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Manifestação LGBTI na frente da Suprema Corte dos EUA.
Manifestação LGBTI na frente da Suprema Corte dos EUA.| Foto: Saul Loeb/AFP

A vida é cheia de ambiguidades, e algumas são bastante públicas. Esse é o caso da decisão tomada pela Suprema Corte dos EUA (SCOTUS) na última segunda-feira (15/06), para o caso Bostock v. Clayton County.

Foi inegável o avanço positivo, em termos de respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa, considerando a situação de insegurança jurídica e social na qual pessoas LGBTQ viviam no país. Muitos consideraram essa decisão como algo tão ou até mais importante que a legalização do casamento igualitário. Mas para outros essa decisão aumenta a insegurança já crescente para instituições religiosas e pessoas que não compartilham dos valores e crenças da comunidade LGBTQ. Joe Carter, escrevendo para a The Gospel Coalition U.S., pontuou motivos para preocupação, e o Arcebispo José Gomez, de Los Angeles – ninguém menos que o Presidente da Conferência Nacional dos Bispos dos EUA (USCCB), declarou:

“É profundamente preocupante que a Suprema Corte dos EUA tenha efetivamente redefinido o significado legal de “sexo” na lei de direitos civis de nossa nação... uma injustiça que terá implicações em muitas áreas da vida”

Mas porque os conservadores teriam reservas diante de uma decisão aparentemente tão salutar?

O mérito e a agenda

Um pouco de contexto é necessário aqui. A questão de mérito é que a aceitabilidade da demissão de pessoas LGBTI em razão de sua orientação sexual tem sido um dos pilares da marginalização social dessas pessoas. Algo precisava ser feito. Como foi observado por George Chauncey, no artigo de Bokat-Lindell para a coluna Debatable no New York Times Opinion na terça dia 16:

“O medo de perder um emprego ou carreira era uma das mais poderosas ameaças forçando a se passar por héteros e tecer mentiras complexas sobre suas vidas e relacionamentos fora do trabalho... isso afetava aonde as pessoas se socializavam e com quem. Rompia relacionamentos quando as pessoas eram sutilmente aconselhadas por seus chefes simpáticos de que seus ‘colegas de quarto’ deveriam ir embora se não quisessem ver suas carreiras afundarem.”

A ideia simples é a de que “ninguém deveria ser demitido apenas por ser quem é” (Chase Strangio). E o argumento legal se baseou no capítulo VII do Civil Rights Act de 1964, que proíbe a discriminação no emprego em “em razão do sexo”. O debate girou em torno da possibilidade de estender a aplicação dessa linguagem à orientação sexual e à identidade de gênero. O argumento conservador foi o de que o legislador não tinha em mente essa interpretação. E o argumento vencedor foi de que essas formas de discriminação estão logicamente ligadas e implicadas na proibição da discriminação por sexo. Voltaremos à essa questão mais à frente.

O fato é que a movimentação pelo respeito e integração de pessoas LGBTI no sistema de mercado e emprego é hoje uma agenda estratégica no sistema internacional de direitos humanos. E diferentemente de outras agendas humanitárias, essa, em particular, foi paralelamente fortalecida pela ascensão do pink money, ou “dinheiro rosa”, que representaria globalmente alguns trilhões de dólares anuais.

Indo muito além da questão clássica dos direitos trabalhistas, a questão mais ampla dos direitos humanos e do princípio antidiscriminatório na empresa tem se movido para o centro do holofote. Na Resolução 17/4 de 16 de junho de 2011 o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou o texto “Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos”, fornecendo um amplo guarda-chuva de princípios e estimulando esforços internos em vários países para enfrentar a questão.

No caso do Brasil, a agenda tem progredido de forma consistente. Em 2018 a campanha ONU Livres & Iguais lançou um documento intitulado “Padrões de Conduta para Empresas”, produzido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, visando confrontar a discriminação contra pessoas LGBTQ no ambiente de trabalho, com apoio inicial de 20 empresas. Com isso a força do pink money se associou oficialmente ao grande discurso moral liberal dos Direitos Humanos. Globalmente, centenas de empresas já deram apoio à iniciativa.

Pouco depois foi publicado o decreto No 9.571 de 21 de novembro de 2018 estabeleceu as diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos, as quais dispõe, no Artigo 8o, o dever de combater a discriminação e respeitar a diversidade em todas as áreas e hierarquias. O inciso IX é claro e específico:

IX – “respeitar a livre orientação sexual, a identidade de gênero e a igualdade de direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros em âmbito empresarial”.

E no ano passado, por iniciativa do amigo Maurício Cunha, à época Diretor de Programa da Secretaria Nacional de Proteção Global do MMFDH (atualmente Secretário Nacional da Criança e do Adolescente), foi publicado o documento de 2011 do OHCHR, “Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos”, uma contribuição de grande valor para os Direitos Humanos no país. Também no âmbito da SNPG em 2019 – já durante o governo Bolsonaro – a diretora de promoção de Direitos LGBTI, Marina Reidel, fez avançar importantes agendas e cooperação internacional no campo da empregabilidade Trans.

Há, enfim, uma intensa pressão econômica e política internacional para que o ambiente corporativo, o trabalho e o emprego se ajustem a essas normas; mas cada país precisa lidar com vícios estruturais e limitações legislativas internas, e os EUA, com sua tradição de autonomia jurídica interna, têm caminhado lentamente nessa direção.

A decisão da última segunda-feira reveste-se de importância histórica, não apenas para os EUA, mas para todo o mundo hoje. Ela trouxe grande celebração entre os liberais-progressistas, mormente por ter recebido voto positivo de juízes conservadores da SCOTUS. Por isso é importante entender as reações preocupadas do campo conservador.

Não é a mesma coisa

“A Corte tenta convencer os leitores de que está apenas reforçando os termos do estatuto, mas isso é um disparate. Mesmo contemporaneamente, o conceito de discriminação em razão do “sexo” é diferente da discriminação por causa de “orientação sexual” ou de “identidade de gênero”. Em qualquer caso, nosso dever é interpretar os termos do estatuto de modo a “compreender o que eles significavam para pessoas razoáveis no tempo em que foram escritos”. Se cada Americano vivo houvesse lido isso em 1964, seria difícil encontrar um que considerasse a discriminação por sexo significando discriminação por orientação sexual – para não dizer identidade de gênero, um conceito essencialmente desconhecido à época.”

Juiz Samuel Alito, SCOTUS

“As implicações dessa usurpação do processo legislativo pela Corte provavelmente reverberarão de formas imprevisíveis nos próximos anos.”

Juiz Kavanaugh, SCOTUS

Retornemos ao argumento conservador; não tanto em seus detalhes jurídicos, mas em sua preocupação arquitetônica, de como ficaria a dinâmica social, diante dessa decisão. Independentemente dos claros benefícios da decisão para comunidade LGBTQ, que não desejo negar de modo algum, insisto em que o impasse que ela carrega no ventre não foi adequadamente considerado, nem nos EUA, nem no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Ou melhor: foi, mas de um modo desastrado.

Além do gravíssimo problema do ativismo jurídico excessivo, ressignificando leis e conceitos de modo injustificável, temos a questão crucial: como equacionar os novos direitos afetivos, nascidos da revolução sexual, e as liberdades civis fundamentais, incluindo as liberdades de expressão, de crença e de culto? E como equacionar esses direitos no ambiente de trabalho?

Estou entre aqueles, como o juiz da SCOTUS Samuel Alito, ou os editores da National Review, que não podem evitar a verdade clara como o dia, de que “sexo”, por um lado, e “orientação sexual e identidade de gênero”, por outro, simplesmente não são a mesma coisa. Não pertencem à mesma categoria. Elas coisas se distinguem como o trigo difere do pão. É claro que o pão é feito de trigo. Mas não é possível fazer um sanduíche de trigo. O trigo, ainda que domesticado, é uma espécie vegetal, que não veio a existir pelo artifício humano, e que tem sua história interna, alheia aos nossos interesses. O pão é outra coisa, uma criação culinária e estética complexa, que não brota do chão.

Se o trigo e tudo o que se faz com o trigo fossem a mesma coisa, não haveria distinção entre pão, cerveja, óleo de trigo e o perfume de trigo. Você poderia beber perfume de trigo à noite, esfregar cerveja no cangote pela manhã e plantar pães à tarde.

O sexo é binário, de um ponto e vista biológico científico, a despeito dos sentimentos políticos dos novos negadores da ciência, tem raízes evolutivas de centenas de milhões de anos, e teve função constitutiva para a natureza humana. O sexo é determinístico, compulsório, dado geneticamente. A orientação sexual é algo mais fluido, construída de modo multifatorial, podendo passar por mudanças e adaptações segundo experiências afetivas e sexuais. E a identidade de gênero é ainda mais sutil, constituída de modo narrativo, como uma história de si à luz de um projeto moral, segundo a descrição do Self na filosofia moral de Charles Taylor, como já procurei explanar em outro artigo na Gazeta: “Cura Gay: homoafetividade não é destino”.

Tanto a “orientação sexual” quanto a “identidade de gênero” são ambas afetivas, comportamentais, e passíveis de julgamento moral. Contém elementos de liberdade moral e narrativa coletiva inescapavelmente responsáveis, e implicam responsabilidades, como tudo o que os seres humanos sentem e fazem. Não são universalizáveis. De modo que não há como colocá-las na mesma categoria que a raça ou cor da pele, o sexo, a idade, a herança genética ou a naturalidade. Elas estão, antes, na mesma categoria que outras coisas cultivadas, como as virtudes morais, as preferências estéticas, e a religião.

Voltando às analogias gastronômicas: elas se categorizam e se distinguem do mesmo modo como pães, azeites, vinhos e bifes são todos “alimentos”, mesmo sendo muitíssimo diferentes entre si, mas ainda assim pertencendo juntos a uma categoria especial, diferente de “grãos”, “leguminosas”, “frutos” e “mamíferos”, que não são necessariamente “alimentos”.

Mas porque isso seria importante?

Porque ao ler distinções sexuais naturais e distinções afetivas e éticas culturais como se fossem a mesma coisa, estamos manifestamente borrando a distinção entre natureza e cultura. Ora, é certo que não acessamos a natureza sem a cultura, e que não há cultura sem natureza. Mas a interdependência não significa, não significou e nunca significará indistinguibilidade. É possível imaginar passos infinitos entre o número 1 e o número 2, mas isso não torna 1 e 2 indiferenciados. Do fato de que o mar e o céu se juntam no horizonte, não se segue que sejam contínuos. Negar a prioridade e a autonomia da natureza em relação à cultura é hybris, a arrogância humanista denunciada por David Erhenfeld.

Se sexo, orientação sexual e identidade de gênero são bens distintos – e são, manifestamente, distintos – precisam obrigatoriamente ser tutelados diferentemente pelo sistema jurídico. A distinção natural de macho e fêmea e sua função para a espécie humana são um bem que pertence à categoria dos biomas terrestres, da floresta Amazônica, das jubartes e das abelhas: são realidades que devem ser manuseadas com o máximo cuidado, compreendidas e preservadas. E que não podem ser absorvidas por nossos experimentos industriais, mercadológicos e legislativos.

Como venho argumentando há algum tempo na Gazeta, esse programa problemático do liberalismo progressista é uma das colunas da Ideologia dos Direitos Humanos, e vem usando a judicialização e os tribunais para se impor sobre a sociedade. Mas não é função dos tribunais legislar sobre a realidade e tentar reformar a natureza. Isso é coisa da boneca Emília.

Discriminações válidas e inválidas

Mas deixemos de lado essas considerações por um momento e deixar bem claro que a decisão da Suprema Corte dos EUA tem, sim, o seu mérito. Sem dúvida, a consideração do fenômeno da demissão de uma pessoa LGBTI em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero representa, como regra, um tipo de injustiça. Sentimo-lo intuitivamente, e esse sentimento moral pede explanação.

Se pensarmos em termos finalistas, a injustiça se mostra na demissão arbitrária de pessoas LGBTI quando inexiste relação necessária entre a orientação sexual e a identidade de gênero e aquilo que funda a relação de emprego, ou seja, um trabalho de certa natureza e as condições suficientes para a consecução desse trabalho.

Pode-se alegar que aspectos da vida moral e outras relações mantidas por um empregado incidem, de forma indireta, sobre a sua atividade profissional, e que pode haver incompatibilidade entre tais aspectos e relações com aspectos e relações similares mantidos por outros empregados e pelo empregador. Ainda assim, tais condições geralmente não constituem, em nosso regime moderno de trabalho especializado, em itens constituintes do contrato de trabalho, e não guardam conexão necessária com a natureza interna do trabalho. Vamos dizer que elas são fatores externos.

Mas a moralidade conta, sim. Em primeiro lugar, um comportamento moralmente reprovável pode incidir sobre todo o ambiente de trabalho; se um sujeito é um predador sexual e um assediador, por exemplo, ou se uma chefe comete abuso psicológico contra os funcionários continuamente.

E podemos ser mais específicos. É preciso, por exemplo, que um contador seja uma pessoa honesta, que um enfermeiro seja gentil, que uma administradora seja prudente e que uma diretora de telejornal seja pontual. Embora todas as virtudes sejam recomendáveis a todas as pessoas, diferentes atividades profissionais geram demandas diferenciais sobre o caráter. Quando isso acontece, vamos dizer que essas virtudes são fatores internos. A sociabilidade, a competência técnica, a disponibilidade, as virtudes necessárias à relação de trabalho, e a adequação à atividade laboral são todos fatores internos à relação de trabalho.

A questão, no caso, é: que diferença faz, dada a natureza dessas atividades profissionais, se o contador, o enfermeiro, a administradora e a diretora de telejornal são pessoas heterossexuais ou pessoas LGBTI? Discriminar entre um diretor habitualmente pontual e um diretor habitualmente atrasado é legítimo porque isso afeta internamente a atividade, mas se a pessoa é discriminada no trabalho por sua orientação sexual ou identidade de gênero, essa discriminação não seria externa e, portanto, ilegítima?

Exceções

Como regra geral, portanto, a proibição da discriminação, nesse caso, é um ponto a favor da pessoa humana, capaz de melhorar os ambientes de trabalho e favorecer a integridade moral de trabalhadores LGBTI, no sentido de reduzir a duplicidade e a inautenticidade em suas vidas profissionais. Há a possibilidade de se elevar, com isso, a qualidade da sua saúde mental, o que não é pouca coisa.

Mas essa não é toda a história. Pois ao menos em alguns casos é possível alegar que a diferença na orientação sexual e de identidade de gênero se tornaria um fator interno à atividade profissional. Considere, por exemplo, o caso de um professor do básico em uma escola confessional Cristã. Uma escola confessional Cristã, seja ela católica ou evangélica provavelmente manterá uma compreensão Cristã tradicional sobre sexo, sobre práticas sexuais e sobre identidade de gênero. Muito provavelmente ela quererá ensinar tais ideias, recebendo para tanto a autorização dos pais de seus alunos. E isso estaria perfeitamente de acordo com o sistema internacional de Direitos Humanos. Considere as citações abaixo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e da Convenção Americana de Direitos Humanos, o que é sempre necessário lembrar:

Artigo 26° (Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948)

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo 18° (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966)

4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais - de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.

Artigo 12° (Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) de 1969):

Liberdade de Consciência e de Religião

4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.

Certamente que os pais não têm o direito de ensinar o ódio a seus filhos. Mas divergência e pluralismo não são ódio; do contrário o regime democrático, no qual as pessoas mantêm agudas divergências sobre princípios de vida, seria absolutamente impossível. Ensinar aos filhos que a ética sexual do vizinho é errada não é discurso de ódio, desde que eles sejam ensinados a respeitar as divergências morais e a buscar terreno comum para a cooperação com os que pensam e vivem de forma diferente, seja em outra religião, seja com outra vida sexual.

De modo que é legalmente válido e racionalmente plausível que uma escola confessional deseje ensinar sobre sexualidade segundo expectativas de pais de crianças e adolescentes e que, por isso, não possa admitir professores ensinando a ética afetivo-sexual LGBTI. E se essa escola puder demonstrar a capacidade de ensinar seus alunos a respeitar e cooperar com pessoas LGBTI e de outras culturas e religiões, no espírito do pluralismo democrático, isso deveria ser considerado suficiente e recomendável.

Também é legalmente válido e racionalmente plausível que o apelo ao direito de objeção de consciência se aplique a qualquer profissional, seja ele conservador ou LGBTI, de modo que um funcionário LGBTI numa empresa que, em algum momento, apoia uma agenda conservadora, tenha o direito de não colaborar sem risco de demissão e que, igualmente, um funcionário conservador em uma empresa que apoia a agenda LGBTI tenha o mesmo direito.

É possível imaginar inúmeros casos semelhantes em outros contextos, como agências de adoção confessionais, como ocorre nos EUA; escolas e universidades confessionais; ONGs que lidam como educação social incidindo em temas de sexualidade e ordem familiar; hospitais com programas de orientação sexual; jornais e companhias de comunicação comprometidas com a promoção de valores judaico-cristãos, e assim por diante.

Normalizar a divergência

Essas exceções são muito claras e formam um conjunto claramente distinguível, de modo que, enfim, não deveriam ser tratadas como exceções Ad Hoc a uma regra, mas como exigências de outra lógica de regramento. É necessário um sistema de inteligência legal que dê conta da complexidade da experiência.

Não há soluções simples para isso, mas entre as respostas que poderiam ajudar a esclarecer a coisa, está o reconhecimento de que o debate sobre os direitos LGBTQ é, também, um debate sobre os limites da diversidade no campo da ética sexual. Não se trata apenas da questão sobre não discriminar o diferente, como ocorre no debate racial, mas também sobre o quanto podemos discordar sobre crenças e práticas sexuais e sobre modos de construção da identidade.

Se vamos levar a sério a ideia de pluralismo democrático, “aceitar a diversidade” não pode significar apenas normalizar a diversidade de comportamentos sexuais. É preciso normalizar a diversidade de crenças sobre moralidade sexual, assim como normalizamos a diversidade de crenças religiosas. Ou seja, normalizar não apenas a diferença, mas a divergência em ética sexual e afetivo-identitária.

Isso significa permitir que as comunidades LGBTQs existam ao lado de comunidades cristãos, ao mesmo tempo em que cada grupo considera o outro completamente equivocado. Como o Rabino Lody B. van de Kamp, que fundou com o muçulmano Said Bensellam o projeto Said & Lody costuma dizer, “todos dizermos que temos a religião certa, eu digo que tenho a religião correta, e ele provavelmente tem a religião correta dele, mas todos precisamos dar espaço ao outro para reivindicar os mesmos direitos”. Não se promove pluralismo suprimindo a divergência de crenças morais.

Pluralismo e neutralidade no mundo do trabalho

Em “Doze Teses sobre o Pluralismo Social” (2014) apresentei uma leitura do que seria um pluralismo efetivo. Em síntese, precisaríamos admitir que crenças morais sejam representadas em comunidades, instituições e empresas ligadas a elas quando tais comunidades, instituições e empresas tem atividades finalísticas que incluem a promoção dessas crenças morais. Assim uma editora progressista deveria ter o direito de não empregar um editor que rejeita a agenda LGBTI, e uma editora conservadora ou cristã deveria ter o direito de rejeitar um editor que rejeita a agenda conservadora.

Por outro lado, não faria sentido demitir um diagramador, ou um recepcionista, ou um técnico de TI cujas convicções pessoais não se alinham com a instituição, caso sua atividade não interfira diretamente nos fins e crenças dessa instituição.

Além disso, instituições e empresas cujos fins não tem relação nem com uma coisa nem com a outra – como uma rede de supermercados, ou uma loja de roupas, ou em centro de tecnologia aeroespacial – deveriam fazer todos os esforços possíveis para honrar comunidades de crença diferentes, recusando-se a impor sobre seus funcionários qualquer adesão a agendas específicas no campo minado da ética afetivo-sexual, mas promovendo ambientes de convergência dos divergentes, em nome do bem comum.

A caixa de Pandora da Scotus

Equacionar liberdade religiosa e proteção a pessoas LGBTI é possível, mas o debate ainda está nebuloso e polarizado. É quase certo que a decisão da SCOTUS na última segunda-feira, sem as salvaguardas e excepcionalidades suficientes para contemplar as “exceções” que discutimos acima (as estabelecidas por ela tem sido consideradas insuficientes), abrirá uma nova geração de questionamentos e abusos judiciais contra instituições com valores religiosos ou conservadores.

Isso aconteceu antes, como no famoso caso do antigo chefe dos Bombeiros de Atlanta, Kelvin Cochran, um negro cristão que antes disso ocupou o cargo de Chefe Nacional dos Bombeiros dos EUA, nomeado pelo próprio Presidente Barack Obama. Cochram foi demitido do cargo por ter publicado privadamente um livro defendendo uma visão Cristã do sexo. O policiamento ideológico progressista pode ser bastante cruel e intolerante, e não perderá a oportunidade de usar a legislação contra a divergência. Como observou John Bursch, diretor de advocacy e conselheiro sênior da Alliance Defending Freedom:

“Certamente teremos litígios no futuro, em muitos outros casos, sobre se o princípio antidiscriminação ou o princípio da liberdade religiosa subvertem um ao outro no ao fim e ao cabo”.

As decisões da SCOTUS sobre casamento igualitário e antidiscriminação LGBTI nos últimos anos convergem com a ameaça global à liberdade religiosa que recrudesceu na ONU neste ano, como escrevi em maio na Gazeta, com as militâncias do liberalismo progressista ou “expressivo” ameaçando liberdades civis fundamentais e transformando os valores liberais em uma nova religião civil secular.

O caminho estadunidense e liberal da judicialização de todas as divergências sobre antidiscriminação e liberdades fundamentais não será capaz de harmonizar os Direitos Humanos. Se queremos promover a paz e o bem comum, precisamos construir caminhos diferentes, pensando ecologicamente sobre comunidades e crenças morais.

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