliação de tecnologias em saúde, interação humano-tecnologia e filosofia da tecnologia.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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