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Pelo jeito, Sérgio Moro parece ter conseguido estancar a sangria de sua reputação já não tão ilibada, depois de falar aos senadores. Soube empurrar a controvérsia jurídica para o campo que ora lhe é mais favorável, o da política, e aproveitou que as últimas revelações de Glenn Greenwald revelassem o que revelado estava. Além disso, a tentativa de controlar e manipular o material de interesse público (e produto de crime) deixa no ar intenções não exatamente – ou não apenas – jornalísticas; fede a interesse ideológico o modo como tem vindo à tona. Não julgo, constato. A não ser que escândalos mais escandalosos nos escandalizem, a tendência é que, conforme os dias passem, fique o dito pelo quase negado. Moro sai menor como juiz, maior como político. Isso, no Brasil, não é crise; é pré-candidatura.

Pois, admitamos ou não, o direito é uma cidadela cercada de política por todos os lados. É inglória – e por isso mesmo bela – a missão do jurista: defender sua ciência e sua prática, proteger de piratas e bárbaros a porção de terra-firme epistemológica que é o direito, conquanto a origem dessa ciência e dessa arte seja bastarda. A mãe do direito – tantas vezes mais madrasta que mãe – é a própria política. O jurista defende o estrito cumprimento de constituições e leis, de processos e procedimentos – este é seu papel. No entanto, as constituições e as leis, os processos e os procedimentos são paridos pela política. O legislador é o pai (nem sempre exemplar e cumpridor de deveres). Quanto ao jurista, defenderá a lei se for esta, defenderá se for aquela. Sendo válidas, legítimas, constitucionais – ele as defenderá. Mas elas não são causas de si mesmas: são consequências de um processo que é, feliz ou infelizmente, político. Bastardo. Muitas vezes feio e com má formação.

O porquê desse arrazoado, perguntará o leitor. Porque em períodos de crises morais, políticas, jurídicas e institucionais como este em que estamos metidos, importa notar que os erros vêm de longe, têm origens mais remotas, são reiterados e defendidos por outros personagens e partidos. A parcialidade não começa nem termina em Sérgio Moro; as suspeitas não têm origem na sua hipotética suspeição; a finta no devido processo não foi improvisada em Curitiba. A conveniência de se respeitar estas regras e não aquelas, de se discutir estas questões e não aquelas, nada disso foi inaugurado com a Lava Jato. Se a Lava Jato inspirou justiceiros, se a força-tarefa transbordou e inundou plantações que não eram suas, tudo foi plantado e gestado há muito tempo. Pelo próprio PT, por exemplo, quando muitas vezes quis usar a sanha persecutória do Ministério Público a seu favor, quando ousou forjar dossiês e pautar a imprensa contra adversários políticos. Pelo STF, semana após semana, escolhendo no calor da hora o que lhe parecia funcional ou não, ético ou não, constitucional ou não, parcial ou não. Organizando a agenda conforme a política e reorganizando a política de acordo com a agenda. Quem hoje acusa e aponta em uns a parcialidade, fez uso e abuso dela quando interessava a outros. Todos pecaram e estão destituídos da glória.

Convém lembrar a facilidade com que a Suprema Corte tem usurpado as funções do Legislativo para fazer um direito que se pretende ativista, progressista, iluminista, tolerante, politicamente correto, politicamente apressado, politicamente orientado; quando, na verdade, o STF não deveria fazer, mas se contentar em dizer, e dizer bem, o direito. Ajuda recordar que não temos uma Corte, mas onze cortes, onze ilhas de vaidade que, a depender da conjunção astral, com a sazonalidade dos eclipses, até calham de chegar a algum consenso. Onze juízes que antecipam votos e atrasam julgamentos, que teatralizam justificativas, que não admitem casos de suspeição quando são os suspeitos, que fazem alarde das próprias orientações a qualquer estagiário de jornalismo que lhes apareça à frente, que pedem vistas a perder de vista, que se sentam sobre os processos e fazem vista grossa. É útil rememorar o estapafúrdio arranjo em que o impeachment de Dilma Rousseff se deu, garantindo a manutenção dos seus direitos políticos, como se fora prêmio de consolação e regra de etiqueta. Cumpramos aqui o que descumpriremos acolá. O artigo que destitui um presidente de suas funções também lhe tira os direitos políticos. Está escrito, tal e qual. Mas não: o artigo foi cortado, cindido, interpretado, suspenso no limite da vírgula, e os efeitos do impeachment não se aplicaram à respectiva causa. Apenas porque sim. Apenas por ser politicamente conveniente, ainda que juridicamente conivente. Somente porque a Corte se omitiu de dizer o direito que havia e deixou à política escolher o que preferia. Dilma pôde se candidatar porque o STF quis deixar pra lá a revisão de um erro cometido; dois erros, portanto. Ninguém (à esquerda dos interesses eleitorais) que hoje reclama tanto de Moro reclamou de Lewandowski. Ninguém que hoje denuncia as distorções contra Lula denunciou aquelas contra Cunha, Temer et caterva. Por fim, e a lista é interminável, registremos que a política se imiscuiu também no processo do Mensalão, quando toda a cúpula do PT foi presa ou processada – menos o desavisado do Lula. A democracia foi loteada sob seu governo, o Congresso foi privatizado sob sua barba, líderes históricos foram responsabilizados sob sua batuta – menos o distraído do Lula. Mahatma Lula. Aquele que, sendo a mais honesta alma, o mais festejado líder, nunca soube de nada, quando saber não interessava aos seus propósitos. Mensalão? Deixemos isso pra lá. Quando o povo não quer, o direito não obriga. Apenas porque sim. Apenas porque soava politicamente astuto deixar o sindicalista sangrar aos poucos, desidratando ao sol de sua popularidade. Ocorre que o sangramento parou, a ferida fechou, a popularidade saiu bronzeada, Lula foi reeleito, dobrou a aposta e terminou em Lava Jato.

Não, não estou defendendo o assédio da política e da conveniência política ao direito; nem que se ignore o direito em proveito da política ou da moral. Defendo o contrário. Mas defendo o contrário mesmo, para todos, desde sempre, com rigor igual, não seletivo. Estou reconhecendo que sim, o assédio acontece, e não, a conveniência não é de hoje. E reconheço mais: as vítimas de hoje são os algozes de ontem. Os alvos do justiçamento foram os primeiros justiceiros. Os agora entusiastas do devido processo legal são os mesmos que desconheciam legalidade, processo, direito, funções. Não chegamos por acaso aonde chegamos: os que clamam por garantias constitucionais não assinaram a Constituição que as garante, nunca foram devotos convictos da democracia, nem faziam juras de amor à liberdade de imprensa. O direito brasileiro tem sofrido, tem sido alvejado, tem sido achincalhado, é verdade – mas por todos, há muito tempo, de muitas maneiras diferentes. A deturpação do direito no Brasil é obra antiga, de feitura coletiva, como uma catedral do erro, work in progress: repleta de moralistas à direita e à esquerda, moralistas de ocasião, como todo moralista sabe ser. Quem hoje é caça teve muitos dias, muitos anos de caçador. De repente, não mais que de repente, querem restaurar o fino do garantismo em meio ao grosso da corrupção. Poderiam tê-lo feito antes, mas não interessava. Poderiam ter restaurado antes, mas não encontraram os instrumentos. Agora se interessam, agora querem restaurar. De tudo fica a prece para que, em meio aos destroços institucionais em que estamos pisando, encontremos alguma bússola que nos oriente a um direito a salvo da política, e a uma política a salvo dos bandidos de sempre e dos santinhos de undécima hora. Não se pode fazer direito o direito quando o estrito cumprimento só interessa a uns, num certo momento, não a outros, noutros momentos. Ou aceitamos o direito que interessa a todos, a todo o tempo, ou abramos as fronteiras a piratas e bárbaros de uma vez.

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