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por Nicolau Olivieri

Em 21 de janeiro de 2020 foi publicada sentença na qual o juiz do trabalho Jeronimo Azambuja Franco Neto, da 18ª Vara do Trabalho de SP, referiu-se nominalmente a membros do Governo Federal como representantes de uma “merdocracia neoliberal neofascista”. A ação, obviamente, não discutia qualidades ou deméritos do Governo Federal, mas se eram ou não devidas à autora determinadas diferenças salariais – algo muito mais... prosaico.

Um mês antes, em 18 de dezembro do ano passado, foi publicado acórdão da 17ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, no qual foi confirmada a justa causa aplicada à supervisora de uma empresa privada, que teria manifestado no ambiente de trabalho opiniões discriminatórias contra negros, índios e homossexuais.

Ambos os casos tiveram, como era de se esperar, grande repercussão nas redes sociais. Eu, de minha parte, fiquei me perguntando quais seriam as consequências se fosse o contrário: se, por exemplo, o juiz tivesse dito que homossexuais, negros ou índios se vitimizam, e se a supervisora tivesse criticado a “merdocracia neoliberal”. Mas esse não é o problema.

É claro que uma sentença é um pronunciamento, ou um discurso, que se dá num espaço bastante diferente do ambiente de trabalho de uma empresa privada, onde a supervisora atuava. O processo judicial e a empresa privada são habitats com protocolos de conduta distintos, ou, por assim dizer, éticas distintas, ao menos até certo ponto.

Mas o que espanta nos dois casos, feitas as distinções necessárias, é como o juiz e a supervisora não conseguiram entender o limite ético do espaço em que estavam autorizados a se manifestar.

Ora, no processo judicial, para o caso do juiz; e no ambiente da empresa, no que importa à supervisora, a comunicação deve ser adequada à finalidade ética do trabalho que os dois aceitaram livremente realizar. Compreender isso deveria ser um pressuposto para o exercício de quaisquer funções: de juiz a empregada de empresa privada.

Aliás, em relação ao juiz, a lei impõe o que lhe compete falar na sentença. O Código de Processo Civil, no art. 489, determina que a sentença deve conter um relatório, os fundamentos e a conclusão. Em relação à supervisora, a imposição quanto ao que deve ser feito não é da lei, mas do contrato de trabalho que define as obrigações, ou ainda das normas internas da empresa, caso existam. A lei, no caso do contrato de trabalho, não dispõe positivamente o que deve ser feito, mas impõe negativamente o que não pode ser feito: são as hipóteses de justa causa, tais como previstas no art. 482 da CLT.

Não que o juiz e a supervisora não possam, em tese, ter lá a opinião que quiserem ter sobre qualquer tema (ressalvando que não entro no mérito dessas opiniões, nem mesmo quanto a uma eventual situação de racismo, discriminação etc). Eles podem, claro. Mas não podem nem deveriam usar o espaço privilegiado de que dispõem para emitir essas opiniões à margem da finalidade ética desse mesmo espaço.

Faltou, tanto ao juiz quanto à supervisora, compreender o que é legitimamente adequado à finalidade do trabalho, e o que é opinião pessoal arredia àquele ambiente. Ou seja, faltou perceber a dimensão objetiva do locus discursivo, bem como a dimensão subjetiva do próprio conteúdo do que foi dito, desencaixado da finalidade e do espaço que se têm à disposição.

Porque, em relação ao primeiro aspecto, a finalidade da sentença não é agredir ou hostilizar as partes, os advogados, o Governo (que, aliás, foi democraticamente eleito) ou quem quer que seja. Da mesma forma, a finalidade das orientações de uma supervisora, proferidas num ambiente de trabalho, não é tampouco espalhar suas opiniões, sejam quais forem, sobre temas sensíveis – que podem inclusive afetar diretamente seus subordinados.

Em relação ao outro aspecto, quanto ao conteúdo do discurso, a “merdocracia neoliberal” era rigorosamente irrelevante para o deslinde da controvérsia judicial que o juiz julgou, assim como as questões raciais e sexuais mencionadas pela supervisora aos seus subordinados não tinham importância alguma para a finalidade econômico-social da empresa, e do próprio contrato de trabalho da supervisora.

E ainda bem que é assim. Imagine se porventura a causa a ser julgada por um juiz dependesse da sua opinião sobre se o Governo Federal é ou não composto por “merdocratas”, ou calcule só se as vendas de qualquer empresa dependessem das ponderações sociológicas dos vendedores acerca da qualidade dos votos de índios, homossexuais e negros.

Compreender a adequação do conteúdo do discurso ao espaço em que se dá esse, e adequar uma coisa à outra, não é censura, nem intimidação, tampouco constrangimento ideológico. Abster-se de xingar Ministros do Governo Federal, numa sentença judicial trabalhista, e abster-se de criticar negros, índios e homossexuais no ambiente de trabalho, é somente respeitar a finalidade ética do ambiente no qual juiz e supervisora podem (e devem) se manifestar.

É bom senso. E sinal de boa educação.

Nicolau Olivieri é sócio na Leal Cotrim Jansen Advogados. Membro do Instituto de Advogados Brasileiros.

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