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O papa Francisco chega ao altar construído sobre a tumba de São Francisco de Assis para celebrar missa e assinar sua encíclica Fratelli tutti, em 3 de outubro de 2020.
O papa Francisco chega ao altar construído sobre a tumba de São Francisco de Assis para celebrar missa e assinar sua encíclica Fratelli tutti, em 3 de outubro de 2020.| Foto: Handout/Vatican Media/AFP

“Empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade.” (Papa Francisco)

Essa é uma das muitas frases antológicas de Fratelli tutti, a terceira encíclica do papa Francisco, a qual mostra indícios de ser uma espécie de manifesto sintético de suas preocupações. O título, “todos irmãos”, alude às Admoestações de São Francisco; a encíclica foi assinada no túmulo de São Francisco e lançada no último 4 de outubro, dia de São Francisco. Com seus oito capítulos e 287 teses, é bastante longa – praticamente um livreto –, tematizando a fraternidade e a amizade social.

É claro que ele tem muito a dizer sobre outras matérias, além do tema específico da fraternidade. Os assuntos de Bergoglio estão lá: solidariedade, crítica ao neoliberalismo e à lógica do consumo, uma linguagem política de “igualdade”, a questão ambiental, imigração, rejeição da pena de morte, e outros mais; mas todos girando ao redor da chave central.

Um desses assuntos gerou bastante mal-estar entre conservadores e liberais, e alguns vivas à esquerda: as sugestões do papa a respeito da economia, do mercado, da igualdade social e da propriedade privada. Já aviso que evitei esse assunto deliberadamente; não porque não seja importantíssimo, mas porque é complexo demais para tratarmos nesse artigo. Eu me limitarei a admitir que há pontos problemáticos na linguagem da encíclica, por um lado, mas que os críticos andam exagerando, por outro.

Francisco está claramente se comunicando, embora a partir da tradição cristã católica, com todos os homens, de todas as religiões ou sem religião

Toda a minha ênfase será na própria ideia de fraternidade e no tipo de atitude moral e comunitária que ela demanda. E, com todo o peso simbólico da associação entre o nome deste papa, o ícone histórico e o tema, vale a pena a audição atenta.

Fraternidade e bem comum

O argumento principal consiste, é claro, na urgência do princípio da fraternidade e na necessidade de cultivar a amizade social. Esse princípio é oportunamente ilustrado pela história da vista de São Francisco de Assis ao sultão Malik-Al-Kamil no Egito, na qual o santo deixou a vontade de fazer guerras e de impor doutrinas, e buscou comunicar o amor de Deus. Francisco teria sonhado com uma sociedade fraterna, a partir da obra da graça em sua vida:

Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas.

Imediatamente depois, Francisco evoca a o seu diálogo com o imã Ahmad Al-Tayyeb e sua linha de convergência, citando um trecho do Documento sobre fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (a “Declaração de Abu Dhabi”, de 2019), claramente fraseado com a linguagem do primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:

Deus criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos.

O verdadeiro sentido dos outros princípios fundadores dos direitos humanos não pode ser alcançado sem o princípio da fraternidade

Na versão de Abu Dhabi, naturalmente, temos uma linguagem teísta, com referência à criação e à vocação divina, que não está expressa na declaração de 1948. Mas Francisco está claramente se comunicando, embora a partir da tradição cristã católica, com todos os homens, de todas as religiões ou sem religião. Particularmente, está se comunicando com uma sociedade secular que, embora não tenha fundamentos últimos para tanto e careça de fontes espirituais para a sua moralidade, anda concorda que igualdade, dignidade, direitos e fraternidade são universais e normativos.

Mais à frente o papa dirá:

103. A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade. Embora sejam condições que a tornam possível, não bastam para que surja como resultado necessário a fraternidade. Esta tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à igualdade.

Temos um ponto crucial aqui, e de grande importância: o princípio da fraternidade tem conteúdo substancial e uma força regulativa importante; o verdadeiro sentido dos outros princípios fundadores dos direitos humanos não pode ser alcançado sem o princípio da fraternidade, e a tentativa de fazê-lo gera claras distorções.

Também, e corretamente no meu entender, o papa observa que o “anseio mundial de fraternidade”, que ele deseja ardentemente ver renascer no mundo, depende do reconhecimento da “dignidade” humana – ou seja, a intuição da sacralidade fundamental da pessoa humana e suas diversas expressões doutrinárias. Essa lógica é fundamentalmente cristã e, ao mesmo tempo, a fundamentação oculta de todo o sistema moderno de Direitos Humanos.

Para efetivar esse princípio, será necessário redescobrir o “bem comum”. A expressão aparece 20 vezes na encíclica, como a força catalisadora da vida comum e da cooperação. O sentido disso é imediatamente compreensível: encontrando o que pertence a todos nós, e cuidando disso juntos, descobrimos bases para a fraternidade naquilo que somos, para além de nossas particularidades. E esse princípio deve governar a nossa atividade política:

Para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum.

Encontrando o que pertence a todos nós, e cuidando disso juntos, descobrimos bases para a fraternidade naquilo que somos, para além de nossas particularidades

A tese básica do papa Francisco toca no ponto nevrálgico da política contemporânea, denunciando a fragilidade de nossas lutas frenéticas por liberdade, justiça e igualdade ao mesmo tempo em que destruímos o tecido social necessário para efetivar tais valores e direitos. Quando no governo, dei grande ênfase a esse princípio, e meu primeiro artigo da coluna na Gazeta, “A Ideologia dos Direitos Humanos”, chegava exatamente a essa conclusão.

Penso que a promoção da fraternidade e do bem comum estão no centro de qualquer política cristã hoje, tanto para católicos romanos quanto para evangélicos, aos quais eu gostaria de recomendá-la.

O paradoxo da superconexão

Fraternidade a partir do bem comum: esse é o princípio e a tarefa, nos termos mais básicos. E suas cores ressaltam em contraste com as urgências desse tenebroso momento histórico. A pandemia da Covid-19 mostrou a incapacidade de ação coletiva global. Estamos “superconectados”, mas ao mesmo tempo em tal fragmentação que é difícil cooperar. Mais perto do fim da encíclica, o papa fala de modo bem claro e honesto que “estão a se criar novamente as condições para a proliferação de guerras”. Penso que dificilmente o alerta poderia ser dado de forma mais clara: o processo de fragmentação da ordem internacional deixa um vácuo de compromissos que, historicamente, é sempre preenchido com sangue.

O papa cita muitos outros sinais preocupantes de degradação da amizade social, como a “cultura do descarte”, que se estende de nossas práticas de consumo até as diversas formas de abandono de seres humanos, como dos idosos. Temos o recrudescimento dos racismos, o descarte do trabalhador, o crescimento de “novas pobrezas”, a escravidão moderna, a opressão das mulheres, perseguições religiosas e todo tipo de violação dos direitos humanos. Ênfase especial é dada à criação de “novas barreiras de autodefesa”; o nacionalismo doente, o fechamento de fronteiras e a incapacidade de lidar com os novos fenômenos migratórios, que exigem uma nova abertura para o outro. Temos, ainda, várias formas de sujeição e depreciação econômica e cultural entre países, grupos sociais e pessoas (ponto que pode alimentar bastante os discursos e teologias anticolonialistas contemporâneos).

Para dar “liga” à massa de seu argumento, o papa escolheu – e escolheu muito bem – como chave a parábola do samaritano, contada por Jesus. Na parábola o samaritano, desprezado pelos judeus como era, se mostra o “próximo” do judeu ferido na estrada ao cuidar dele, apesar das diferenças, enquanto judeus respeitáveis e religiosos passaram ao largo. A história inspira e acusa, ao mesmo tempo. “A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos.”

Com essa parábola e a autoridade do próprio Cristo, o papa levanta um poderoso argumento moral contra os doentios hábitos, tendências e argumentos modernos que desejam normalizar a falta de fraternidade e amizade social.

Tudo isso é feito em paralelo com uma grande ilusão de comunicação, produzida pelas novas mídias sociais, pelo fluxo de informação e pelos espetáculos que nos colocam “perto” das diferenças e das intimidades. Mas, na verdade, a alta conectividade parece agravar o ódio e a intolerância, ainda que as novas ferramentas de conexão digital não sejam ruins em si mesmas.

Trata-se realmente de um paradoxo impressionante.

Encontros reais

Francisco descreve um aspecto desse fenômeno da conectividade digital como “informação sem sabedoria”. Escrevemos bastante sobre sabedoria (“Um ‘erro de software’ na cultura contemporânea”) e sobre os “dilemas” das redes (“A Sociedade da suspeita: um outro dilema das redes”) nessa coluna, e celebro com alegria a observação do papa, tão pertinente para o dia a dia do usuário que reproduzirei um trecho mais longo da encíclica aqui:

47. A verdadeira sabedoria pressupõe o encontro com a realidade. Hoje, porém, tudo se pode produzir, dissimular, modificar. Isto faz com que o encontro direto com as limitações da realidade se torne insuportável. Em consequência, implementa-se um mecanismo de “seleção”, criando-se o hábito de separar imediatamente o que gosto daquilo que não gosto, as coisas atraentes das desagradáveis. A mesma lógica preside à escolha das pessoas com quem se decide partilhar o mundo. Assim, as pessoas ou situações que feriam a nossa sensibilidade ou nos causavam aversão, hoje são simplesmente eliminadas nas redes virtuais, construindo um círculo virtual que nos isola do mundo em que vivemos.

48. Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo. Mas “o mundo de hoje, na sua maioria, é um mundo surdo (…). Às vezes a velocidade do mundo moderno, o frenesi impede-nos de escutar bem o que outro diz. Quando está a meio do seu diálogo, já o interrompemos e queremos replicar quando ele ainda não acabou de falar. Não devemos perder a capacidade de escuta”. São Francisco de Assis “escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida. Desejo que a semente de São Francisco cresça em tantos corações”.

As mídias sociais, na medida em que consumidas sem sabedoria e sem a riqueza do encontro holístico e interpessoal com a face presente do outro, aceleram a degradação do tecido social e nos fazem desaprender a amizade social

49. Ao desaparecer o silêncio e a escuta, transformando tudo em cliques e mensagens rápidas e ansiosas, coloca-se em perigo esta estrutura básica duma comunicação humana sábia. Cria-se um novo estilo de vida, no qual cada um constrói o que deseja ter à sua frente, excluindo tudo aquilo que não se pode controlar ou conhecer superficial e instantaneamente. Por sua lógica intrínseca, esta dinâmica impede aquela reflexão serena que poderia levar-nos a uma sabedoria comum.

50. Podemos buscar juntos a verdade no diálogo, na conversa tranquila ou na discussão apaixonada. É um caminho perseverante, feito também de silêncios e sofrimentos, capaz de recolher pacientemente a vasta experiência das pessoas e dos povos. A acumulação esmagadora de informações que nos inundam não significa maior sabedoria. A sabedoria não se fabrica com buscas impacientes na internet, nem é um somatório de informações cuja veracidade não está garantida. Desta forma, não se amadurece no encontro com a verdade. As conversas giram, em última análise, ao redor das notícias mais recentes; são meramente horizontais e cumulativas. Mas não se presta uma atenção prolongada e penetrante ao coração da vida, nem se reconhece o que é essencial para dar um sentido à existência. Assim, a liberdade transforma-se numa ilusão que nos vendem, confundindo-se com a liberdade de navegar frente a um visor. O problema é que um caminho de fraternidade, local e universal, só pode ser percorrido por espíritos livres e dispostos a encontros reais.

É preciso, portanto, com todo o realismo e a honestidade que a situação exige, admitir que as mídias sociais, na medida em que consumidas sem sabedoria e sem a riqueza do encontro holístico e interpessoal com a face presente do outro – e não com sua representação abstrata on-line –, aceleram a degradação do tecido social e nos fazem desaprender a amizade social. Providências e contramedidas precisam ser assumidas para compensar esse efeito, se quisermos continuar usando as redes para o bem.

Hospitalidade

Das relações pessoais às internacionais, o papa aponta o caminho da hospitalidade como resposta ao desafio contemporâneo; “pensar e gerar um mundo aberto”, a partir do amor, que permite integrar o outro e vê-lo como participante da “mesma família”.

Isso significa superar uma relação em que somos meramente sócios. O próximo é mais do que isso; fraternidade é mais do que essa associação por interesses. O argumento, aqui, faz lembrar o trabalho de Roel Kuiper, em Capital Moral: precisamos pensar para além da lógica do contrato, e o próprio princípio da “fraternidade” evoca na raiz a experiência dos irmãos de sangue numa família.

Essa abertura de alma e de prática deve, eventualmente, levar a uma abertura para “o mundo todo”. E diante dos temores do custo de tais aberturas, Francisco assegura que a abertura sadia “nunca ameaça a identidade”. O isolamento, pelo contrário, a enfraquece. Penso que ele está certo, mas a demonstração disso não é trivial, pois há situações em que o excesso de abertura pode gerar perda de identidade. Mas ele não deixa de enfrentar a questão, como veremos.

Precisamos pensar para além da lógica do contrato, e o próprio princípio da “fraternidade” evoca na raiz a experiência dos irmãos de sangue numa família

Uma “nova política” seria uma política que, abandonando o pragmatismo e as prioridades do interesse, absorve o princípio da fraternidade. Francisco quer recuperar o uso do termo “povo” e a liderança “popular”, salvando-a da crítica aos “populismos”. Seu ponto é que a noção de povo supera a noção atomizada de meros indivíduos, tendo um uso segundo a lógica da fraternidade. Fala também em “amor político”, o que será uma surpresa para muitos. Essa política pensaria “uma economia integrada num projeto político, social, cultural e popular que vise o bem comum”, e isso certamente poria limites a excessos nacionalistas e liberais.

O processo de abertura para nos levar a um “novo encontro” não porá em perigo a própria identidade; não é necessário resistir a ele alegando autopreservação. Pelo contrário, exige o reconhecimento e o respeito ao ponto de partida de cada um:

230. O árduo esforço por superar o que nos divide, sem perder a identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo um sentimento basilar de pertença. Porque “a nossa sociedade ganha, quando cada pessoa, cada grupo social se sente verdadeiramente de casa. Numa família, os pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído. Se alguém tem uma dificuldade, mesmo grave, ainda que seja por culpa dele, os outros correm em sua ajuda, apoiam-no; a sua dor é de todos. (…) Nas famílias, todos contribuem para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Podem brigar entre si, mas há algo que não se move: este laço familiar. As brigas de família tornam-se reconciliações mais tarde. As alegrias e as penas de cada um são assumidas por todos. Isto sim é ser família! Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas, maridos, pais ou mães, como seria bom! Amamos a nossa sociedade, ou continua a ser algo distante, algo anônimo, que não nos corresponde, não nos insere, não nos compromete?”

Penso ser esse um dos pontos altos da encíclica. Ele conecta, de modo singelo, a enorme tarefa de renovar a amizade social com o comando bíblico e cristão à hospitalidade e à imagem do laço familiar. Para conceber a fraternidade é preciso ter vivenciado a experiência familiar, de ter irmãos, pais e filhos, e de aprender a aceitar, a fazer espaço, a considerar o outro, de algum modo, como parte e participante.

A prática da hospitalidade é a prática de considerar o outro assim e dar-lhe espaço. Não significa que deixo de ser eu ou que ele deixa de ser outro; mas que não somos apenas diferentes. A hospitalidade é a criação do espaço comum, por um gesto de dádiva e de reconhecimento.

Meu comentário político aqui: para promover a fraternidade, precisamos estender círculos de pertença e de cooperação. Uma educação para a sabedoria precisa ser articulada para esse fim (“Educação e sabedoria em uma cultura polarizada”). Talvez a divisão política e religiosa nos separe, num sentido, mas ainda estejamos unidos no cafezinho com queijo, ou na necessidade de cuidar do bairro. Não podemos encontrar meios de nos receber mutuamente onde é possível, e reconhecermos certos níveis de irmandade?

Amabilidade

Abertura para o outro traz o tema do “diálogo”, ao qual o papa dedica um capítulo inteiro. O diálogo, por si só, diz muito, e sua ausência também. “A falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter vantagens.” O diálogo, mesmo quando não há acordo, é uma poderosa declaração de que ainda há um nós, uma base comum e um sentido de coletividade.

Mas todos sabemos que a linguagem do “diálogo” é, frequentemente, uma senha para o relativismo e para a imposição de agendas do liberalismo expressivo e de certas esquerdas. O papa se distancia disso deixando muito claro que diálogo não supõe relativismo moral. “Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social.” Não há, portanto, qualquer construtivismo moral aqui; há exigências que podemos descobrir através do diálogo, “embora não sejam construídas em sentido estrito pelo consenso”.

A linguagem do “diálogo” é, frequentemente, uma senha para o relativismo e para a imposição de agendas do liberalismo expressivo e de certas esquerdas. O papa se distancia disso deixando muito claro que diálogo não supõe relativismo moral

O diálogo exige um pacto pelo bem comum, e também a virtude. Francisco menciona o fruto do Espírito, segundo o ensino do Apóstolo Paulo na carta aos Gálatas: “amabilidade”:

É um modo de tratar os outros, que se manifesta de diferentes formas: amabilidade no trato, cuidado para não magoar com as palavras ou os gestos, tentativa de aliviar o peso dos outros. Supõe “dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam”, em vez de “palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam”... O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes.

Penso que a fala do pontífice foi perfeita, aqui: a amabilidade não é “uma atitude superficial ou burguesa”. Vivemos realmente um tempo terrível no qual o desrespeito verbal, a truculência, a caricaturização e estereotipação do outro foram normalizadas. Há cristãos que tentam normalizar esse comportamento patológico na comunicação pública.

Esse ponto não pode ser tratado como algo secundário, no entanto; é o próprio fruto do Espírito Santo. Portanto, a prática de linchamentos virtuais, estereotipações injustas, agressividade gratuita e constante na conversação, ofensas pessoais e ridicularização sistemática precisa ser resistida em busca de uma nova ética de comunicação. Sim, de uma retórica que absorva a ética da dignidade e da alteridade na construção da comunicação.

Evidentemente há conflitos inevitáveis, admitirá o papa. Às vezes aquele que foi oprimido reage mal, e precisamos ter paciência com isso. Às vezes o choque é necessário, assim como o uso da força para a defesa e a proteção. O perdão, que é tão curador e necessário, não pode ser imposto a ninguém; alguns jamais perdoarão as faltas. E o mal que foi feito não pode ser simplesmente esquecido, do contrário perderemos a consciência histórica e o sentido de responsabilidade.

Mas nem por isso estamos desculpados e autorizados a tratar o agressor e opressor como se fossem menos que humanos. Por um lado, amar o opressor pode significar “tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano”. Por outro, renovar o convite para a comunhão. Pois “nenhuma família, nenhum grupo de vizinhos ou uma etnia e menos ainda um país tem futuro se o motor que os une, congrega e cobre as diferenças é a vingança e o ódio”.

Francisco leva tais princípios às relações entre os povos: se vamos deixar a vingança como método, o que faremos com a guerra? Tendo em vista a possibilidade tecnológica de que a humanidade hoje dispõe para se autodestruir, a Igreja declara que a guerra, como “solução” para os impasses internacionais, deve cessar. A abertura para a dignidade do outro e do inimigo exige a abolição da guerra, da pena de morte, e até mesmo da prisão perpétua.

Religião pública e o princípio da antítese

Já mencionamos que, para o papa, “diálogo” não significa renúncia à própria identidade nem relativismo. E, se a religião sentar à mesa para conversar, não precisa nem deve abandonar suas reivindicações de transcendência. Ao mencionar a cooperação com outras religiões, no último capítulo, ele faz questão de destacar que não há como fundar a igualdade, a convivência cívica e a fraternidade apenas na razão. Um fundamento supremo e transcendente é necessário para isso:

“A raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível, e precisamente por isso, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo, grupo, classe, nação ou Estado. Nem tampouco o pode fazer a maioria de um corpo social, lançando-se contra a minoria.”

Francisco se recusa a admitir a tese de que a religião seria assunto de esfera privada e individual. A Igreja não deve fazer “política partidária”, mas tem uma função política e uma responsabilidade para com o desenvolvimento humano integral. Assim, “não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria”.

A prática de linchamentos virtuais, estereotipações injustas, agressividade gratuita e constante na conversação, ofensas pessoais e ridicularização sistemática precisa ser resistida em busca de uma nova ética de comunicação

Vale mencionar, aqui, que há ampla evidência histórica e antropológica sobre a importância da religião para a constituição das civilizações, bem como evidência científica mais recente, advinda da ciência cognitiva da religião e da psicologia social moderna, de que a dimensão social humana foi necessária para a evolução e adaptação da nossa espécie, e que a religião foi, por sua vez, uma potencializadora da vida social.

Essa evidência não é a razão de ser da religião, naturalmente; apenas tem força de corroboração quanto ao ponto crucial de Francisco: não há como fundar os valores que sustentam o Self e a civilização moderna sem transcendência; não há direitos humanos sem a sacralidade e a dignidade da pessoa humana; mas sem a religião não há como criar esses valores. O humanismo secular os toma por empréstimo da religião, como todos sabem.

É possível argumentar que nesse ponto o papa se mostra otimista demais – ou, para calvinistas como eu, distante demais de Agostinho. Francisco argumenta que nós, que cremos no evangelho, temos o privilégio e o dever de buscar em nossas fontes os recursos para a prática da fraternidade. Mas – qualifica Francisco – devemos ser parcimoniosos, buscando enfatizar, na presença pública, aquilo que favorece o encontro com o outro. Por outro lado, ele afirma também que todas as religiões, corretamente compreendidas, têm um núcleo positivo que não promove ódio ou violência, e que quando tal ocorre trata-se de um falso uso da religião.

Pessoalmente não vejo como isso poderia se reconciliar com a concepção bíblica e cristã de “idolatria” como a criação de falsos absolutos que, eventualmente, empobrecem a existência humana. No Antigo Testamento, a violência contra os próprios filhos era associada a cultos de deuses cruéis. Além disso, é verdade também que alguns aspectos intrínsecos ao evangelho têm sabor amargo para outras religiões e fés seculares, mas não podem ser evitados na pregação cristã.

Embora eu simpatize com a intenção do papa de procurar o melhor em cada religião, penso que a teologia das religiões por ele apresentada fica aquém do desafio cristão, e reproduz um clássico entrave no debate entre protestantes e católicos romanos: o princípio da catolicidade. Afirmando a universalidade da fé, o romanismo se adianta às vezes ao ponto de unir o que está inevitavelmente separado, e “batiza” o que não foi regenerado, por assim dizer. Aparentemente o papa tem exatamente esse olhar:

245. Várias vezes propus “um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. (...) Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que preserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste”. Sabemos bem que, “todas as vezes que aprendemos, como pessoas e comunidades, a olhar para mais alto do que nós mesmos e os nossos interesses particulares, a compreensão e o compromisso recíprocos transformam-se em solidariedade; (…) numa área onde os conflitos, as tensões e mesmo aqueles a quem seria possível considerar como contrapostos no passado, podem alcançar uma unidade multiforme que gera nova vida.”

Alguns aspectos intrínsecos ao evangelho têm sabor amargo para outras religiões e fés seculares, mas não podem ser evitados na pregação cristã

Do ponto de vista protestante ortodoxo, trata-se claramente, aqui, de um princípio sintético teologicamente problemático, tenha ele ou não um elemento hegeliano. O princípio protestante se move nesse momento, não contra a fraternidade, mas contra a absolutidade do consenso, que às vezes é negada no axioma, mas praticada ainda assim. O protestante, como Lutero, com sua consciência “cativa à Palavra de Deus”, tenderá a negar qualquer suavização do evangelho que afirme sua presença antecipada na imaginação religiosa ou espiritual do homem natural. Poderíamos apenas especular o que Karl Barth diria disso; mas certamente viriam algumas palavras duras. Talvez um “Nein!” similar ao que Emil Brunner teve de ouvir.

Embora eu concorde com a força central do argumento do papa sobre a fraternidade, penso que ela deve ser sempre julgada pela verdade do evangelho, se queremos nos apresentar para servir ao mundo sem perder a nossa identidade. É uma questão simples. Certamente não precisamos enfatizar aspectos não essenciais da fé enquanto buscamos cooperar com outras religiões e com secularistas. E podemos também procurar ativamente os sinais da “graça comum” em outros. Mas a singularidade da graça e o princípio da antítese precisam ser afirmados com clareza.

Em um artigo no The Catholic World Reporter, Samuel Gregg criticou a encíclica observando que, por tudo o que se sabe da história a partir da melhor evidência recente, São Francisco de Assis fez mais do que iniciar um diálogo sobre cooperação com o grande sultão. Ele efetivamente tentou evangelizá-lo, argumentando em favor da veracidade da fé cristã. Em termos de teologia contemporânea, podemos dizer que o elemento kerigmático da fé teve mantida a sua centralidade, ainda que demonstrada moralmente e espiritualmente por sua atitude de amor e vulnerabilidade. Gregg estabelece um contraste aqui entre São Francisco e o papa Francisco.

Pode ser uma questão de ênfase? Sim; precisamos de mais tempo. No entanto, para fazer frente aos abusos que nascem no âmbito do movimento internacional de direitos humanos, a partir do dialeto de direitos liberal e progressista, fortemente avesso à religião e vendido ao processo de atomização social moderno, é necessário um forte princípio de antítese protestante, juntamente com a afirmação católica.

Um romanista poderia retrucar que o protestantismo se distancia da realidade, por outro lado, quando tanto enfatiza a novidade do evangelho que nega os sinais da graça no mundo e os pontos de contato com a experiência humana comum. Não é possível alegar que isso não seja de fato um grande problema no evangelicismo contemporâneo. Tragicamente, falta protestantismo ao romanismo, e falta catolicidade ao evangelicismo.

Penso que um ecumenismo no evangelho é necessário para que o cristianismo ofereça uma resposta à altura do desafio histórico e, ao mesmo tempo, fiel a Jesus Cristo.

Fratelli tutti para evangélicos

Em conclusão, eu recomendaria fortemente essa e as outras encíclicas do papa Francisco a meus irmãos evangélicos. A Fratelli tutti, em particular, e após uma séria discussão sobre sua economia política subjacente, deveria ser considerada parceira de reflexão e orientação para a presença pública cristã. Palavras como “hospitalidade”, “amabilidade”, “sabedoria”, “fraternidade”, “amizade” precisam ganhar espaço e conteúdo. A política cristã, em geral, deveria ser hoje pautada pelos princípios da fraternidade e do bem comum, e a eles devemos recorrer para reestruturar nossas noções de economia, de presença urbana da igreja, de missão e, particularmente, de direitos humanos.

Devemos fazer isso, naturalmente, a partir de nossas próprias tradições protestantes, e isso seria também consistente com as expectativas do papa, que me parecem bastante realistas aqui. E isso significará um trabalho intencional para manter a centralidade do evangelho e a demanda por uma cosmovisão cristã enquanto estabelecemos o diálogo e a antítese no trabalho de promover a fraternidade bíblica no mundo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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