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“No fim das contas, toda família é um Estado” – Óssip Mandelstam

por Nicolau Olivieri

O homem se define, socialmente, pela relação que estabelece com as associações a que pertence, por escolha ou imposição: família, comunidade, município, vila, bairro, cidade-estado, Estado Nacional, comunidades de Estados Nacionais, União Européia, ONU, Mercosul etc. Também igrejas, seitas, ordens religiosas, corporações, empresas, clubes, partidos políticos, sociedades secretas, sociedades profissionais, ONGs e até grupos de zap etc etc etc.

De cada uma dessas associações de que fazemos parte brotam normas de conduta que nos impõem (ou sugerem) determinado comportamento. Na verdade, as próprias associações podem ser definidas como uma pluralidade de seres humanos que reconhecem certas regras de conduta como impositivas ou desejáveis. A sociedade é permeada toda ela por normas assim, oriundas das estruturas internas dessas várias e heterogêneas interações humanas. Todo homem se submete – e na grande maioria das vezes de forma espontânea – a uma infinidade de normas de conduta, e portanto a poderes estabelecidos de várias origens distintas.

O Estado, a rigor, é somente uma dessas ordens que, para ser poético, digamos, exalam normas de conduta, no caso normas legais estatais, administradas pelos tribunais estatais, enquanto as outras associações exalam e impõem outras normas, não menos observáveis e não menos punitivas que aquelas, como por exemplo normas morais, obrigações religiosas, éticas, costumes, valores como a honra e até mesmo a etiqueta e a moda.

Sem entrar na discussão, há até quem acredite – como eu, aliás – que entre as normas de conduta estatais e não-estatais não há qualquer diferença real de natureza.

De todo modo, essas associações em que estamos mais ou menos inseridos, todas elas exercem um poder punitivo, mais ou menos eficiente, não raro através de procedimentos judiciais ou proto-judiciais, inclusive com acusação, defesa, instrução probatória e até sistema de recursos e execuções.

A punição máxima aplicada pelo Estado – prender o criminoso – nem sempre é a mais grave de todas, se comparada, por exemplo, com a punição de alguém ter negado o direito a passar a eternidade no Paraíso, quando a Igreja Católica excomunga um seu membro. Ou ainda se comparada à pena de morte ou aos flagelos corporais eventualmente aplicados pelas associações mafiosas, no caso de descumprimento das suas normas de conduta.

A nota importante é que esse monopólio da lei estatal, como hoje o conhecemos, isto é, a “ordem jurídica”, caracterizada pela preponderância impositiva das leis codificadas em relação às demais normas de conduta, é um fato histórico decorrente de uma determinada situação social, mas não é nem de longe uma regra geral. Antes da vitória do Estado Absoluto, a lei do Rei disputava jurisdição com as demais normas de conduta, como as religiosas, familiares, comunitárias.

Ocorre que é da relação entre as várias organizações e associações sociais que surgemo os parâmetros e as normas de conduta; é daí que nasce o dever da obediência das normas estatais. Se não há uma certa “colaboração” entre as diversas associações, e se as normas de conduta não impõem a obediência das normas estatais, as leis cairão no vazio, e dependerão exclusivamente da violência impositiva dos agentes do Estado.

Esse é um problema muito mal compreendido por liberais que, ao contrário do que se poderia esperar, sem perceber defendem um aumento de poder punitivo do Estado. Não são poucos aqueles que sonham ao mesmo tempo com a privatização da Petrobras e com a prisão imediata após sentença de primeira instância.

Do ponto de vista liberal, os vários poderes exercidos na sociedade pelos grupos, associações e organizações, ou o que sobrou deles, devem ser ferozmente defendidos contra a intervenção do Estado.

É evidente que o papel do Estado na repressão ao crime, ou na pacificação das disputas, é fundamental, inclusive do ponto de vista da dissuasão.

Porém, o que faz a sociedade ser pacífica não é só a força da punição estatal. Não é prender antes ou depois da sentença de segunda instância. A propósito, seria interessante pesquisar se a decisão do STF a respeito dessa questão teria implicado um aumento significativo do número de crimes – como alguns alertavam. Provavelmente, não.

O que faz a sociedade ser violenta ou não são os próprios agentes sociais, que aceitam ou repelem as normas de conduta que têm origem na interação entre indivíduos e grupos.

Nicolau Olivieri é sócio na Leal Cotrim Jansen Advogados. Membro do Instituto de Advogados Brasileiros.

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