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Detalhe de O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch.
Detalhe de O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch.| Foto: Wikimedia Commons

“A essência de toda moralidade é essa: crer que cada ser humano tem importância infinita e, assim, que nenhuma consideração pragmática pode justificar a opressão de um pelo outro. Mas para crer nisso é necessário crer em Deus.” (R. H. Tawney)

No princípio do ano, em um artigo que me rendeu ofensas excepcionalmente entusiasmadas, sugeri nessa coluna que a pauta ambiental poderia funcionar como uma saliência positiva, em caso de “empate ideológico”, para desequilibrar o apoio evangélico e tirar Bolsonaro do jogo.

Mas na verdade não penso que o resultado político deva ser o critério dominante no julgamento político. Penso que, contrariando nesse aspecto a lógica pragmática da política moderna, todos deveríamos agir por princípios; fincar o pé neles, ganhando ou perdendo politicamente. Essa é, também, a única forma possível de praticar uma presença cristã fiel.

Incluí a questão ambiental num pacote maior que denominei, de modo tentativo, como “pautas edênicas”, e fiquei de explicar a coisa. Refiro-me, com isso, ao que a narrativa bíblica das origens e do “Éden” pode nos dizer sobre os eixos éticos para a presença cristã pública e, assim, para a prática política. Penso que essa narrativa estabelece três grandes “regiões” de significado para a vida humana: a sacralidade da pessoa, a família e o trabalho não alienado: o básico para a felicidade e a agenda mínima da ação cristã.

Podemos encontrar em Gênesis as diretrizes básicas para a presença e o testemunho do povo de Deus no mundo? Creio que sim

Sei que entro, aqui, em terreno terrivelmente controverso. Para cristãos, esperar que a Palavra de Deus forneça diretrizes para o conjunto de sua vida moral é uma obviedade. Nada de mais. Não cristãos temem, aqui, que doutrinas religiosas assumam o controle da sociedade e uma ditadura fundamentalista se instale.

Não posso dizer que esses temores sejam totalmente infundados; mas tampouco posso fingir que não são hoje terrivelmente exagerados. O fato é que nossas sociedades modernas nasceram em berço cristão e, em muitos aspectos, protestante. O gesto de recursar o debate honesto sobre a importância dessas raízes para um Brasil com tamanho eleitorado cristão, como se representassem mera ameaça “externa” à democracia, guarda alguma similaridade com o avestruz que enfia a cabeça na areia. Por sinal, foi esse estado de consistente negação o que produziu o recente “susto” com a presença política evangélica.

Com minhas desculpas dadas – aceitas ou não –, pretendo levantar nessa coluna uma discussão sobre diretrizes para a presença cristã pública, de um ponto de vista ético e político. Começo pelo Gênesis, mas há muito mais a dizer a respeito a partir da Bíblia. Os leitores encontrarão, evidentemente, bastante teologia por aqui; talvez numa dose um pouco maior que em outros artigos. Mas, se isso arejar a conversa, tanto fornecendo categorias para cristãos se expressarem quanto ajudando descrentes a entender o estranho comportamento de seus amigos devotos, me darei por satisfeito.

Por que o Gênesis?

É nesse livro, parte da coleção mosaica denominada Pentateuco (“os cinco livros”), que encontramos a base e o ponto de partida para compreender o sentido dos planos de Deus, da criação do mundo à vocação dos patriarcas, até a criação do povo de Israel. Tudo o que está entre o “faça-se” que tirou o universo do nada até a grande revelação de Deus como libertador dos escravos, no Êxodo, encontra-se representado no Gênesis. É por isso que devemos buscar nesse livro o ponto de referência para compreender a relação entre o Deus Salvador e o mundo criado por ele.

E então, nossa questão central: podemos encontrar em Gênesis as diretrizes básicas para a presença e o testemunho do povo de Deus no mundo? Creio que sim. E, muito embora toda a Escritura seja necessária para clarificar essas diretrizes, me parece que elas surgem em Gênesis na sua forma mais simples e clara, como o tronco visível de uma árvore, que depois se ramifica em dezenas e centenas de galhos e folhas. A metáfora vegetal me parece apropriada quando consideramos que, de fato, os temas do Gênesis se repetem em diversas formas e tamanhos por toda a Escritura, do Antigo ao Novo Testamento, até a consumação da história no Apocalipse de João.

Se começarmos pelo começo, o primeiro assunto que o Gênesis oferece é, naturalmente, o relato da Criação. Mas não vem ao caso, aqui, uma discussão científica sobre as origens; o que importa é a compreensão funcional da realidade apresentada no texto sagrado: por que Deus fez o mundo assim? Por que o homem existe, afinal de contas, nesse universo?

As três “regiões” da felicidade humana

Sim, estamos falando do Éden: o paraíso. De novo, me abstenho de debater, aqui, a relação entre o Éden e a ciência moderna. Há discussões excelentes sobre o tema, mas isso nos desviaria totalmente da questão: a história do Éden manifesta o que Deus planejou para o mundo e o homem; o que ele é e deveria ser. Nesse sentido, qualquer incréu de boa vontade poderá aprender bastante de Gênesis.

Se o leitor tiver tempo para tanto, recomendaria uma leitura rápida dos dois primeiros capítulos de Gênesis. Se não puder fazê-lo agora poderá, espremendo a memória, acompanhar meu argumento. Mas, se nem lembra de nada nem quer lembrar, e toma minhas súplicas como um abuso, pode voltar depois de tomar um chazinho.

A história do Éden manifesta o que Deus planejou para o mundo e o homem; o que ele é e deveria ser. Nesse sentido, qualquer incréu de boa vontade poderá aprender bastante de Gênesis

Falamos, então, da ordem do jardim, e reconheço aqui três temas cruciais, que dão forma distintiva à ética cristã: a questão da pessoa humana, a questão social e a questão do trabalho e da história. As três estão lá, embutidas no pacto que o Criador estabeleceu com suas criaturas. Eu consideraria esses três assuntos como três grandes regiões morais, nas quais a felicidade e a bem-aventurança humana podem ser vivenciadas. Digamos que eles formam uma imagem cristã do paraíso.

Em tempo: não digo, com isso, que elas constituam a “alma” da espiritualidade política cristã. De modo algum! A alma do cristianismo se revela na Cruz de Jesus, o Cristo, e ela oferece a direção central e mais importante sobre a presença cristã no mundo. Mas essa alma tem corpo. O princípio cristão se aplica a partir de uma realidade concreta, e criada; a graça se derrama e aperfeiçoa uma natureza, uma existência. E, quando nos voltamos para a Escritura, encontramos uma descrição do tronco dessa existência.

Noutro dia falaremos sobre a “alma” da política cristã. Por hora, vamos considerar o seu corpo.

Personalismo e direitos humanos

Penso ser razoavelmente claro, antes de tudo, que a Bíblia proclama a realidade da Imago Dei, a sacralidade fundamental do ser humano. Dessa sacralidade fundamental procede a nossa compreensão da dignidade humana.

Como portador da imagem divina, o ser humano é convocado e vocacionado por Deus; responde a ele, dialoga com ele todos os dias no jardim, e é interpelado por ele. Esse aspecto da coisa me parece sublime: o ser humano é pessoal, existe num universo pessoal, e tem vocação e propósito. Ele não é só um fato bruto da natureza, ou uma existência livre perdida num universo sem sentido; há uma vocação humana, e é aí que a identidade de cada um deve ser encontrada.

Como gosto de dizer: o ser humano é Homo respondens, homem respondente, responsável e responsabilizável; e pode fazer tudo isso porque é pessoa. Como pessoa ele foi posto como representante divino no mundo, e por isso mesmo cada ser humano deve ser tratado como pessoa, como fim e não como meio, e portador de dignidade.

O ser humano é pessoal, existe num universo pessoal, e tem vocação e propósito. Ele não é só um fato bruto da natureza, ou uma existência livre perdida num universo sem sentido; há uma vocação humana

Esse fato fundamental teve grande importância para o reconhecimento de que pessoas humanas são possuidoras de direitos naturais. O que as pessoas são, por natureza, impõe sobre os outros seres humanos uma série de deveres: respeito, cuidado, justiça, liberdade. Mas o que são, por natureza, as coloca também sob deveres junto a seus semelhantes. Essa é uma das fontes, por meio da razão e da consciência, do conhecimento natural e universal da lei de Deus defendido pelos cristãos. Historicamente, essa percepção foi uma das fontes da moderna ideia de Direitos Humanos, que levou à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O filósofo de Yale Nicholas Wolterstorff contou os grandes lances dessa história na parte I de seu paradigmático Justice: Rights and Wrongs, de 2008.

Uma das expressões dessa compreensão elevada sobre o ser humano foi o movimento personalista, no século 20, tão influente no pensamento de ativistas pelos direitos civis como Martin Luther King, herdeiro do personalismo de Boston, e de pensadores como o filósofo católico Jacques Maritain, uma das grandes influências na composição da DUDH de 1948. No catolicismo romano afirma-se claramente o “princípio personalista”, como ponto e partida da doutrina social positiva e para uma visão cristã dos direitos humanos.

No contexto evangélico, o apologista e evangelista Francis Schaeffer apresentou uma coerente defesa de que a hominalidade do homem (“manishness”) e sua condição de pessoa capaz de se comunicar resultam da criação à imagem de Deus. A pessoalidade do homem deveria ser o ponto de partida não apenas para a pregação do Evangelho, mas para o relacionamento ético com todos os seres humanos. Esse foi seu ponto de partida para defender as liberdades fundamentais e para se opor ao aborto. Essa pessoalidade inclui, também, o corpo humano, de modo que é vedado ao cristão tratar o corpo como objeto e meio do qual podemos dispor arbitrariamente.

A bandeira dos direitos humanos suscita, contemporaneamente, o questionamento de muitos cristãos por ser frequentemente empregada para promover agendas morais anticristãs ou no mínimo questionáveis, como a “ideologia de gênero”, o “feminismo”, o abortismo, a liberação sexual e a normalização da cultura LGBTQI+. A isso devemos responder que é uma tarefa cristã participar da arena pública para mostrar que essas agendas são distorções dos Direitos Humanos, porque pressupõem concepções distorcidas da pessoa humana, e que trazem consigo efeitos colaterais danosos à pessoa e ao bem comum.

Essas agendas são parte do que foi chamado pela jurista norteamericana Mary Ann Glendon de “dialeto liberal dos direitos humanos”, uma versão progressista e individualista dos Direitos Humanos que distorce seu significado. Contra isso se interpõe o entendimento da dignidade da pessoa humana a partir do personalismo cristão e bíblico, que leva a um olhar distintivo sobre temas como discriminação religiosa, racismo, xenofobia, capitalismo sexual e exploração afetiva, o desrespeito a imigrantes e o aborto.

Em tempo: para os cristãos não é suficiente reconhecer e promover a dignidade humana para experimentar plenamente essa “região” da felicidade. É preciso reconciliar-se com a sua fonte divina – o próprio Deus. Daí que cristãos não querem nem podem separar os dois grandes mandamentos da lei: “ama a Deus acima de todas as coisas... e a teu próximo como a ti mesmo”.

Família e bem comum

Dizer, a partir de Gênesis, que o ser humano foi chamado à vida em sociedade seria pouco; de Aristóteles, com sua afirmação de que o homem é um “ser político”, até o coletivismo socialista, poucos são inconscientes desse fato. É verdade que alguns, seguindo o liberalismo ateísta de Ayn Rand ou o exemplo de estadistas como Margaret Thatcher, negam que a “sociedade” seja uma realidade objetiva.

Biblicamente não há dúvidas quanto a isso, no entanto. Em Gênesis a Imago Dei é uma realidade coletiva e estereoscópica: “macho e fêmea”, “e lhes chamou pelo nome de Adão”. Adam é, inicialmente, um nome coletivo (Gn 5,1-2). Além disso, não apenas o Antigo Testamento se expressa frequentemente sobre a responsabilidade coletiva de povos e nações diante de Deus, como também trata toda a comunidade humana como una em Adão, e todos os crentes como um só em Cristo, compartilhando de seus méritos e de seu destino. Não existe personalidade humana sem comunidade, e a negação da realidade da dimensão coletiva do ser humano não é apenas uma absurdidade antropológica, mas também teológica.

Mas a palavra de Deus ensina mais a respeito da sociedade, além dessas considerações genéricas. Ela tem uma forma fundamental estabelecida por Deus: o casamento e a família. Deus une homem e mulher, de modo que dessa assimetria surja uma unidade superior. Essa unidade complexa é o ponto de partida para a formação moral de novos seres humanos e para a constituição de uma sociedade que deve, por sua vez, honrar seus pais e guardar seus ensinamentos. Essa perspectiva se desenvolve em outras partes da bíblia hebraica, como o Deuteronômio e os Provérbios de Salomão.

Em suas cartas e, particularmente, em Efésios e Colossenses, encontramos o apóstolo Paulo reafirmando o entendimento bíblico sobre a bem-aventurança familiar, mas não apenas como um mandamento geral e universal, como lugar privilegiado de prática e demonstração da fé em Cristo. Dado que a ordem familiar era entendida, no Império Romano, como uma versão miniaturizada da ordem de poder imperial, é muito significativo que Paulo ensine para a família uma ordem de poder diferente da ordem romana, dessa vez centrada em Cristo, na cruz e na submissão mútua. O ensino paulino mostra, assim, que a ética cristã deve se estender da consciência individual para a prática social, e que a célula básica da sociedade deve ser renovada pelos princípios do Evangelho.

O cultivo de famílias saudáveis deve ser uma das agendas principais das igrejas cristãs. Isso significa não apenas enfatizar o enraizamento biológico natural da família na união heterossexual e na geração de filhos, mas também a formação dessas famílias segundo o exemplo de Cristo, combatendo males contemporâneos como a violência intrafamiliar, abusos físicos e psicológicos, divórcio, infidelidade sexual e emocional, abandono parental, omissão masculina e deslealdade.

O problema da família moderna é um problema social e público, e não apenas religioso. Sabemos que o divórcio está diretamente ligado à degradação da saúde mental, ao empobrecimento econômico das partes, e que a ausência paterna tem relação com índices mais altos de criminalidade de menores. Além de as igrejas formarem pastorais da família, visando esse cultivo, é preciso também promover políticas públicas a favor da família, e leis trabalhistas que favoreçam e não desencorajem o compromisso familiar.

O cultivo de famílias saudáveis deve ser uma das agendas principais das igrejas cristãs

O filósofo cristão reformado Roel Kuiper ofereceu recentemente uma exploração contemporânea sobre a importância da família para a formação moral e a constituição da sociedade, que traduz a visão bíblica numa linguagem moderna. Segundo ele, a família é o ponto de partida para a constituição do que ele chama de “capital moral”: a capacidade de ser confiável, pela atitude de cuidado e amor em relação aos outros, e a resultante capacidade coletiva da confiança mútua. Quando há capital moral em uma comunidade, há mais amor e lealdade; as pessoas cooperam mais e isso traz mais transparência, empreendedorismo, honestidade e justiça. E isso significa a possibilidade de promover o bem comum.

Esse entendimento é essencial para orientar a ação cristã pública. Quando se fala em uma doutrina social cristã, muitos pensam imediatamente em questões macroestruturais, como de sistema econômico ou modelo de governo. Essas coisas são importantes, mas são mais complexas e dependem de julgamentos científicos sobre economia e política; são campos de debate acadêmico e político, com maior espaço de divergência entre cristãos.

No entanto, como ocorre com a sacralidade da pessoa humana, a doutrina cristã para a família guarda relativa clareza. Apesar de haver diferenças, evangélicos, católicos romanos e ortodoxos orientais concordam substancialmente sobre essas coisas. O que quer que pensemos sobre os modelos macroestruturais, portanto, deve ser concebido de forma a acomodar confortavelmente a centralidade da família e a sua contribuição para a vida social; pois a partir da família se produz o capital moral necessário para que todos cooperem, trazendo suas contribuições para oportunizar a Shalom, o genuíno bem comum.

Em outros termos: o bem comum é uma realidade dinâmica, que se altera à medida em que as pessoas trazem novas contribuições para a coletividade; mas a “cola”, o poder de conexão social que viabiliza a simbiose e a integração dessas contribuições, é o capital moral produzido por meio do casamento, da família, das amizades, da vida comunitária nas igrejas. Os cristãos concordam sobre essa “cola” moral e sobre a importância do casamento e da família para produzi-la.

Nesse sentido, a agenda cristã traz um elemento do que tem sido chamado de “comunitarismo”: as relações humanas saudáveis precisam ser consideradas e preservadas no processo de transformação social. Podemos dizer que ela traz, também, um elemento de conservadorismo prudencial: mudanças sociais que envolvam claro prejuízo para a saúde das famílias, para o compartilhamento de valores morais comuns e para a confiança mútua entre as pessoas, devem ser resistidas ou compensadas de algum modo. Desse modo, a família é reconhecida como a célula básica e a régua de medida para o conjunto da ordem social.

Assim, por exemplo, “avanços” nos direitos humanos que acentuam o individualismo e enfraquecem as responsabilidades e deveres comunitários devem ser vistos com suspeita crítica: às vezes eles realmente libertam as pessoas de jugos opressivos, mas frequentemente são apenas escapes narcisistas, como vemos no movimento dos “Direitos Afetivos”, no âmbito do Direito de Família brasileiro.

Na linguagem moderna dos Direitos Humanos, essa ênfase nos deveres, na comunidade e no bem comum estão representados pelo “princípio da fraternidade”. Nossas sociedades modernas e secularizadas enfatizam muito a “liberdade” e a “igualdade”, buscando justiça a partir desses princípios. A direita enfatiza a “liberdade” e a esquerda enfatiza a “igualdade”; e ambas abandonaram a fraternidade. Isso aconteceu, em parte, porque o individualismo expressivo e o progressismo liberal rejeitam a família e os deveres comunitários, e isso torna difícil cumprir o terceiro princípio. Nesse sentido, o movimento dos Direitos Humanos precisa do cristianismo para voltar ao equilíbrio.

Trabalho e conservação

Vimos também em Gênesis o que se convencionou chamar, no contexto evangélico, de “mandato cultural”. Deus ordena que o homem domine a terra e que trabalhe, cultivando e guardando o jardim. O representante dos interesses divinos no mundo é encarregado de atuar criativamente, desenvolvendo potenciais postos por Deus na criação.

A compreensão bíblica do trabalho envolve três relações principais: com Deus, com a terra e com o próximo. Deus planta um jardim, e o homem deve cultivá-lo; assim, o trabalho humano ocorre a partir do trabalho divino, sobre o trabalho de Deus, e em resposta ao ato de Deus. Há também a relação com o próximo, por meio do serviço; e a relação com a terra, de domínio e cuidado.

Em primeiro lugar, o modelo divino estabelece a dignidade do trabalho. No mundo antigo, ele era visto como uma escravidão imposta pelos deuses; mas na visão hebraica, era o privilégio de imitar a Deus, que também trabalhou por seis dias e descansou no sétimo após criar o mundo. O próprio Deus é representado como um trabalhador criativo, o construtor do templo cósmico e o jardineiro original. O portador da imagem divina e representante de seus interesses no mundo deve também trabalhar. Trabalho não é punição; é vida.

Além de as igrejas formarem pastorais da família, visando esse cultivo, é preciso também promover políticas públicas a favor da família, e leis trabalhistas que favoreçam e não desencorajem o compromisso familiar

Mas, além de ser o modelo do trabalho, Deus coopera com o homem no trabalho. Nessa perspectiva devemos compreender a tarefa civilizacional dada ao ser humano. Não se trata de uma atividade independente, descolada da ordem natural e da criaturidade, ou de um gesto de independência do Criador, mas de uma cooperação ou uma sinergia divino-humana.

“Todo o vasto conjunto da civilização humana não é o espetáculo das aberrações arbitrárias de um capricho evolucionário nem o panorama inspirador das realizações criativas do próprio eu; antes, é a demonstração da maravilhosa sabedoria de Deus na criação e o significado profundo da nossa tarefa no mundo... O significado da história, assim, deve ser buscado na direção humana da obra de Deus”.

Essa observação de Albert Wolters é de extrema importância. O mundo e a história humana são constituídos como uma resposta a Deus, e o ser humano tem um papel criativo nisso. Mas o elemento de liberdade na cultura e na história não significa autonomia absoluta em relação a Deus. O Homo faber (o homem que trabalha) ainda conta como uma criação e parte da diversidade das obras de Deus. Nesse sentido, o desenvolvimento civilizacional é compreendido como o desdobramento positivo do mandato cultural dado ao ser humano, e como uma atividade espiritualmente responsiva, que sempre diz sim ou não a Deus. Assim, com o auxílio da graça comum, a história humana tem seus melhores momentos de beleza, bondade e verdade; mas, devido ao estado de queda e alienação de Deus, em seus piores momentos manifestará o mal e a morte.

Wolters, seguindo nisso a tradição reformacional ligada ao pensamento de Abraham Kuyper, defende a importância de usarmos as categorias de “estrutura e direção” para destacar que o trabalho humano sempre depende de Deus, mas ao mesmo tempo expressa a liberdade criativa humana. A direção dada pelo ser humano pode, então, introduzir um “desvio direcional” e provocar antinomias, contradições do ser humano consigo mesmo.

Uma forma de promover esse “desvio direcional” no processo civilizatório é ignorar que o trabalho humano depende do trabalho divino. Esse é o princípio do “sábado”, na cosmovisão hebraica. Quando as Escrituras representam a Deus “trabalhando” e “descansando”, não têm a intenção de sugerir que Deus tenha “se cansado”, como leitores desavisados costumam inferir. O ponto é distinguir o Deus de Israel dos deuses babilônicos e cananeus que, segundo as mitologias desses povos, haviam criado o ser humano como escravo para trabalhar em seu lugar e alimentá-los, pois estavam cansados e famintos e o trabalho era interminável.

Em oposição a isso, o Deus de Israel trabalha e conclui seu trabalho. Seu descanso representa a perfeição e completude de sua obra. Além disso, ele é quem alimenta suas criaturas plantando um jardim, e não o inverso. Assim, o sábado não foi, em primeiro lugar, o momento de descanso humano, mas o momento de lembrar que o trabalho humano descansa sobre o perfeito trabalho divino. Deus trabalhou por nós, e nosso trabalho é participar livremente do trabalho com Ele.

O esquecimento da criaturidade obscurece o milagre de existir como seres vivos e pessoais, como parte de um mundo natural, e permite a confiança prometeica no poder formativo humano e na capacidade técnica

O princípio do sábado se opõe à relação ansiosa com o trabalho das próprias mãos, que o torna o foco do desespero humano, da busca por segurança e autoafirmação. Foi isso o que levou ao sonho utópico da cidade de Babel, com sua torre. Essa relação ansiosa leva à construção de ídolos e a desvios civilizacionais. Essa é a verdadeira origem da Civitas Mundi, a cidade dos homens, na crítica agostiniana, que se pauta, acima de tudo, pela vontade de poder.

A negação do princípio sabático leva à tentação de estabelecer destinos utópicos e esperar por um falso Éden antropocêntrico. Daí a tentação de construir sociedades que colocam em seu centro não a dádiva divina (o Éden com a árvore da vida no centro), mas a força criativa do homem (Babel, com uma torre no centro). O esquecimento da criaturidade obscurece o milagre de existir como seres vivos e pessoais, como parte de um mundo natural, e permite a confiança prometeica no poder formativo humano e na capacidade técnica. Negando sua criaturidade, o ser humano se lança em busca da imortalidade, seja ela literal, como na epopeia de Gilgamesh, seja social, como na utopia marxiana, seja novamente literal, na esperança de alguns transumanistas na imortalidade biológica por meio da tecnologia.

Assim temos o vício tão evidente das sociedades modernas: ideologias que induzem pessoas e sociedades a buscar o escape da natureza, a emancipação absoluta, por meio da fé incondicional no progresso humano. Não é essa a mais absoluta alienação, o manifesto acabado de uma neurose narcísica?

Essa fé, que une capitalistas e socialistas marxianos, é a grande narrativa que domina a ordem moderna. A fé no progresso alimenta a esperança de superação da natureza pela tecnociência, a exploração predatória da natureza promovida, historicamente, tanto por capitalistas quanto por socialistas, e a progressiva destruição do meio ambiente. A busca de progresso social rumo à emancipação absoluta levou à manipulação da sexualidade por meio da doutrina dos “direitos reprodutivos”, do aborto, da indústria do sexo e, mais recentemente, da própria negação da base biológica do sexo pela “ideologia de gênero”. Construir uma torre que “chegue até o céu” tem um custo: negar a natureza e alienar-se dela.

Essa exploração destrutiva daquilo que foi dado por Deus está sempre associada à exploração destrutiva da força de trabalho, de nós mesmos e do próximo: a alienação do trabalho. Essa exploração se dá no fenômeno da escravidão antiga e também das formas modernas de escravidão; na exploração dos trabalhadores denunciada nas críticas clássicas do capitalismo moderno, e também na moderna autoexploração, tão discutida pelo sociólogo Byung Chul-Han. Finalmente, temos a própria cultura de exploração afetiva e sexual, que espelha a relação predatória que nossa civilização estabeleceu com o planeta Terra.

A perspectiva cristã exige que todo trabalho, toda atividade cultural e mesmo nossa compreensão da história seja enraizada no reconhecimento da criaturidade humana, e na prática da gratidão pelas dádivas que permitem a existência e o trabalho. E isso traz algumas implicações imediatas.

Construir uma torre que “chegue até o céu” tem um custo: negar a natureza e alienar-se dela

Em primeiro lugar, o princípio sabático traz uma implicação anti-ideológica. Devemos recusar o antropocentrismo, no sentido de reconhecer que o progresso humano e a emancipação do indivíduo não são os eixos da existência; são, antes, “paraísos” alternativos, arremedos da Esperança verdadeira. Cumprir a vocação humana é oferecer uma resposta fiel ao Criador agindo como seu representante no mundo. O projeto humano deve ser, portanto, de cuidar uns dos outros e da criação de Deus. Isso nos levaria a promover o que Bob Goudzwaard define como “sociedades abertas”, não alienadas e livres de obsessões utópicas.

Em segundo lugar, a ética do cuidado estabelece um eixo moral para o trabalho: ele envolve responsabilidade pelos bens que devem ser cultivados e guardados. Num sentido geral, isso se aplica ao “jardim”, a própria criação de Deus, aquilo que ele já nos concedeu e que se torna o ponto de partida para o nosso trabalho. E, num sentido específico, isso se aplica aos bens que produzimos a partir desse cultivo comum, e que devem também ser cuidados por nós.

Isso nos leva ao importantíssimo tema da conservação ambiental, tema que se tornou foco de uma gigantesca disputa ideológica no mundo atual. Muitos cristãos, engolfados por desse debate ideológico, perderam as categorias teológicas e éticas para considerar a relação que o ser humano deve ter com a terra, a matéria básica de seu trabalho. Francis Schaeffer, um dos primeiros evangélicos modernos a levantar a questão no livro Poluição e Morte do Homem, em 1970, denunciou fortemente uma distorção do entendimento bíblico do “domínio” sobre a criação, como se justificasse transformar a natureza em mera ferramenta humana: “criatura companheira, criatura companheira, eu não pisarei em você. Somos ambos criaturas”.

Devemos recusar o antropocentrismo, no sentido de reconhecer que o progresso humano e a emancipação do indivíduo não são os eixos da existência; são, antes, “paraísos” alternativos, arremedos da Esperança verdadeira

É claro que se trata de uma tarefa mais ampla do que a conservação ambiental: trata-se de um ethos de cuidado e de respeito, que se refreia de abusar e refugar tudo aquilo que constitui a base para a vida humana: a vida, o próprio corpo e o corpo do outro, o alimento, o sexo, a família, as heranças e tradições culturais, e o próprio planeta Terra. A própria ética sexual cristã não pode ser separada de uma ética ambiental cristã.

Esse princípio deve levar as igrejas cristãs a considerarem, com o auxílio do melhor conhecimento científico contemporâneo, os melhores caminhos para neutralizar sua produção de detritos e, particularmente, as emissões de carbono (a sua “pisada ecológica” e seu “rastro de carbono”). Mas, além disso, podemos pensar no cultivo de hábitos de proteção de nascentes e matas em ambientes urbanos, na atenção a problemas de abastecimento de água e de saneamento criados pelo desrespeito ao meio ambiente, e a alterações de microclima causados pela urbanização. Finalmente, o risco do desmatamento e da extinção de espécies vegetais e animais, que constitui um verdadeiro crime contra o Criador, deveria levar cristãos a levantarem a agenda ambiental, ao lado da defesa da família, como uma de suas prioridades morais.

Em terceiro lugar, essa ética do cuidado exige dar a todos condições e oportunidades de trabalho, de modo que o bem comum seja assim constituído. No mundo contemporâneo isso significa, no mínimo, combater o trabalho escravo moderno e todas as formas de exploração do trabalhador, bem como usar os melhores meios para combater o desemprego. Mas é certamente mais do que isso: educar para o dever do trabalho, buscar a melhoria das condições de trabalho e da experiência de trabalho significativo, das oportunidades criativas, da igualdade de oportunidades e do empreendedorismo.

Deus não chamou o homem para reunir capital, mas para cultivar e guardar o jardim. Não é a riqueza, mas o trabalho o que manifesta a imagem divina no homem

Além disso, se é necessário possuir terra ou certos bens físicos, tecnológicos ou financeiros para trabalhar, torna-se necessária a articulação social para que as pessoas tenham acesso a essas condições. Devemos nos lembrar do princípio da “destinação universal da terra”, que não contradiz, mas qualifica o direito à propriedade privada, e da tese católica bastante apropriada de que “o trabalho tem uma prioridade intrínseca em relação ao capital”. Não se trata apenas de uma verdade sobre a natureza humana, mas também de uma questão ética cristã: Deus não chamou o homem para reunir capital, mas para cultivar e guardar o jardim. Não é a riqueza, mas o trabalho o que manifesta a imagem divina no homem. Isso não significa que a riqueza e a propriedade privada possam ser abolidas, mas que não são fins em si mesmas, e devem existir em benefício da pessoa humana.

Cabe, aqui, uma advertência: assim como a centralidade da família é uma norma para a organização social e um limite para a engenharia social, o direito, o dever e a dignidade do trabalho são a régua para o próprio sistema produtivo de uma sociedade. Nesse sentido, nem a igualdade econômica, nem a propriedade privada são os critérios últimos para determinar o modo de produção mais adequado, mas antes aquilo que permite a melhor e mais ampla experiência de trabalho criativo, significativo e coordenado entre as pessoas. Nesse sentido, o sistema de livre mercado e livre empreendimento tem se mostrado historicamente o mais eficiente até hoje.

Ajuntando as migalhas

Dignidade da pessoa humana, para além do individualismo expressivo; formação humana para o bem comum, a partir da família; trabalho com justiça, crescimento sustentável e conservação ambiental, para além da ideologia do progresso. É uma agenda moral mínima, baseada na vocação humana universal. Não são coisas que só possam ser buscadas no âmbito da política partidária; pelo contrário, são prioridades que podem organizar as práticas éticas de pessoas, famílias e comunidades.

Em conclusão, cito um salmo bíblico, o 128, que reúne, à sua maneira e para seu tempo, as três regiões de felicidade humana: existência pessoal diante de Deus, a família e o trabalho não alienado, numa sociedade aliançada com Deus.

Bem-aventurado todo aquele que teme o Senhor e anda em seus caminhos!
Pois comerás do trabalho das tuas mãos; serás feliz, e tudo te irá bem. Em tua casa, tua mulher será como a videira frutífera, e teus filhos, como brotos de oliveira ao redor da tua mesa.
Assim será abençoado o homem que teme o Senhor.
O Senhor te abençoe de Sião, para que vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida e vejas os filhos de teus filhos.
A paz esteja sobre Israel!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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