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Para quem tinha uma vivência familiar pobre, a pandemia destruiu a possibilidade de “fuga” para o ambiente público.
Para quem tinha uma vivência familiar pobre, a pandemia destruiu a possibilidade de “fuga” para o ambiente público.| Foto: Ulrike Mai/Pixabay

“Se o indivíduo é socialmente autônomo, ei-lo mais do que nunca dependente da forma mercantil para a satisfação de suas necessidades.” (Gilles Lipovetsky)

Em uma entrevista recente a Margarita Rodríguez, da BBC News Mundo, a socióloga israelense Eva Illouz observou uma interessante simbiose entre vida doméstica privada e a vida pública, a vida fora do ambiente doméstico. A intimidade moderna parece existir em uma relação de tensão e dependência para com o mundo exterior. Essa estrutura, nem sempre evidente “a olho nu”, tornou-se de certo modo transparente durante a pandemia.

“O que mais observei é que o que chamamos de casa, a esfera privada e doméstica, precisa desesperadamente da esfera pública dos amigos, do trabalho, das ruas para poder cumprir sua função... De repente, os pais se deram conta de o quanto as escolas apoiam, de fora, as famílias. Mas também percebemos que a intimidade constante e contínua não é suportável para a maioria dos casais.”

Sabemos que muitas pessoas buscam o nível público de sociabilidade para – falando honestamente – fugir de casa

Alguém poderia retrucar que se trata de uma trivialidade; Illouz descobriu isso tanto quanto qualquer um que tenha jogado pratos contra a parede no ano passado. É claro que precisamos da sociabilidade com outras pessoas e com a comunidade em geral, para além da intimidade do lar. Somos muito dependentes da sociedade.

Mas a observação traz, sim, uma questão interessante; essa vida “pública” é um escape para tendências individualistas ou apenas uma forma de sociabilidade diferente da intimidade, e igualmente também indispensável? E como essas duas formas de vida se relacionam?

A lógica dos escapes

O filósofo holandês Roel Kuiper sustenta que a vida familiar se fundamenta em uma lógica relacional totalmente distinta da sociedade moderna como um todo. A vida familiar se baseia em pactos ou alianças, estruturas de compromisso moral que transcendem a busca de bem-estar e a lógica do consumo, e que nos ensinam o dever e o hábito de cuidar uns dos outros. Já a vida pública, em nossas sociedades modernas, responde a uma lógica de contratos condicionais e de alcance limitado. Os dois “mundos” seguem lógicas diferentes, portanto.

Penso que sua leitura nos dá um ponto de partida para compreender essa lógica dos escapes: quem foge da família escapa do compromisso (opressivo ou não) para maior liberdade; e quem foge da sociedade escapa da liberdade (e de seus custos, que também podem ser opressivos) para a segurança da comunidade, com seus compromissos implícitos.

Pessoas diferentes “fugiam” para direções diferentes; algumas, para as duas direções, em movimentos pendulares. E então, repentinamente, a ponte caiu; as margens ficaram separadas

Voltemos à nossa socióloga. Aparentemente, para Eva Illouz, as pessoas costumavam pensar no lar a partir de uma mitologia, de que esse ambiente privado seria um lugar de proteção contra forças externas impessoais e implacáveis. Mas sabemos, por outro lado, que muitas pessoas buscam o nível público de sociabilidade para – falando honestamente – fugir de casa: fugir de obrigações, repressões, conflitos e até de abusos. Com certeza, para quem já havia fugido de casa oficialmente e cuja vida orbitava entre a solidão em um apartamento e a sociabilidade a-mil-por-hora no trabalho e nas baladas, a coisa piorou muito. E para quem ainda morava com os parentes, mas fugia diariamente de uma casa tóxica para assinar o ponto o mais longe possível, a coisa frequentemente piorou ainda mais.

É claro que para muitos e, talvez, a maioria, o lar sempre foi, mal ou bem, o escape, o refúgio. Acostumados a fugir regularmente da corrente frenética de obrigações, em empregos e atividades desgastantes e até opressivos, para o consolo do lar, muitos viram o home office profanar seu lugar de alívio e roubar-lhe a graça. Para muitos desses é que se aplicam as observações de Eva Illouz, de que a casa havia se tornado um mito de segurança e proteção e que esse mito teria se rompido com a pandemia.

Pessoas diferentes “fugiam” para direções diferentes; algumas, para as duas direções, em movimentos pendulares. E então, repentinamente, a ponte caiu; as margens ficaram separadas. Fomos impedidos de viver aquela dinâmica dual casa/rua, lar/trabalho.

Mas o que o fechamento da passagem entre esses dois níveis de vida social – a comunidade, e a sociedade mais ampla – significou para cada um depende de seu modo de vida; se, por um lado, todos sofreram as mesmas restrições, é certo que as vulnerabilidades se distribuíram assimetricamente. As dores não foram democráticas.

Dois sofrimentos e uma doença

Discernimos aqui dois tipos distintos de sofrimento. Podemos, sim, sofrer por não dispor da vida cultural mais ampla, pública; por não poder cruzar com estranhos, abraçar amigos, trabalhar com colegas, trocar amenidades na hora do cafezinho na empresa. Esse foi o primeiro sofrimento, o sofrimento imediato causado pelas quarentenas e lockdowns. Sim, a pandemia mostrou com grande clareza o quanto essas coisas são importantes para nós. Aqueles, como eu, que trabalham com a “cura d’almas”, como ministros religiosos e no aconselhamento pastoral, notaram esse impacto imediato. Parte da pressão para a abertura das igrejas, para além das narrativas antipáticas (de que todas as igrejas queriam abrir por dízimos, por exemplo; o fato é que muitas igrejas mantiveram suas arrecadações normalmente), veio da base, da massa dos fiéis desesperados para rever os amigos e cultuar coletivamente.

Mas já em março de 2020, quando o fim do lockdown em Wuhan resultou em uma pandemia de divórcios, pastores e padres ficaram de cabelo em pé. Denúncias de violência doméstica também subiram dramaticamente no Brasil: 105.821 no ano passado, fato que já estava no radar do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, da ministra Damares, desde o começo da pandemia. Com o mesmo fenômeno se repetindo em outros lugares do mundo, ficou claro que a vida doméstica iria sofrer também. E esse foi o segundo sofrimento: as famílias em pé de guerra e os divórcios, especialmente a partir da segunda onda da pandemia, em 2021.

É claro que esses dois sofrimentos, embora correlacionados, são distintos e vêm em combinações diferentes. Quem vive sozinho e encontra toda a sua sociabilidade no nível público – e que, inclusive, vive a sua intimidade segundo a lógica do capitalismo emocional – sofreu diretamente o impacto das quarentenas e do distanciamento. Sem a bolha familiar, a vida ficou muito mais dolorosa. Mas o que pesou, para estes, foi a solidão, a falta de gente e do dinamismo da vida do trabalho.

Para quem a vida familiar era pobre, ou ausente, a supressão da vivência pública tornou-se insuportável

Para os que viviam em suas bolhas familiares, a experiência foi variada. Poucos houve que não se queixaram de tensões, mas para algumas famílias foi um desastre completo. Para Eva Illouz, “a maioria das casas no mundo não está equipada para isso”. Trata-se de uma generalização bastante arriscada, mas talvez verdadeira. Ainda assim, muitas casas estavam equipadas para isso, e algumas se esforçaram para encontrar meios de administrar o estresse dos relacionamentos. Minha experiência anedótica me sugere que a maioria das casas está mal preparada, mas tem alguns recursos disponíveis, e apenas por isso não vimos um colapso absoluto.

De modo que as dores não se distribuíram democraticamente. Teve gente que sofreu mais. E para entender por quê, precisamos nos perguntar como essas pessoas que sofreram mais viviam esses dois mundos antes da pandemia.

Pois bem: me parece claro que a diferença reside na qualidade da vida familiar, acima de tudo. Para quem a vida familiar era pobre, ou ausente, a supressão da vivência pública tornou-se insuportável. Com isso em mente, sugiro que o problema não reside na “falta da esfera pública”, mas na intimidade vulnerável. A pandemia agravou o sofrimento de quem já tinha uma intimidade vulnerável, fosse ela tradicionalista e rígida, ou líquida e adaptada ao capitalismo afetivo.

Narciso libertado

Vale lembrarmos aqui essa importante concepção de Eva Ilouz, a ideia de “capitalismo afetivo”. Na opinião da socióloga, o século 20 viu um processo de sentimentalização do capitalismo e de capitalização do afetivo. Assim, a psicologia e o capital emocional tornaram-se parte integrante dos processos de troca econômica e produção de lucro e, por outro lado, a lógica econômica do lucro e do laissez-faire invadiu as relações familiares e íntimas, por meio da “desregulamentação dos mercados afetivos”. A revolução sexual foi, naturalmente, uma etapa crucial da revolução capitalista liberal. Sexo casual, múltiplos parceiros em série, relações abertas e “novas configurações familiares” libertaram o indivíduo moderno para a autonomia e a felicidade pessoal.

A afetividade tornou-se, então, um dos indexadores da atividade econômica, e a afeição passou a ser pragmática, efêmera, menos ligada a capitais morais e a compromissos éticos, e sujeita mais explicitamente ao mero cálculo libidinal. Esse efeito se espraiou, gerando a “relação pura” examinada por Anthony Giddens (a relação sem outro suporte que não os ganhos emocionais dos participantes) e um novo direito de família centrado nas emoções (como é o caso dos “direitos afetivos”, no Brasil). O espírito do consumismo moderno tomou conta das relações amorosas, exigindo flexibilidade, maior autonomia e capacidade de escolha, infidelidade e, necessariamente, maior produção de “lixo” emocional – a ser recolhido por meio de autoajuda ou terapia.

Ora, a esse processo corresponde um enfraquecimento dos compromissos – tema também recorrente em Eva Illouz. Em Why Love Hurts ela chega a adotar um termo técnico para descrever o novo fenômeno de homens temerosos e avessos a responsabilidades afetivas duradouras: abulia (do grego boulé, “vontade”), ou fobia de compromisso. Um raquitismo moral se desenvolve a partir do capitalismo emocional; ou uma espécie de “obesidade” emocional.

A afeição passou a ser pragmática, efêmera, menos ligada a capitais morais e a compromissos éticos, e sujeita mais explicitamente ao mero cálculo libidinal

Isso nos leva a outro autor relevante para a discussão: Gilles Lipovetsky. Como Illouz, ele trabalha com sua própria noção de capitalismo emocional, que ele associa mais diretamente com a experiência do consumo. Lipovetsky descreve a atual fase de nossa civilização como a do “capitalismo de hiperconsumo”, e o tipo de indivíduo cultivado nessa ordem de coisas como o Homo consumans; ao qual a mítica carapuça de “Narciso” parece cair muito bem.

O indivíduo contemporâneo é um narcisista. Deseja acima de tudo o prazer e se encontrar na experiência de consumo, e por isso mesmo aprova a aceleração dos processos de desinstitucionalização – quanto menos regras, tradições fixas, coerções sociais, melhor. Pluralidades e diferenças, sim! Mas apenas como alternativas estéticas, opções de roupas e músicas na prateleira do supermercado, e não como sistemas rígidos e comunitários de vida. E numa passagem antológica em A Felicidade Paradoxal, de 2006, Lipovetsky declara:

“O relaxamento dos controles coletivos, as normas hedonistas, a escolha da primeira qualidade, a educação liberal, tudo isso contribuiu para compor um indivíduo desligado dos fins comuns e que, reduzido tão-só às suas forças, se mostra muitas vezes incapaz de resistir tanto às solicitações externas quanto aos impulsos internos... Por toda parte, a tendência ao desregramento de si acompanha a cultura de livre disposição dos indivíduos entregues à vertigem de si próprios no supermercado contemporâneo dos modos de vida. À medida que se amplia o princípio de pleno poder sobre a direção da própria vida, as manifestações de dependência e de impotência subjetivas se desenvolvem num ritmo crescente. O que se representa na cena contemporânea do consumo é tanto Narciso libertado quanto Narciso acorrentado.”

O indivíduo contemporâneo é um narcisista. Deseja acima de tudo o prazer e se encontrar na experiência de consumo, e por isso mesmo aprova a aceleração dos processos de desinstitucionalização

Ora, Narciso libertado é um sujeito com baixa capacidade de resistência a frustrações, de inteligência emocional e de capital social. Não é alguém esculpido para negociar bem espaços e direitos, para cooperar intensamente, e para suportar a divergência moral; não é esculpido, por exemplo, para a vida familiar e comunitária intensa.

É assim que Lipovetsky nota, com grande perspicácia, que o aprofundamento do individualismo consumista pode ser muito bem acompanhado por analgésicos sociais e experiências de massa. Consideremos, por exemplo, as raves e shows de música eletrônica. Eles são fenômenos sociais, mas apenas epidérmicos, para trazer o calor da vida comunitária sem os seus custos. Lipovetsky chama esses encontros de “banhos de gente”. Banhos de gente são o que se busca em bares e pubs, em shows, em passeatas e manifestações públicas, em jogos de futebol e, eventualmente, até mesmo em igrejas.

Nada contra – exceto se constatarmos que os banhos de gente tenham se tornado substitutos da experiência comunitária. Ou seja: nossa ecologia social tripla de indivíduo-comunidade-sociedade colapsou para se tornar apenas indivíduo-coletividade. Mas isso é exatamente o que o capitalismo emocional produz.

Narciso quarentenado, e além

E isso nos leva à questão referida acima dos “dois sofrimentos”. Minha alegação é a de que a pandemia expôs uma vulnerabilidade: a vulnerabilidade da vida comunitária e familiar pobre.

Essa vulnerabilidade pode se manifestar como a solidão intencional ou trágica do indivíduo que tem a apenas a “sociedade”, ou a esfera pública, ou como a opressão do indivíduo que vive uma experiência comunitária tóxica e doente e é aconselhado a meramente abandoná-la rumo à esfera pública.

Essas duas lógicas se comunicam, mas são irredutíveis. Por um lado, famílias distanciadas da ideia de compromisso são líquidas demais para manter os hábitos do amor, fidelidade e cuidado mútuo; e pessoas cuja vida afetiva tem seu centro na sociedade de consumo não dispõem de lugares sólidos para construir experiências comunitárias ricas e para experimentar amor e fidelidade. Por outro lado, famílias doentes e tóxicas são difíceis para pessoas sadias e certamente insuportáveis para pessoas também adoentadas; e isso as empurrará para o analgésico da vida líquida, com as bênçãos de intelectuais, artistas e terapeutas modernos, que frequentemente adotaram essa mesma “solução” para si mesmos.

A pandemia expôs uma vulnerabilidade: a vulnerabilidade da vida comunitária e familiar pobre

Essas duas tendências se reforçam; parece existir um maquinismo patológico, uma irracionalidade sistêmica criando e sustentando a nossa pobreza comunitária. Com a imaginação sequestrada, resta a perplexidade diante da pandemia. Narciso quarentenado é Narciso perplexo.

Em qualquer caso, não há como ter uma vida humana completa e sadia sem uma estrutura de amor e compromisso, e a vida pública simplesmente não pode suprir essas coisas. Ou você tem isso por meio da família (ou da comunidade religiosa, ou de amizades muito sólidas e especiais), ou não terá de jeito nenhum.

Assim, não me parece suficiente apenas constatar que os casais modernos não aguentam a intimidade constante “porque a esfera pública tornou-se essencial à vida moderna”... e ponto. Na verdade, a esfera pública tornou-se um escape emocional para novas gerações de indivíduos que são profundamente narcisistas e não suportam a convivência comunitária, e um analgésico para quem sofre em ambientes familiares profundamente tóxicos.

Por que, então, não conversamos seriamente sobre isso? A desconstrução da família é um jogo divertido para os estetas modernos, mas tem um custo alto, e resulta em uma vulnerabilidade perigosa. A pandemia mostrou isso claramente: não é que a família e o casamento tenham fracassado, mas que a individualidade contemporânea é moralmente fracassada. Em vez de normalizar o fato de que muitas famílias são doentes, é preciso encarar o problema clinicamente; buscar os recursos da ciência e da religião para uma nova educação humana que considere a família, a comunidade e o bem comum como bens indispensáveis e prioritários.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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