• Carregando...
gays transgênero eua
Ativista LGBT segura uma bandeira do movimento gay em frente ao prédio da Suprema Corte dos EUA, em 15 de junho.| Foto: Chip Somodevilla/Getty Images/AFP

Há alguns anos me encontrei com Yago Martins em Fortaleza, durante um evento acadêmico sobre o pensamento do escritor britânico C. S. Lewis. Havíamos acertado uma pequena entrevista para o seu canal, sobre um obscuro e paroquial tema de debates religiosos protestantes. À época eu era considerado membro de certo movimento teológico “X”, mas tinha assumido uma postura crítica, e o Yago queria entender por que eu continuava com os “X”. E a minha resposta foi: “Yago... a pedra que incomoda não é a que está fora do sapato, mas dentro do sapato”.

Lembro-me de que ele me olhou com certa perplexidade; e seguimos a conversa. A entrevista não deu certo – os equipamentos de gravação não funcionaram –, mas o tempo mostrou a ironia da coisa toda. Mal sabia eu que o próprio Yago se tornaria uma das maiores “pedras no sapato” dentro do evangelicismo brasileiro, incomodando igualmente moderados, fundamentalistas, bolsonaristas, lulistas e gente de todas as formas e tamanhos no melhor espírito “democrático”. Por meio de seu vlog Dois Dedos de Teologia, com 547 mil inscritos e milhões de visualizações, o pastor batista, escritor, professor de Teologia e Economia em cursos de graduação e pós, presidente do Conselho da Missão GAP e membro do corpo de especialistas do Instituto Ludwig von Mises Brasil encara de frente temas que poucos religiosos desejam tocar em público.

O próprio cristianismo brasileiro, e especialmente naquele ponto nodal onde católicos e evangélicos confessionais se encontram, tem se tornado uma enorme pedra no sapato nacional, para o bem ou para o mal. E uma das razões desse incômodo é a resistência que ele tem levantado contra o projeto de “renovação” dos costumes e de normalização de visões modernas de afetividade, sexo e família. Mudanças que na mente da elite cultural eram pontos pacíficos, corpos enterrados e debates encerrados se levantaram como fantasmas na arena pública nacional, e agora atormentam os pobres humanistas seculares como assombrações “medievais”.

Mas, como a websérie A Nova Família mostra muito bem, não são assombrações. Essas ideias e práticas conservadoras estão “vivinhas da silva” e não querem assustar, mas seguir existindo com dignidade onde são cultivadas. A guerra de eliminação da elite cultural da esquerda contra o conservadorismo e a religião precisa acabar. Nessa entrevista à nossa coluna, convidamos o próprio Yago a se explicar sobre o projeto e por que tem se esforçado com tanto afinco para encaixar essa pedra no sapato nacional.

***

Yago, o que é a websérie A Nova Família?

A websérie documental A Nova Família foi uma tentativa de elevar a qualidade do debate sobre casamento homossexual no Brasil. Muito do que é discutido agora apresenta somente um lado da questão: a tentativa de redefinir o conceito de família. Infelizmente, quando se busca a opinião do outro lado, encontra-se o que há de mais turrão ou tacanho em direitas falsamente conservadoras – mais revolucionários de direita que qualquer coisa. Tentar elevar o nível do debate, procurar os melhores teóricos no assunto e deixá-los falar com bastante tempo, ilustrando isso de forma palatável, tornou-se urgente para que o debate acerca da família possa ser aprofundado e a população ganhe em material bibliográfico sobre um tema tão debatido, mas tão mal representado nas perspectivas conservadoras.

"Geralmente, quem é contra o casamento gay é visto como um ser maligno que precisa sofrer ostracismo da sociedade"

Yago Martins

E como tem sido a resposta à webserie? Você tem números, ou testemunhos?

Em termos de visualizações, ela tem ido muito bem. A série já soma mais de 300 mil visualizações somente nos episódios principais e mais de 60 mil nos pequenos vídeos adendo. Ela tem sido muito mais popular do que imaginamos acerca do alcance que vídeos tão longos e tão técnicos teriam. O feedback das pessoas tem sido muito bom, porque muitos se mostram convencidos pelos nossos argumentos, mudando de posição acerca do casamento homossexual e passando a ter uma visão mais conservadora e tradicional sobre a família. Enquanto isso, até mesmo aqueles que não são convencidos por nossos argumentos reconhecem a qualidade do que temos apresentado. Estes louvam nosso discurso por não ser baseado em ódio ou ressentimento, como parece ser comum.

Isso mostra que conseguimos o que queríamos: acima de qualquer coisa, dizer que você pode ser contra o casamento gay e ser uma pessoa comum. Geralmente, quem é contra o casamento gay é visto como um ser maligno que precisa sofrer ostracismo da sociedade. A websérie mostrou que é possível ter uma posição contrária ao casamento homossexual sem motivos odiosos e que não é preciso mais esconder suas posições por temor de que elas sejam consideradas como um tipo de “racismo”. Existem motivos racionais, filosóficos, antropológicos, políticos e, sim, religiosos, para ser contra a legalização civil do casamento homossexual.

Há um argumento conservador contra a reformulação da família? Você poderia resumir para o leitor?

O argumento conservador contra a reconfiguração da família é basicamente o de que ela é uma instituição biológica, antropológica e tradicionalmente heterossexual e monogâmica. Quando o Estado tenta reconfigurar o conceito de família, tenta impor sobre a realidade uma redefinição de algo que é historicamente qualificado. É como o Estado tentar definir o que é indivíduo para além do que é antropológico, biológico e historicamente aceito pela sociedade. Uma vez que família não é um assunto jurídico, mas uma instituição anterior ao próprio Estado.

É absurdo que haja esse interesse de redefinição. Família existe como tal e é de alguma forma tutelada pelo Estado unicamente pela questão da fecundidade. Não é por conta de herança, bens, não é para poder lidar com o divórcio, mas é unicamente porque os filhos existem. É para proteger a prole que o Estado se mete nas definições de família. Um casamento que não seja heterossexual não tem capacidade de gerar prole; por isso, não há motivo para que o Estado queira tutelar essa união.

Historicamente, a homossexualidade sempre existiu. Desde pinturas rupestres, passando pela Grécia e Roma, sabemos que sempre houve homossexuais. Mas nem sempre a orientação sexual dos indivíduos os levou a buscar um reconhecimento de casamento para essas uniões. Isso se deu modernamente por causa da reconfiguração de casamento em termos meramente afetivos. Agora o casamento não é mais um instituto. Ele deixou de ser um instituto definido pelo potencial reprodutor, para tornar-se um servo das políticas da identidade, que tentam criar direitos afetivos e fazer com que os institutos sociais sejam transformados pelo modo como as pessoas sentem as coisas. Claro que isso é muito mais aprofundado nas mais de cinco horas de conteúdo da nossa websérie.

"Indivíduos esperam validar seus sentimentos e suas convicções interiores pelo reconhecimento público e estatal de suas uniões"

Yago Martins

Quem está interessado na “Nova Família”? Ou, se você preferir, quais são os interesses por trás dessa mudança social?

Existem interesses privados por detrás desse esforço de mudança. Indivíduos esperam validar seus sentimentos e suas convicções interiores pelo reconhecimento público e estatal de suas uniões. Esses interesses privados acabam recebendo eco social, porque as pessoas acreditam que isso é o bom, o honesto e o justo; é simplesmente conceder aos homossexuais o direito de casar-se.

Mas veja bem: todo indivíduo tem direito de casar-se, seja homossexual ou não. O problema é que o casamento é um instituto que, por natureza, não admite as uniões homossexuais. Um homossexual poderia se casar com uma pessoa do sexo oposto; claro que ele não vai fazê-lo porque não tem o impulso sexual nessa direção, mas ele não está impedido pela lei de se casar; ele está impedido pelo seu impulso privado de adentrar num casamento. Por isso, ele vai entrar numa união com alguém do mesmo sexo, mas que não é a união do casamento. É outro tipo de instituto social e que por isso deveria receber outro tipo de reconhecimento civil que não fosse o próprio casamento.

Esses interesses por uma nova família parecem justos, honestos e bons, mas representam a dissolução social da instituição que funda e perpetua toda a raça humana.

Assumindo que críticas a modos de vida fazem parte da normalidade democrática, vejo um problema potencial no desafio frontal que você oferece à “Nova Família”. Como poderia se dar a convivência de paradigmas tão diferentes, sob a mesma constituição?

Essa resposta será dada no último capítulo da nossa série, onde falamos das propostas de como lidar como a questão do casamento homossexual e como é possível a convivência, no mesmo ambiente democrático, de institutos humanos tão distintos.

Antes de tudo é preciso entender que o Estado não existe para atender a todos os interesses privados de indivíduos e nem para validar os impulsos privados de ninguém. Se isso não for compreendido, muitos homossexuais vão pensar que seus direitos estão sendo tolhidos quando eles não recebem o carimbo de família nas suas uniões. Porém, é importante que pessoas que são contra o casamento homossexual não sejam contra o indivíduo homossexual como tal, ainda que não tenham predileção ou qualquer concordância ou mesmo julguem moralmente as suas práticas; é importante que eles entendam que esses indivíduos também são pagadores de impostos e que precisam ter algumas garantias civis tanto quanto heterossexuais possuem.

Isso é uma sintonia fina que muitas vezes não estamos dispostos a assumir; muitas vezes não queremos compreender todos os cenários e variáveis que afetam cada grupo da sociedade. Estamos tentando dar essa resposta tão longa, tão profunda, em nossa websérie, justamente porque a gente quer lidar com as nuances e com os desafios em todo esse processo. Temos vários homossexuais nos acompanhando e temos várias pessoas a favor do casamento homossexual nos acompanhando e queremos construir juntos esse caminho argumentativo para o bem comum da sociedade. Esperamos que haja cada vez mais convivência pacífica nas diferenças e não a morte das diferenças em nome de uma pretensa paz que só aceita os iguais.

"Se por acaso Bolsonaro for o político que concorda com minhas ideias, isso não me incomoda. Por mim, quero que o maior número de políticos possa concordar comigo, sejam quem forem"

Yago Martins

Ao tocar nesses pontos sensíveis, você não teme a acusação de homofobia?

Essas acusações já vieram e já estão sendo tratadas juridicamente. Antes mesmo de iniciar a websérie eu já me precavi, por conhecer o cenário de debate em que estamos envolvidos, e já acionei todos os artifícios jurídicos que estavam à minha mão. Algumas pessoas surgem me acusando de homofobia e isso é uma falsa imputação de crime. Então, todos que estão fazendo isso estão sendo acionados juridicamente por esse tipo de falsa acusação. O que muitos querem é jogar em nós pechas criminalizantes a fim de sermos excluídos do debate público simplesmente por defendermos opiniões que elas não acham agradáveis. Já surgiram algumas acusações de homofobia, mas não conseguiram mostrar como ela é homofóbica. É fácil acusar e imputar um crime contra desafetos simplesmente porque assumem posições sociais diferentes das nossas. Difícil é tentar contra-argumentar com o que é exposto a fim de mostrar como a instituição do casamento pode ser questionada. Essas acusações surgem, mas já sabíamos disso quando começamos tudo. Meu medo maior não era simplesmente o de processos ou algo do tipo, mas que esses vídeos fossem retirados do ar. Até agora, graças a Deus, o modo como temos feito o trabalho tem sido muito bem aceito e não tenho recebido nada tão grave.

E por que esse tema, nesse momento? Muitos consideram debates sobre família algo pouco relevante enquanto atravessamos a pandemia e uma crise econômica de longo alcance.

Primeiro, posso me defender dizendo que comecei esse trabalho há dois anos. Todo o processo de edição e preparação para a finalização não previa uma pandemia global nem mesmo qualquer cenário político específico, mas, deixando isso de lado, podemos ainda assumir que esse tipo de debate continua sendo importante, não importando o cenário em que estejamos, porque família é algo que perpassa crises econômicas e de saúde. É por estarmos apegados às nossas famílias que podemos enfrentar situações cada vez mais difíceis nesses cenários globais e nacionais. Então, o assunto da família não é irrelevante. Não importa o cenário em que estejamos, porque discutir família é discutir aquilo que justamente nos mantém firmes mesmo quando falta saúde ou recursos financeiros.

"O que muitos querem é jogar em nós pechas criminalizantes a fim de sermos excluídos do debate público simplesmente por defendermos opiniões que elas não acham agradáveis"

Yago Martins

Você não teme que os argumentos levantados na série sejam usados para promover o bolsonarismo? Teria algo a dizer a moderados ou à centro-esquerda?

Eu não temo isso, pois não vivo minha vida em oposição ao bolsonarismo ou a qualquer movimento político que seja. As idolatrias se manifestam tanto no amor excessivo e exagerado a alguém, no caso uma figura política, mas também em um ódio excessivo e um medo descontrolado de ser relacionado. A idolatria política não só ama como um mito o Jair Bolsonaro, mas também o odeia como uma figura paradigmática do mal, um anticristo. Se usarem meus argumentos para me associarem a um político ao qual não tenho predileção íntima, isso não me importa tanto porque meus argumentos estão aí. Se por acaso Bolsonaro for o político que concorda com minhas ideias, isso não me incomoda. Seja ele, seja qualquer outro. Por mim, quero que o maior número de políticos possa concordar comigo, sejam quem forem. Se isso for usado para defender bolsonarismos, bem, isso é uma vantagem para o Bolsonaro. Ele vai estar certo em um assunto. Isso não me deixa incomodado, pelo contrário. Isso me deixa contente porque o presidente, mesmo com todas as críticas que tenho a ele, estaria certo pelo menos na questão do casamento homossexual. Acho infantil que haja um esforço antibolsonarista tão intenso que qualquer posição que ele tenha precise ser contrariada para alguém não ser relacionado com ele. Quando escrevi No alvorecer dos deuses (Thomas Nelson, 2020), falei sobre esses problemas de representação política, tanto em submissão imensa quanto em ódio extremado ao dialogar com Romanos 13 e Apocalipse 13. Esse pode ser um livro relevante para nossos tempos.

Serão quantos episódios? Vai um spoiler?

A websérie vai contar com sete episódios e alguns extras que ajudam a complementar alguns pontos que julgamos que não deveríamos desenvolver demais dentro de cada episódio, por estes já serem bem longos – entre 40 e 50 minutos –, e nos quais os assuntos precisam ser tratados com cuidado. Então, fazemos um vídeo extra como complemento. No próximo episódio, falaremos sobre política da indiferença com referências aos mais variados pensadores contemporâneos e muito de neocalvinismo holandês. Pedro Dulci, que é doutorando em Filosofia pela Universidade de Goiás, falará bastante nesse episódio, e teremos um último episódio mais curto, assim como foi o introdutório, onde tentaremos apresentar alguns caminhos jurídicos para lidar com a questão do casamento homossexual. Que tipo de instituição deveria ser proposta? Eles deveriam simplesmente não se casar? Se falamos contra a união civil, o que restaria a esses indivíduos? Seria uma exclusão completa da sociedade? Queremos falar sobre isso no último episódio. Acho que será um tema bem legal para arrematar todo esse longo e instigante debate.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]