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Bandeiras do movimento LGBT e transgênero.
Bandeiras do movimento LGBT e transgênero.| Foto: BigStock

Em nossa coluna temos frequentemente tratado de um grupo de questões hoje denominadas, grosso modo, como “de costumes”: aborto, debates sobre a questão LGBTQIA+, políticas identitárias em geral, sexo e casamento. Trata-se de uma caracterização bastante pedestre dessas pautas, que são na verdade questões estruturantes para a civilização. Ademais, quando o campo da esquerda trata desses assuntos, são temas políticos da mais alta relevância; mas, quando são os conservadores levantando a bola, são “costumes”. Não sei se é hipocrisia ou autoengano.

O fato é que são assuntos tanto políticos (ou micropolíticos) quanto éticos e, sim, de costumes também. Todos dizem respeito à forma como o Self moderno se relaciona com a corporeidade, com o corpo sexual e com a afetividade, e existem nesse lugar de transição entre natureza, sociedade e indivíduo. Como não poderiam ser cruciais em uma visão civilizatória?

Para desembaraçar esses novelos ético-políticos é obrigatório considerá-los em diversas perspectivas. As mais óbvias são, com o perdão da analogia pouco imaginativa, “de longe” e “de perto”: há as questões de mérito, quanto ao sentido moral intrínseco do aborto ou do sexo extramarital, por exemplo, e as questões mais amplas e “distantes”, de natureza estrutural. Questões como: o que torna plausível a afetividade moderna? Como funciona socialmente ou economicamente o movimento que defende a agenda X ou Y? É daí, por exemplo, que distinguiremos o racismo intencional, praticado por um indivíduo que despreza alguém pela cor da pele, e a desigualdade racial estrutural, que pode inclusive conferir plausibilidade ao preconceito racial e ajudar a perpetuá-lo.

Há evidência científica recente de que estamos atravessando uma revolução emotivista ou afetivista. É uma mudança tectônica, profunda, e afeta a estabilidade de toda a estrutura social

A miopia conservadora

Temo que, a esse respeito, a imaginação conservadora popular tenda a cultivar certa miopia, enxergando detalhadamente o mérito moral das referidas agendas, mas vendo imagens borradas de seus contextos estruturais. Não admira, por exemplo, que muitos conservadores não enxerguem a existência de suportes estruturais para o racismo (se o nome correto para isso é “racismo” estrutural, é algo que merece debate).

Mas nosso assunto na coluna de hoje não é o racismo; tomei-o apenas como exemplo. Nosso assunto é, antes, a transformação na afetividade moderna, que inclui a revolução sexual, mas é algo bem maior. Como já observamos aqui, há evidência científica recente de que estamos atravessando uma revolução emotivista ou afetivista. Essa transformação é o que torna a cultura LGBTQIA+ plausível, assim como o abortismo, o sexo extramarital e as concepções revisionistas de casamento e de família que vêm se infiltrando em nosso direito civil. É uma mudança tectônica, profunda, e afeta a estabilidade de toda a estrutura social.

Homo consumans

Em seu livro A Felicidade Paradoxal (de 2008), o filósofo francês Gilles Lipovetsky descreve como o capitalismo de massa organizou-se para satisfazer ao consumo individual, sendo por ele denominado “capitalismo de hiperconsumo”, o qual tem a felicidade pessoal e o “consumo emocional” como seus valores centrais:

“Já não se trata mais apenas de vender serviços, é preciso oferecer experiência vivida, o inesperado e o extraordinário capazes de causar emoção, ligação, afetos, sensações. Graças à fase III, a civilização do objeto foi substituída por uma ‘economia da experiência’, a dos lazeres e do espetáculo, do jogo, do turismo e da distração. É nesse contexto que o hiperconsumidor busca menos a posse das coisas por si mesmas que a multiplicação das experiências, o prazer da experiência pela experiência, a embriaguez das sensações e das emoções novas: a felicidade das ‘pequenas aventuras’ previamente estipuladas, sem risco nem inconveniente.”

Talvez haja um exagero em dizer que passamos de uma civilização do objeto para a da experiência; mas certamente os objetos são agora, primariamente, veículos e mediações de experiências emocionais e vivências sentimentais. E a manutenção do fluxo das experiências depende da “mudança perpétua”, da novidade. Consequentemente o mundo, enquanto putativa realidade externa, submerge sob as tecnologias da felicidade.

Essa ordem de consumo expressa um ideal de liberdade humana absoluta, que não pode se determinar pelos objetos, mas deve sempre trocá-los, fazendo-os sem sentido e objeto de descarte contínuo, criando-se assim uma eternidade artificial, um presentismo absoluto no qual tudo é devir e o único ser e realidade é o sujeito livre com suas sensações. Na apoteose do ideal de personalidade livre, emerge o Homo consumans.

O indivíduo moldado por esse sistema sofre, na opinião de Lipovetsky, de uma forma de narcisismo disseminado. Ele é altamente consciente de sua liberdade individual, a ponto de o filósofo denominá-lo Homo individualis; mas tornou-se extremamente fraco diante das imposições do capitalismo emocional, dependente de suportes externos para autovalidação emocional e incapaz de gerenciar suas pulsões e acomodar a frustração:

“O relaxamento dos controles coletivos, as normas hedonistas, a escolha da primeira qualidade, a educação liberal, tudo isso contribuiu para compor um indivíduo desligado dos fins comuns e que, reduzido tão-só às suas forças, se mostra muitas vezes incapaz de resistir tanto às solicitações externas quanto aos impulsos internos. Assim, somos testemunhas de todo um conjunto de comportamentos desestruturados, de consumos patológicos e compulsivos. Por toda parte, a tendência ao desregramento de si acompanha a cultura de livre disposição dos indivíduos entregues à vertigem de si próprios no supermercado contemporâneo dos modos de vida. À medida que se amplia o princípio de pleno poder sobre a direção da própria vida, as manifestações de dependência e impotência subjetivas se desenvolvem num ritmo crescente. O que se representa na cena contemporânea do consumo é tanto Narciso libertado quanto Narciso acorrentado.”

Ampliando a liberdade para ampliar o prazer, o indivíduo torna-se dependente de experiências emocionais e passa a ser permanentemente tutelado pelo sistema que provê essas experiências

Essa é a “felicidade paradoxal”; na inexorável viagem rumo à emancipação completa e à absoluta autodeterminação, a concretude e estabilidade do universo é desfeita; ele se faz líquido e comodificável para não mais resistir ao sujeito. Como pura externalidade, tela branca para projeção dos significados subjetivos, não serve também como estrutura de suporte para a própria subjetividade. E com isso ela se vê desenraizada e indeterminada; ampliando a liberdade para ampliar o prazer, o indivíduo torna-se dependente de experiências emocionais e passa a ser permanentemente tutelado pelo sistema que provê essas experiências. Exatamente essa dependência é o que se mostrará também na obsessão cultural por reconhecimento e autovalidação:

“O sentimento de falta de reconhecimento de si aparece em ampla medida como o reverso da medalha da sociedade organizada em torno da busca extrema de maior bem-estar. Daí, toda uma série de paradoxos.”

A despeito de sua análise em muitos aspectos rica e esclarecedora, Lipovetsky falha em reconhecer que a influência entre o capitalismo e o emotivismo foi mútua, de duas mãos. Assim ele erroneamente trata do campo dos sentimentos amorosos como um espaço livre da influência da lógica hiperconsumista:

“Um eixo importante da vida permanece fundamentalmente heterogêneo às forças do mercado: nem tudo, é evidente, foi colonizado pelo valor de troca [...]. Essa parte fora do mercado não é nem residual nem arcaica. É bem o contrário: quanto mais se amplia a comercialização dos modos de vida, mais se afirma o valor do polo afetivo na esfera privada. O universo do consumo-mundo não põe fim ao princípio da afetividade sentimental, consagra-o como valor superior...”

Como veremos em outro momento, o otimismo sentimental de Lipovetsky não se sustenta diante de uma sociologia crítica da nova economia afetiva. A lógica do consumo invadiu a afetividade moderna.

Duas “éticas protestantes”

As raízes do capitalismo emocional e do consumo emocional foram exploradas com maior rigor explanatório por Colin Campbell em A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno (The Romantic Ethics and the Spirit of Modern Consumerism, de 1987). Campbell argumentou que uma ética romântica do sentimento e do prazer, da novidade e do antitradicionalismo, desenvolveu-se simultaneamente com a ética “protestante” que alimentou o capitalismo primitivo, segundo a tradicional tese weberiana. Essas duas éticas teriam uma relação simbiótica, e não polarizada, ambas procedendo das mesmas raízes calvinísticas, que combinavam tendências racionalistas e disciplinadoras (a ética “puritana”) e tendências pietistas e sentimentais (sobreviventes na ética romântica).

As raízes duplas do consumismo moderno se refletem nas “culturas gêmeas” contemporâneas do espírito capitalista de trabalho e disciplina e de sua contrapartida recreacional e sentimental, “casando consumo com produção, diversão com trabalho”. A obra de Campbell é muito iluminadora ao deslindar a pré-história espiritual da cultura do consumo emocional descrita por Lipovetsky.

O ponto importante é que essa ética romântica, uma versão secularizada dos fervores religiosos evangélicos, se tornou a força motora do consumismo moderno e, em seguida, da sentimentalização da vida ética no século 20. O Homo sentimentalis é um filho ilegítimo do protestantismo e um competidor natural da fé evangélica.

As raízes duplas do consumismo moderno se refletem nas “culturas gêmeas” contemporâneas do espírito capitalista de trabalho e disciplina e de sua contrapartida recreacional e sentimental, “casando consumo com produção, diversão com trabalho”

A psicologia moderna e os campos afetivos

A principal mente contemporânea no estudo do capitalismo emocional é a socióloga israelense Eva Illouz. Em seu livro O Amor nos tempos do Capitalismo, ela descreveu como, no princípio do século passado, por volta dos anos 20 e 30, dois poderosos atores culturais emergiram no panorama do capitalismo moderno: a psicologia e o movimento feminista.

A influência da psicologia se manifesta no século 20 com a emergência de um “estilo terapêutico afetivo”, que reconstruiu a identidade moderna em termos do indivíduo frágil e precário em busca de autoafirmação e aceitação, e promoveu a comunicação afetiva (ou o etos comunicativo) como o caminho para produzir o bem-estar individual e o ajustamento social. Por volta dos anos de 1920 e 1930, a psicologia moderna ganhou uma voz importante no mundo dos negócios e da indústria ao demonstrar que o bem-estar emocional e afetivo poderia aprimorar tanto a produção quanto o consumo, tornando-se um poder cultural. Esse estilo terapêutico se espalharia por todas as instituições e, acima de tudo, pelas do mercado e do Estado.

A psicologia moderna emergiu como potência quando ganhou uma voz dentro do mundo industrial e empresarial, ao demostrar que o bem-estar afetivo e emocional seria uma condição indispensável para o processo produtivo e para o próprio consumo. A personalidade seria a chave oculta do sucesso profissional, e a chave para a personalidade seria o discurso terapêutico afetivo e a reorganização institucional nos termos desse discurso. A empatia (como competência afetiva e simbólica) envolvendo a expressão, a compreensão, o reconhecimento do outro, o controle dos afetos negativos, a perspectiva do outro, tornou-se essencial para a sobrevivência e o avanço nesse novo universo, e o ambiente do capital tornou-se mais personalizado, democrático e sensível aos dilemas individuais.

Segundo Illouz, boa parte das principais pesquisas psicológicas com foco empresarial focalizavam justamente a experiência das mulheres na empresa, e desse modo “aspectos das experiências afetivas e da individualidade femininas foram incorporados às novas diretrizes de administração das relações humanas na empresa moderna”. Deu-se uma ampla afetivização e feminilização das teorias administrativas e organizacionais.

Esse processo levou à exigência de novas competências no mundo do capital, de modo que não apenas as mulheres foram levadas a se masculinizar, mas os atores masculinos foram forçados a adquirir competências afetivas e comunicacionais femininas.

A mudança introduzida pelo estilo terapêutico-afetivo foi acompanhada de outra grande transformação: o movimento feminista. Como a psicologia, o movimento feminista envolvia uma conversão da experiência afetiva privada em discurso público, em critério para julgamento e decisão. E essa conversão era feita do ponto de vista feminino, que articulava em público uma percepção mais afetiva do Self. Houve, então, uma sinergia entre os dois movimentos. Feminismo e psicologia tornam-se assim “aliados culturais supremos”, compartilhando categorias feminilizadas de pensamento e sua influência recíproca estabelece “um modelo cultural de intimidade sexual e afetiva”.

A elite dos campos afetivos trouxe ao mundo ocidental um projeto terapêutico de felicidade. E essa terapêutica se tornou a nova agenda da revolução

Seguindo as noções de “campos sociais” de Pierre Bourdieu e de “esferas de justiça” de Michael Walzer, Eva Illouz descreveu a emergência de um novo campo de poder social dentro da sociedade moderna: o “campo afetivo”, mantido pelo mecanismo do habitus, o mecanismo estruturante operando a partir de dentro dos agentes sociais. Seus valores internos são chamados de “capitais afetivos”. Indivíduos capazes de dominar e empregar os “capitais afetivos” fazem-se atores do “campo afetivo”. Para reforçar esse ponto tão importante procederemos a um conjunto mais longo de citações da socióloga:

“... os campos afetivos são regulados pela competência afetiva, ou capacidade de exibir um estilo afetivo definido e promovido pelos psicólogos.”

“Ao fazerem da personalidade e dos afetos novas formas de classificação social, os psicólogos não só contribuíram para transformar o estilo afetivo numa moeda social – um capital –, como também articularam uma nova linguagem de identidade para se apossarem desse capital.”

“Todos esses diversos atores convergiram para a criação de um campo de ação em que a saúde mental e afetiva é a principal mercadoria circulada. Todos contribuíram para o surgimento do que chamo de um campo afetivo, ou seja, uma esfera da vida social em que o Estado, o mundo acadêmico, diferentes segmentos das indústrias culturais, grupos de profissionais credenciados pelo Estado e pela universidade, e ainda o grande mercado dos medicamentos e da cultura popular, entrecruzaram-se para criar um campo de ação e de discurso com regras, objetos e fronteiras próprios.”

Essa nova perspectiva afetiva, promovida pelos controladores dos campos afetivos, teve impacto direto nas concepções modernas de felicidade, sexo, casamento e família. A elite dos campos afetivos trouxe ao mundo ocidental um projeto terapêutico de felicidade. E essa terapêutica se tornou a nova agenda da revolução.

A psicologização do liberalismo

A coisa não demorou a se tornar uma força política. Segundo Eva Illouz, o liberalismo político norte-americano, com sua ênfase em direitos individuais, fundiu-se com esse estilo terapêutico-afetivo, transformando a crença moral na autodeterminação e na busca de felicidade pessoal em uma cultura da autoajuda e em um direito de buscar a própria felicidade emocional. Podemos dizer que o liberalismo político foi psicologizado:

“... como afirmaram Michel Foucault e John Meyer, em estilos diferentes, mas concordantes, o Estado moderno organizou seu poder em torno de concepções culturais e visões morais do indivíduo. O discurso psicológico forneceu um dos principais modelos do individualismo, sendo adotado e propagado pelo Estado.”

Essa espécie modificada de liberalismo progressista conduz o capitalismo de consumo a uma inevitável revolução emocional, que pode ser entendida como a maturação do espírito do romantismo, e acabará forçando o próprio Estado a dar atenção ao bem-estar emocional de seus cidadãos. Do ponto de vista dos movimentos sociais, essa mudança se manifesta na intensa luta do feminismo contra o patriarcado, ao qual o movimento o movimento LGBTQIA+ depois se aliaria.

A ética do Homo sentimentalis, por trás das referidas mudanças de “costumes”, tem suportes estruturais no capitalismo de consumo moderno, e procede por uma desregulamentação das normas morais e dos nexos comunitários

Certamente a luta por mudanças sociais radicais, e mesmo por um completo desmantelamento da família tradicional, já vinha amadurecendo no Ocidente havia um pouco mais de 200 anos. No nascedouro do capitalismo industrial, as forças do capital que pilotavam as transformações demandaram uma reorganização da família devido à necessidade de mão de obra e de mercado de consumo, e muitos revolucionários socialistas entendiam que a plena emancipação humana dependia do fim da família.

Os mestres da terapêutica

Mas não podemos ingenuamente transportar essas respostas para o mundo de hoje, sem mais. É preciso perguntar: que força, no mundo contemporâneo, fornece o conteúdo para essa engenharia social radical?

Precisamente o campo afetivo, entendido como o campo de geração e disseminação do simbolismo central da experiência pessoal e corporativa da cultura terapêutica. O novel campo afetivo veio a se tornar, assim, a mais acabada expressão da fé moral liberal, que por sua vez é a expressão mais importante do “ideal de personalidade livre” ou ideal emancipatório originário do Renascimento e consolidado no Iluminismo.

Os atores capazes de gerir e conduzir o campo afetivo, e articular suas políticas na esfera governamental (ou seja, promover a conversão de capital afetivo em capital político), são também capazes de conferir novos direcionamentos ao processo de reengenharia revolucionária da ordem social, desse modo reinterpretando o significado das instituições, costumes e moralidade de modo a adaptá-las ao telos do bem-estar emocional.

Ainda que não idêntico às elites sociais políticas e econômicas que controlam o sistema de capitalismo global, o campo afetivo exerce sua influência através de todo o sistema e interpreta a experiência dos indivíduos sob esse sistema, coordenando o seu desajustamento em relação às estruturas alheias ao sistema de hiperconsumo e administrando o seu ajustamento à revolução permanente do sistema de hiperconsumo. Em termos da teoria do antropólogo norte-americano Philip Rieff, os atores do campo afetivo exercem precisamente as funções de uma elite cultural terapêutica. Sua atividade terapêutica distingue-se por essa ambiguidade: deslegitima as regulações e normatividades como mecanismos repressivos, mas legitima a economia libidinal hedonista que alimenta o sistema de hiperconsumo.

Mas quem mesmo?

Podemos ser específicos: em primeiro lugar, a classe psicológica brasileira e, particularmente, certo estrato político-ideológico que controla a atividade por meio de cadeiras universitárias, dos Conselhos Regionais e do Conselho Federal de Psicologia. Mas, além deles, toda a elite intelectual versada em assuntos terapêuticos nos campos da saúde mental, do serviço social, da pedagogia, e em setores de políticas públicas relacionadas com o tema da família: mulher, reprodução, criança e adolescente.

Mas, como Eva Illouz apontou, os campos afetivos se projetam sobre outros campos sociais, como aconteceu desde a incorporação da linguagem psicológica no mundo corporativo, a partir dos EUA. Em Consuming the Romantic Utopia, Illouz apontará também o papel de Hollywood e da indústria cultural no espalhamento desses valores. Não podemos, portanto, nos esquecer do papel terapêutico da indústria do entretenimento e de grandes nacos da produção cultural nacional no Brasil. Finalmente, poderíamos mencionar aqui a classe jornalística, que costuma regurgitar acriticamente concepções de felicidade e saúde emocional sintetizadas pelos campos afetivos modernos.

Esse é, infelizmente, o trabalho de muitos psicólogos, educadores, artistas e marqueteiros: meramente ajudar o sujeito a se encaixar no sistema, aceitar suas imoralidades e cultivar seu bem-estar pessoal

Se a nossa apresentação da coisa estiver na direção certa, podemos afirmar que a ética do Homo sentimentalis, por trás das referidas mudanças de “costumes”, tem suportes estruturais no capitalismo de consumo moderno, e procede por uma desregulamentação das normas morais e dos nexos comunitários, para tornar o indivíduo cada vez mais individualista e mais obcecado pelo bem-estar emocional. E esse é, infelizmente, o trabalho de muitos psicólogos, educadores, artistas e marqueteiros: meramente ajudar o sujeito a se encaixar no sistema, aceitar suas imoralidades e cultivar seu bem-estar pessoal.

Além disso, evidencia-se um paradoxo: por um lado, muitos defensores conservadores do capitalismo liberal parecem não notar que nosso sistema hiperconsumista molda um estilo de personalidade individualista, narcisista e hedonista que é tóxico para a família – além de outras influências deletérias. Por outro lado, boa parte da esquerda militante, no campo dos costumes, parece não saber que é agente de propagação de uma versão amoral e predatória do capitalismo no campo da afetividade e da família.

Pense no PSol, por exemplo, o campeão do identitarismo. Não é essa a ironia das ironias? Enormes nacos da esquerda contemporânea e do wokeísmo não passam de marionetes do moderno capitalismo emocional.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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