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PEC STF
Estátua da Justiça, diante do prédio do STF colorido com a bandeira do orgulho LGBT.| Foto: Nelson Jr./STF

Na magia existem abracadabras. Na política, existe a novilíngua – que frequentemente é, também, um tipo de encantamento lançado sobre as mentes humanas. Palavras novas forçam ideias novas e alteram a própria topologia da vida moral. Mas a magia não é sempre boa; na mitopoiese de Tolkien, o bruxo Saruman derrubou a Floresta de Fangorn para construir suas máquinas de guerra. Teve depois de encarar a fúria dos ents, os pastores-de-árvores.

Não é de se surpreender que, em sua cruzada pelo “Eu Soberano”, o movimento dos direitos afetivos tenha desenvolvido um maquinário semântico especialmente desenhado para “derrubar árvores”, negando a diferença entre a natureza e a cultura e forçando sobre a ordem familiar a sua bruxaria jurídica. E esse será nosso assunto na coluna de hoje: os dois feitiços lançados por nossa suprema corte em 4 de maio de 2011.

Feitiçarias no STF

A crescente influência do campo afetivo – essa rede de movimentos e pessoas dedicada à religião do Homo sentimentalis – em diversos outros campos estratégicos da vida nacional como a educação, a arte, setores importantes da academia, a mídia e, naturalmente, a política, atingiu grande impacto na esfera jurídica do país por meio de um canceroso ativismo judicial.

Uma vitória histórica do campo foi o momentoso veredito passado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da ordem familiar dos brasileiros. Naquele 4 de maio, o ministro Ayres Britto leu seu voto rejeitando a noção, baseada no artigo 1723 do Código Civil, de que as uniões civis do mesmo sexo seriam inconstitucionais (ADI 4277 e ADPF 132). A posição de Ayres Britto foi aceita por unanimidade, e com um voto particularmente iluminador produzido pelo juiz Celso de Mello. Na sequência, uma série de movimentações cartoriais e jurídicas levou à aprovação pelo CNJ, em 14 de maio de 2013, da Resolução 175/2013, proibindo cartórios de todo o país de recusar a celebração de casamentos de pessoas do mesmo sexo ou a conversão da união estável homoafetiva em casamento. A decisão, que entrou em vigor no dia 16 do mesmo mês, efetivamente estabeleceu o casamento de pessoas do mesmo sexo no país.

razões não religiosas para acreditar que as uniões de pessoas do mesmo sexo são qualitativamente distintas do casamento heterossexual monogâmico

Pessoalmente, entendo que a regulamentação da união civil homoafetiva já estava atrasada em 2011, e deveria ter sido realizada pelo Legislativo antes disso. Mas casamento, em minha opinião, é outra história.

É sempre necessário lembrar que para a religião cristã o casamento de pessoas do mesmo sexo não existe diante de Deus, e uma vasta parcela da sociedade brasileira é cristã. Se isso não pode ser imposto sobre todos os brasileiros, há de se preservar, ao menos, o direito dos cristãos de viverem de acordo com a sua doutrina.

Não obstante, há razões não religiosas para acreditar que as uniões de pessoas do mesmo sexo são qualitativamente distintas do casamento heterossexual monogâmico, e que o CNJ laborou em erro. Mais: muito embora o STF não tenha, a rigor, legitimado o “casamento” homoafetivo, mas apenas a “união civil homoafetiva”, o subtexto da decisão era precisamente a viabilização do casamento igualitário. A “bruxaria” começou mesmo no STF.

Os dois feitiços

Destaco aqui os dois votos de Ayres Britto e de Celso de Mello por sua importância em estabelecer uma compreensão claramente emotivista dos laços familiais e do casamento, sacramentando a psicologização dessas instituições que vinha sendo postulada há tempos pelos juristas dos “direitos afetivos”. Ambos citam, entre outros, os textos de Ricardo Calderón, Paulo Roberto Iotti Vecchiatti e, particularmente, da ex-desembargadora e jurista Maria Berenice Dias, importantíssima representante do movimento dos direitos afetivos, empregando o conceito, por ela cunhado, de “homoafetividade”. Diz o relator Ayres Britto em seu voto:

“Ainda nesse ponto de partida da análise meritória da questão, calha anotar que o termo ‘homoafetividade’, aqui utilizado para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, não constava dos dicionários da língua portuguesa. O vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, da autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias.”

Celso de Mello também demonstra a forte influência do discurso afetivo em seu próprio voto, postulando a total paridade entre as uniões “homoafetivas” e “heteroafetivas” e descontando sem mais o fato de que essas são biologicamente férteis e as outras são biologicamente inférteis, e negando que tal redefinição tenha caráter “moral”.

Essa psicologização é o resultado, como temos tratado extensivamente nessa coluna, da pressão dos campos afetivos modernos, os sacerdotes do capitalismo emocional, sobre a classe jurídica, que se converteu em uma espécie de corpo diaconal da religião do Self. A dívida espiritual é livremente admitida por Maria Berenice Dias em Homoafetividade e Direitos LGBTI:

“O novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos familiares, que passaram a se sustentar no amor e no afeto. Sem afeto não se pode dizer que há família. É o afeto que conjuga. E, assim, o afeto ganhou status de valor jurídico e logo foi elevado à categoria de princípio. Resultado de uma construção histórica em que o discurso psicanalítico é um dos principais responsáveis, vez que o desejo e o amor começaram a ser vistos e considerados como o verdadeiro sustento do laço conjugal e da família.”

Trata-se, naturalmente, de uma confusão dos diabos. É claro que há família sem afeto, tão certamente quanto gente doente ainda é gente. Além disso, “desejo” e “amor” não podem ser subsumidos em uma linguagem genérica de “afeto”. Até mesmo a “sexualidade” é sistematicamente reduzida ao desejo erótico e separada de sua base objetiva, que é a fertilidade reprodutiva. Em suma, a luz da felicidade afetiva cegou os olhos da jurista para os contornos da estrutura familiar.

Ayres Britto e de Celso de Mello estabelecem uma compreensão claramente emotivista dos laços familiais e do casamento, sacramentando a psicologização dessas instituições que vinha sendo postulada há tempos pelos juristas dos “direitos afetivos”

Para além da penúria generalizada de sua filosofia moral, no entanto, o que mais nos interessa aqui é a cândida confirmação de que o movimento dos direitos afetivos atuou sob ordens do discurso psicanalítico – ou seja, dos campos afetivos modernos. Conhecessem esses autores os trabalhos de Philip Rieff, Ole Madsen e Eva Illouz, saberiam que a contribuição da psicanálise para a afetividade moderna é ambígua, para dizer o mínimo. No que se refere à compreensão da natureza do amor, a psicanálise foi o arauto do retrocesso.

Mas voltando a Ayres Britto: o ministro fundamentou sua defesa da união civil homoafetiva reunindo a base jurídica efetiva de seu argumento na Constituição Federal – a dignidade da pessoa humana – com uma visão mais ampla da felicidade que não está necessariamente implicada na Constituição brasileira. Essa visão da felicidade e do florescimento humano, derivada da revolução afetiva moderna, foi assim sub-repticiamente legislada pelo ativismo judicial do STF. Esse, meus amigos, foi o primeiro feitiço.

O problema jurídico enfrentado é que a legislação brasileira trata o casamento e a ordem familiar em termos de “homem e mulher”, mas isso impediria a felicidade afetivo-emocional de indivíduos homoafetivos; o direito à busca da felicidade, introduzido na Declaração de Independência americana sob inspiração do liberalismo de John Locke, como apresentado no seu Segundo Tratado sobre o Governo, e fundado em uma concepção de direitos humanos naturais divinamente estabelecidos, é invocado pelo ministro no contexto de uma compreensão emotivista de felicidade como bem-estar emocional; e colore a compreensão do magistrado sobre a interpretação dos princípios constitucionais fundamentais.

Passemos, agora, ao segundo feitiço. O voto do ministro Celso de Mello, em seguida, considera suficiente e justifica sua concordância com o ministro Ayres Britto evocando o princípio da igualdade sem comentários objetivos sobre a natureza da relação conjugal. Uma tendência uniformizadora se revela na interpretação da igualdade como baseada no respeito à liberdade pessoal e autonomia individual; o pressuposto antropológico da decisão é despudoradamente atomizante, à semelhança do voto de Ayres Britto, não meramente por reconhecer a salutar autonomia do indivíduo, mas porque nenhuma palavra apresenta sobre os limites sociais e morais dessa autonomia, razão pela qual interpreta a igualdade social como a igualdade de meros indivíduos, e nada contempla sobre sua diversidade efetiva, que emerge de suas relações sociais. A problemática aqui envolve a ontologia social sobre a qual a igualdade é concebida. Essa uniformização se mostra evidente no seu argumento:

“Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso.

Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar.

Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção.

Ao menos até que o legislador regulamente as uniões homoafetivas – como já fez a maioria dos países do mundo civilizado –, incumbe ao Judiciário emprestar-lhes visibilidade e assegurar-lhes os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas. Essa é a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade. (...).”

Ayres Britto fundamentou sua defesa da união civil homoafetiva reunindo a base jurídica efetiva de seu argumento na Constituição – a dignidade da pessoa humana – com uma visão mais ampla da felicidade que não está necessariamente implicada na Carta Magna

A longa citação justifica-se para destacar a incidência decisiva da tese dos direitos afetivos na interpretação da disputa jurídica. Nessa e em outras citações do ministro fica claro o estabelecimento da afetividade como fundamentação e motivação final da família, sob a inspiração do movimento dos direitos afetivos. No trecho percebe-se com clareza o trabalho de reconstrução semântica que plausibiliza o conceito de “homoafetividade” através da mutação conceitual, por paridade, do casamento heterossexual ou conjugal como uma união “heteroafetiva” (conceito desenvolvido por Paulo Iotti, Ricardo Calderón e Maria Berenice Dias).

O caso é que essa identificação é equívoca, se considerarmos a ciência de ponta sobre a evolução da economia reprodutiva humana e o próprio impacto do casamento monogâmico na formação da cultura ocidental. Já introduzimos o assunto do casamento monogâmico nessa coluna: a união conjugal heterossexual produziu efeitos civilizacionais indissociáveis de sua base biológica e psicoevolutiva, base essa inexistente nas uniões homoafetivas e pobremente tratada nas relações românticas heteroafetivas modernas, orientadas pelo princípio da “relação pura” descrito por Anthony Giddens.

O ovo ou a galinha?

Mas a questão é um pouco mais tortuosa. O STF e os juristas por ele citados não pretendem negar que o casamento conjugal já foi, no passado, uma instituição holística e baseada na biologia. A narrativa que progressivamente alcançou precedência na esfera máxima do Judiciário foi a de uma alegada metamorfose institucional, na qual a organização interna e os fins dos institutos sociais da família e do matrimônio foram historicamente alterados e a afetividade veio a assumir o papel central, de modo que nada mais resta ao jurista a não ser acompanhar os novos tempos. Diz Ricardo Calderón em Princípio da Afetividade no Direito de Família:

“Foi possível perceber que a afetividade assumiu, em muitas das relações familiares, o papel de verdadeiro vetor de tais relacionamentos, com uma centralidade que não se percebia em momentos anteriores [...].

A sociedade passou a adotar gradativamente o aspecto afetivo como suficiente e relevante nessas escolhas pessoais. Com o paralelo decréscimo da importância que era conferida a outros vínculos (biológico, matrimonial, registral), restou possível perceber a centralidade que a afetividade assumiu em grande parte dos relacionamentos. Foi de tal ordem a alteração que resta possível afirmar que houve uma verdadeira transição paradigmática na família brasileira contemporânea, pela qual a afetividade assumiu o papel de vetor dessas relações.”

Ricardo Calderón observa com acerto a transformação estrutural nas relações sociais e familiares em particular, com o centramento subjetivo e o protagonismo da afetividade, mas não sujeita essa observação a qualquer julgamento histórico-crítico, atuando na prática como normalizador dessas transformações. Seria essa a tarefa do jurista ou mesmo do legislador, a de deitar-se no chão, como um capacho de todos os “progressos morais” trazidos pelo sistema de hiperconsumo? Não é esse o caminho de Saruman?

Calderón também parece não reconhecer que tal processo de transição paradigmática não foi completado, com o imaginário social não afetivista mostrando-se ainda prevalecente em amplos círculos da sociedade. As guerras culturais no Brasil contemporâneo são um testemunho eloquente de que a transição paradigmática não é uma necessidade histórica, mas um programa, uma agenda compartilhada entre o campo afetivo e o STF, que não se incomoda em deitar o casamento conjugal em sua cama de Procusto e cortar seus membros, até que ele seja indistinguível de qualquer união erótico-afetiva.

Se os juristas dos direitos afetivos falham em propor uma adaptação genuinamente pluralista do direito de família, que proceda à inclusão da sua alegada transição paradigmática sem depredar os modos anteriores de vida social nem as bases naturais do casamento e da família, falham porque é precisamente este o seu programa. Nesse sentido o STF, caindo sob o encantamento da novilíngua jurídica, não estava meramente se atualizando em 2011, mas se engajando em um extensivo trabalho de engenharia social.

O pecado original do STF foi ter ouvido à voz da serpente e caído na conversa de que a revolução afetiva poderia ser a base para uma reengenharia da família brasileira

Contudo, aqueles de nós que não acreditam em bruxaria permanecerão irremediavelmente céticos sobre a eficácia desse ativismo judicial no STF. Não importam as alquimias da jurisprudência, não é possível borrar totalmente a distinção entre natureza e cultura, entre o que é posto em nossas mãos criaturais e o modo como respondemos eticamente à dádiva da natureza. O casamento conjugal é uma questão de lei natural, e nenhuma “transição paradigmática” pode transformar sua coluna vertebral.

O que a mudança cultural e jurídica pode fazer, por outro lado, é matar uma instituição e substituí-la por outra. Isso, sim, é perfeitamente possível: derrubar uma árvore e esculpir com seu tronco uma árvore de madeira. Só que uma produz frutos, e a outra não.

O que é essa árvore artificial? Não é meramente o casamento homoafetivo, mas também o casamento heteroafetivo, postulado por Ayres Britto e Celso de Mello. Em outras palavras: a própria ideia de que o casamento seria uma instituição meramente afetiva (independente de qual seja da orientação sexual dos parceiros) é uma ficção pós-moderna. Repito: a confusão jurídica não reside em reconhecer o direito à união civil homoafetiva – quanto a isso, sou completamente favorável. O pecado original do STF foi ter ouvido à voz da serpente e caído na conversa de que a revolução afetiva poderia ser a base para uma reengenharia da família brasileira.

A “bruxaria” do STF nada teve de sobrenatural, enfim; inventando o casamento heteroafetivo, ele nos brindou com uma notável peça de ilusionismo jurídico

E assim formulamos nossas duas perguntas, que serão retomadas nessa coluna: em primeiro lugar, é o casamento uma instituição essencialmente afetivo-emotivista? Em segundo: quais são as causas da intervenção emotivista?

À primeira pergunta responderemos que o paradigma holístico da família e do matrimônio é plausível, necessário e superior ao paradigma afetivista; à segunda, que a tentativa de ressignificar o instituto familiar por meio do discurso afetivo-emotivista é, como já está implicado no argumento até aqui, um gesto ideológico, ocultando a injustiça simbólica perpetrada pelo campo afetivo.

A “bruxaria” do STF nada teve de sobrenatural, enfim; inventando o casamento heteroafetivo, ele nos brindou com uma notável peça de ilusionismo jurídico.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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