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Estátuas do Monumento das Bandeiras com máscaras de proteção em São Paulo, 12 de maio
Estátuas do Monumento das Bandeiras com máscaras de proteção em São Paulo, 12 de maio| Foto: NELSON ALMEIDA / AFP

João Dória disse que salvou 25 mil vidas com suas medidas de confinamento no estado de São Paulo. O noticiário está divulgando esse tipo de coisa sem achar que precisa demonstrar nada. Quem disse isso? Foi a ciência, responde o governador – única autoridade do planeta que possui uma equação segura entre percentual de isolamento e mortalidade por coronavírus. Ele diz que foi a diferença entre o que o Instituto Butantã projetou sem quarentena e o número atual de óbitos.

Se o que o Imperial College de Londres projetou para a pandemia fosse levado em conta, a OMS poderia declarar que já foram poupadas milhões de vidas. Mas a diferença entre projeção e realidade não se deveu a método de contenção algum – foi apenas um estudo feito com premissas inadequadas, como admitiu seu próprio autor, o epidemiologista Neil Ferguson. Quais são as premissas cientificamente seguras para qualquer projeção envolvendo a pandemia de coronavírus?

No nível da segurança absoluta – que permita constatações com o rigor matemático como o ostentado por João Dória – nenhuma. Pelo simples fato de que o vírus é novo e a literatura sobre o seu comportamento não existe – está sendo criada agora, em tempo real. O governador de Nova York acaba de informar que os dados sobre a população infectada registrados na rede hospitalar do estado o surpreenderam completamente.

Um total de 84% dos internados com Covid-19 estavam cumprindo as medidas de confinamento determinadas pelo democrata Andrew Cuomo – ou seja, estavam em casa. Esse resultado derrubou boa parte das projeções e premissas sobre os efeitos do lockdown, e as estimativas estão tendo que ser refeitas. Mas João Dória, ao contrário do resto do mundo, não tem dúvidas.

Nós temos – muitas, mesmo que isso não esteja em voga (ter dúvidas) dependendo do que se queira afirmar. A Organização Mundial da Saúde, referência para a recomendação do lockdown, atualizou essa diretriz algumas vezes desde o início do reconhecimento da pandemia. A principal revisão foi relativa à constatação – frustrando em parte suas projeções – do surgimento de frentes significativas de contágio dentro das casas. E esse contágio não seria necessariamente provocado pelas parcelas da população que continuaram circulando. Um grande contingente provavelmente se confinou já infectado e assintomático.

Esse fator de incerteza, apresentado pela OMS, sobre a eficácia exata do confinamento já introduz uma variável desconhecida que desautoriza qualquer projeção com precisão matemática – como vimos no caso de Nova York – sobre o avanço do contágio, em qualquer região do mundo. Menos em São Paulo.

A OMS disse mais: em áreas socialmente vulneráveis – como o Brasil, incluindo São Paulo – onde pessoas precisam cavar a sua sobrevivência a cada dia, a circulação controlada (excetuando os grupos de risco e os sintomáticos) não só é aceitável, como recomendada, naturalmente com todas as medidas de prevenção de contágio e contra aglomerações. Você acha que a OMS quis dizer com isso que não tem problema permitir o avanço da epidemia nessas áreas?

Claro que não. Ela quis dizer que, embora recomende o isolamento horizontal como a medida mais conservadora (e não salvadora, como mostra a ocorrência do contágio em casa), a circulação social restrita e controlada não afronta os códigos de enfrentamento da pandemia – e estamos falando da OMS, a proponente e avalista planetária do “fique em casa”, medida que está longe de ser consensual nos meios científicos. Ou seja, não há um modo absolutamente seguro de proteção contra a pandemia e não existem certezas absolutas nessa matéria. A não ser em São Paulo.

A flexibilização do lockdown para áreas socialmente vulneráveis é o reconhecimento de que, para essas populações, o embargo às atividades extradomiciliares provocará desnutrição, doença e morte – como ratificado pela FAO (órgão das Nações Unidas para alimentação e agricultura) e agora pela Unicef (idem para a infância). Essas mortes não entraram na equação de João Dória – quando nada, pelo fato de que essa equação não existe.

Apesar de todas as incógnitas colocadas – não por esse texto, mas pela OMS, pela medicina, pela epidemiologia, pela infectologia, enfim, pela ciência – tente usar o fator Dória de sobrevivência num exercício de hipótese. Imagine que 10% da população que o governador de São Paulo diz ter conseguido manter em casa não tivessem aderido ao confinamento. Quantas pessoas desse grupo teriam falecido?

Você não saberá, nem o Instituto Butantã, nem o Dória, nem o Nostradamus, porque dependerá de quantos eram do grupo de risco, de que faixas etárias, se estiveram em aglomerações ou se circularam responsavelmente, se tornaram-se ou não vetor de contágio assintomático para seus familiares, se uma vez infectados desenvolveram sintomas importantes ou não – e, caso tenham desenvolvido, se trataram adequadamente ou não – entre muitas outras variáveis.

Matemática de loteria não salva vidas. E se disser que salva, estará zombando delas.

Você não consegue nem saber quantas pessoas foram mortas pelo coronavírus, porque muitos morreram por outras doenças e portavam o coronavírus – mas, por uma razão obscura qualquer, essa separação estatística não chega a você. E se você pedir um rigor maior nas informações que cercam a pandemia – porque você quer conhecer direito o problema – será acusado de querer minimizar o problema. E de desprezar vidas. É o que João Dória faz todos os dias. Ele e seus companheiros de trancamento dogmático pelo Brasil afora.

Ou o Brasil toma coragem para refutar as bravatas devastadoras, ou apodrecerá no cativeiro até que os parasitas se considerem satisfeitos – isto é, nunca.

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