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Foto Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
Foto Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Fernando Diniz trabalhou como nunca e foi demitido como sempre. Com aproveitamento pífio num Fluminense que não é poderoso, mas nem de longe tão fraco assim, o treinador festejado por nove entre dez especialistas mais uma vez se despediu de uma torcida sem convertê-la e fazer os milagres que anuncia.

Depois de aparecer com destaque no Audax paulista, teve a grande chance no moderno Athletico Paranaense. Ali, embora não tenha encontrado uma fileira de craques, contava com elenco razoável e estrutura de fazer inveja aos mais tradicionais. Bastava compreender o que tinha, as virtudes e limitações, sem esperar que os jogadores coubessem à força em seu espartilho teórico.

Em vão.

Mais do que um treinador de futebol, Fernando Diniz é o João Batista de uma fé: a de que o futebol está além da vulgaridade das vitórias; a de que a beleza importa tanto quanto o título; a de que o desempenho justifica os resultados – até mesmo os resultados ruins.

Espartanos e atenienses dividem-se no que me parece um falso dilema: o futebol de resultado versus o futebol bem jogado (para alguns, “bonito”, o que é ainda mais subjetivo). O involuntário culpado disso tudo é o gênio Pep Guardiola.

O catalão assombrou o mundo da bola com seu Barcelona invencível. Ganhou tudo o que pôde e, sobretudo, ganhou como quis. A sinergia entre suas ideias e os pés de Xavi, Iniesta, Messi e grande elenco, entre a proposta ambiciosa e a execução perfeita, foi dessas que poucas vezes se encontram num time de futebol.

Com Guardiola e sua noção horizontal de jogo – sua, por assim dizer, espacialização da disputa –, conceitos como posse de bola e troca de passes foram se transformando em dogmas de fazer inveja a Torquemadas. Questioná-los virou anátema. A técnica tomou o lugar da habilidade.

De repente, havia um novo vocabulário com o qual se falar do ludopédio. Havia, mais do que isso, uma nova epistemologia das quatro linhas. O drible perdeu o estatuto de outrora: no futebol contemporâneo, o drible inobjetivo de Garrincha, o drible mais-valia das pernas tortas, teria de ser domesticado; a bruta velocidade dos pontas, a finalização do centroavante trombador, viraram coisa de saudosistas.

Ocorre que, tal como Marx não era marxista e Cristo não era cristão, Guardiola não é guardiolista: o que adaptou – aperfeiçoou, para ser mais exato – da escola holandesa lhe serviu naquele momento, mas serviu porque trouxe a ele o que ele queria e quer sempre: vencer, vencer, vencer. Ele é viciado em resultados. O ponto é que achou o seu jeito de chegar aos resultados.

Mundo afora, treinadores de alto nível estudaram meios de neutralizar e opor um outro jogo ao jogo barcelonês. Das muralhas defensivas de Mourinho e Simeone ao heavy metal de Klopp, passando pelo estilo fluído de Zidane e pela excelência de Ancelotti, muito se fez e bem. Com isso, o jogo mudou e, como não poderia deixar de ser, Guardiola também mudou. Encontrou outras soluções e fez outras perguntas.

Só que no Brasil, dizia o Millôr, as ideologias chegam quando já estão velhinhas. Chegaram por aqui as ideias novas que já não são novas lá em terras de Espanha ou Inglaterra. Alguns dos valores continuam a valer, mas relidos, repensados, reavaliados. Num esporte que movimenta bilhões – de pessoas e de euros –, ganhar é preciso.

E é isso o que Fernando Diniz precisa de algum jeito entender: não há, na verdade, que se escolher entre a vitória e a beleza, entre o desempenho e o resultado. As duas coisas vêm juntas, ou podem vir. Num time ou noutro, numa ocasião ou noutra, o torcedor se contenta com a arte pela arte. Como na Copa de 82, por exemplo. Mas aos poucos o amor platônico pede mais do que ideias para as quais torcer.

De que adianta ficar com a bola durante oitenta por cento do tempo? De que adianta trocar setecentos passes? De que adianta desferir trinta chutes? Se a posse não subjuga, se o passe não evolui, se o chute não entra – o desempenho é questionável. Não se está dominando, passando, chutando direito. Um time que tem desempenho altíssimo todas as vezes, e todas as vezes perde, pode ter tudo – ideias, beleza, propostas –, menos desempenho altíssimo.

Gosto de tudo aquilo que Fernando Diniz pretende e torço para que, enfim, dê certo em algum time; quem sabe no meu? Mas é isso: gosto mais daquilo que ele propõe do que consegue executar. Gosto do que ele promete, mais do que aquilo que (não) cumpre. Gosto do Diniz em potência, mas me frustro com o Fernando em ato.

Afinal de contas, “gênios para si mesmo sonhando” há muitos e anônimos. Em mansardas que desconhecemos, sob tabuletas que ignoramos, há Pelés que fariam tantos mil gols; há Federers que venceriam outros vinte Grand Slams; há poetas que escreveriam Odisseias com ainda mais versos; há Guardiolas melhores do que o próprio Guardiola.

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