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Caetano Veloso foi transformado em entidade brasileira. Um “totem”, como definiu Paulo Francis no já clássico artigo “Caetano, pajé doce e maltrapilho”, publicado na Folha de São Paulo em 1983. A descrição que o saudoso jornalista faz do músico baiano é mais atual do que nunca. Caetano, escreveu Francis, é aquele que “fala de tudo com autoridade imediatamente consagrada pela imprensa, que é mais deslumbrada do que o público em face dele”. Continua assim, 37 anos depois.

Entrevistado por Pedro Bial, Caetano anunciou que se tornou menos “liberalóide” e passou a nutrir “respeito” pelas “experiências socialistas”. O fez em um tom autoindulgente para com a própria formação, como se essa mudança representasse o desenvolvimento de sua forma de pensar. Quase que uma evolução de espírito. Não surpreende. Em 2013 este senhor tentou usar sua imagem para emprestar legitimidade aos Black Blocs. Enquanto o grupo de extrema-esquerda tocava fogo nas ruas, chegando até mesmo a matar o cinegrafista Santiago Andrade com um rojão, o cantor posava para fotos com um pano preto na cara. Agora pretende modernizar o marxismo dando-lhe lirismo.

Segundo Caetano, quem “mudou sua cabeça” foi um tal de Jones Manoel, um comunista empedernido a quem não poupa elogios. Jones já escreveu um artigo declarando apoio a Coreia do Norte, país que chama carinhosamente de “Coreia Popular” e que considera “caricaturado” pelos malvados “monopólios de mídia” ocidentais.  Nem King Jung-Un deve ufanar seu regime a esse ponto. Mas não para por aí. Define a União Soviética como uma “democracia operária restringida e plebiscitária”.  Ele também tem uma descrição particular para os gulags, os horrendos campos de concentração comunistas espalhados pelo leste europeu. Em uma comparação com o sistema prisional Brasileiro, Jones os descreveu como semelhantes a “universidades”

Jones é divulgador da obra de Domenico Losurdo, escritor italiano que fez carreira tentando reconstruir a imagem do ditador Joseph Stalin através da propaganda disfarçada de historiografia revisionista. Caetano leu Jones e, por meio dele, acabou lendo Losurdo, com quem se impressionou muito. Aparentemente o cantor brasileiro adotou como guru intelectual um autor obscuro cujo trabalho de vida foi passar pano para um genocida.

Que se diga: até comunistas reconhecidos desprezam Losurdo e o apontam como responsável pela difusão do neo-stalinismo. O historiador Mário Maestri, insuspeito de direitismo, trata disso em seu livro “Domenico Losurdo: um farsante na terra dos papagaios”. Para Maestri “Losurdo falsifica a história com um principal e grande objetivo: justificar a ação de Stalin e do stalinismo. Propõe, portanto, que ‘O Pai dos Povos’ e seus meninos, vendo a União Soviética sendo atacada bestialmente pelo proposto movimento golpista e terrorista de Trotksy, se lançaram briosos na defesa do país, matando tantos quantos quantos acreditavam fossem necessário, na esquerda, no centro, na direita, literalmente aos borbotões”.

Ainda sobre Losurdo, Maestri o classifica como um autor de “literatura vulgar” que tem “olímpica despreocupação – e literal invencionice – com os fatos históricos”, e o stalinismo como a “exacerbação do assalto burocrático ao poder político na Rússia Soviética”.

O conhecimento sobre os crimes de Stalin não é novo. Remete ao 20° Congresso do Partido Comunista da União Soviética, ocasião em que o então secretário do Partido, Nikita Khrushchov denunciou os expurgos, a violência e a persecução metódica e industrial do antigo dirigente.

Antes, durante e depois de Stalin, a União Soviética foi totalitária, mas até mesmo para seus integrantes o período comandado por Stalin foi além de qualquer parâmetro de brutalidade e sanguinolência. No campo do assassinato em massa ele só é superado por Mao Tse Tung.

O Soviete Supremo russo instituiu a cultura do sadismo e do terror psicológico que levou a morte de inimigos, camaradas e todo aquele identificado como uma ameaça, por mais fiel que fosse. Fez com que milhões morressem de fome nos campos dos países satélites da URSS, promoveu deportações internas, com a Sibéria se tornando um cemitério para os “inimigos da Revolução”, que eram isolados do resto do mundo e condenados a morrer de frio, fome e doenças.

Além disso, ordenou intervenções brutais em países como a Polônia, a Ucrânia, a Criméia, a Mongólia, estabelecendo o fuzilamento sumário como política de extermínio. Losurdo, entretanto, acha que tudo isso é uma injustiça, que é difamação. É a esse pensador arejado e seu ideal de mundo que nosso totem dedica seu encantamento, e, talvez, até mesmo algumas notas de seu violão.

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A verdade é que Losurdo não teria a menor importância se não fosse ele a influenciar Caetano, celebridade brasileira que se propõe oposicionista ao governo de turno. O cantor, que exerce influência no debate público, tem apontado para o que classifica como o crescimento do fascismo do Brasil. O faz com a moral de quem se tornou discípulo de um stalinista. Bolsonaro, que vive a inflamar seus militantes contra o fantasma da esquerda, não poderia ficar mais satisfeito. Sua narrativa apenas se reforça com a adesão festiva de artistas ao comunismo.

Na entrevista para Bial, Caetano diz que graças a Losurdo é “outra pessoa” e que ele tem um livro “sobre as visões modernas da crítica às experiências socialistas”, que é muito inteligente. Não se sabe se entre as referidas experiências se incluía uma definição mais simpática do holodomor. O que se sabe é que a luta de classes, mesmo ao ritmo do tropicalismo, é só uma versão ensolarada da ditadura do proletariado.

Conteúdo editado por:Rodrigo Fernandes
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