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Philippe Petit entre as torres do World Trade Center
Philippe Petit entre as torres do World Trade Center| Foto:

O equilibrista francês Philippe Petit deve a uma prosaica inflamação dentária o maior feito de sua vida – e um dos feitos mais extraordinários de qualquer vida. Foi aos dezessete anos que, na sala de espera do consultório, conheceu numa revista o projeto que se transformaria, anos depois, nas torres gêmeas do World Trade Center e no crime artístico mais famoso do século XX. Saiu antes mesmo de ser atendido, com o abcesso nos dentes e a obsessão na alma: ele atravessaria o espaço vazio entre os edifícios quando fossem inaugurados, sem proteção alguma, a uma altura de mais de quatrocentos metros.

Dada a ilegalidade – e o absurdo – da empreitada, juntou um grupo de amigos para realizá-la. Ao longo de seis anos de preparações e contratempos, desânimos e loucuras, visitou o WTC mais de uma vez, aprendeu seu funcionamento, decorou seus horários, contabilizou suas rotinas, construiu maquetes, simulou seus passos, treinou suas artes, inventou soluções, falsificou documentos, fez amizades inesperadas e cumplicidades providenciais para, no dia 7 de agosto de 1974, ao amanhecer, dar o primeiro passo, depois o segundo, naquele cabo estendido entre um prédio e outro, sobre a cidade de Nova York, na imensidão do azul.

Durante 45 minutos, o rapaz de vinte e quatro anos foi e voltou, sentou-se, deitou-se como se deitasse em nada, ajoelhou-se e saudou toda a gente que lá de baixo olhava para o céu, ou saudou o céu que lá de cima olhava toda a gente. Os policiais que logo chegaram ao terraço e pediam que ele se entregasse não puderam esconder o deslumbramento. Mesmerizado, um deles disse que “algo assim não se vê duas vezes na vida”.

Terminado o espetáculo, o artista francês foi detido e saudado como herói. Trocou o processo que lhe moveu a cidade por uma apresentação acrobática às crianças. Foi entrevistado por centenas de jornalistas e achou graça da insistente (e muito americana) pergunta: “Por que você fez isso?!” Ora, fez porque fez. Fez porque conseguiu fazer. Não é preciso razão outra senão aquela: ter atravessado o vão entre as torres mais altas do mundo. Fez porque, como dizia o poeta Ferreira Gullar, “a arte existe porque a vida não basta”.

A jornada de Philippe Petit pode ser conhecida no premiado documentário de 2008, Man on Wire (O Equilibrista), dirigido por James Marsh. A beleza gratuita do gesto responde satisfatoriamente a quem pergunta, e se pergunta: “Por quê?” Eu confesso que sempre tive má vontade com os esportes e esportistas radicais. Paraquedistas, mergulhadores, alpinistas e todos quantos teimam em desafiar limites e perigos. A vida é tão difícil, a morte é tão fácil – não precisamos antecipar ou facilitar as coisas. Mas reconheço – agradecido – que Petit me fez entender o sentido da frase de Gullar: a vida não basta. E nem sempre há um porquê, além da própria beleza e de sua possibilidade.

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