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A pracinha defronte sinaliza, dia após dia, o declínio da civilização ocidental e o que mais estiver ao alcance da vista. Não por culpa da pracinha, que não tem nada com isso, basta a si mesma sendo pracinha, mas de quem a frequenta.

Saio com o Paulo Francis para o matinal passeio e a história se repete liturgicamente. Francis ergue a perninha, faz seu xixi, cheira a grama sempre muito crescida, fuça qualquer coisa na terra. Quanto a mim, ergo a perninha, faço meu xixi, cheiro a grama sempre muito crescida, fuço qualquer coisa na terra.

Minto.

Francis faz o que faz, eu faço o que faço: recolho os montes de lixo que os rapazes e as moças de família, aspas, esqueceram na noite anterior. Pela quantidade industrial de consumo ali, não são dos mais pobres. Não têm a pobreza para desculpar a falta de modos.

Tenho o hábito de dormir tarde da noite, tantas vezes já de madrugada, de sorte que os vejo daqui do alto do prédio. Estacionam seus carros, estacionam suas bundas, estacionam sua deseducação – e falam e falam e falam.

Se eu fosse um sniper eu seria um sniper e é melhor nem pensar no que eu faria se fosse um sniper.

Falam e são barulhentos. Falam e são famintos.

Consomem fast food com o entusiasmo de americanos em dia de Super Bowl. Consomem fast food depois de consumir estupefacientes, álcool e o mais só Deus sabe. Largam tudo o que sobra e não seja comestível sobre a grama, o banco, a calçada, o topo da árvore, a torre da igreja. Vão-se embora, porque não são daqui, nem se importam com a geografia. À maneira dos alienígenas, invadem planetas alheios, fazem círculos na plantação, tiram tudo o que há para tirar e partem para o próximo. São como nômades do Mad Max. São como vereadores depois da eleição.

O fato é que existe uma lixeira a distância segura de aproximadamente dois metros de onde se empoleiram: sem obstáculos, nem mares revoltos, nem feras ferozes entre o banco e a lixeira. É só andar dois metros e depositar ali as embalagens e o peso da consciência. Mas quem há de perder tempo com lixeiras? Quem há de perder tempo com imperativos morais? Lixeiras não têm wif fi; atitudes decentes, quando anônimas, não têm serventia.

Resignado, aprendi a sair munido com uma sacola sobressalente só para recolher os indícios de que a democracia não dará certo nunca, não dará certo tão cedo, não dará certo pelos próximos quinhentos anos em lugares como o Brasil. Junto as ruínas da falta de modos e me lembro de que eles votam neste, naquele, na direita, na esquerda. Participam de qualquer coisa a que vagamente damos o nome de “política”.

Roma terá sucumbido a tipos como esses.

Então me lembro, com alguma satisfação, que fast food em demasia tende a entupir artérias, que comida processada tente a acelerar o aparecimento de cânceres, que maconha tende a corroer os neurônios porventura sobreviventes. Confundo lembrança e desejo, desejo e promessa, promessa e pacto com o próprio demônio.

Divago.

Prossigo no passeio com o Paulo Francis. Sei que amanhã vou encontrar tudo tal e qual, como num rito, um aviso de que as coisas são assim, poderiam ser diferentes, mas são assim e continuarão assim. Temos de ter paciência, pois bárbaros não faltam.

Roma não foi construída – nem destruída – num único dia.

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