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Reprodução de cena do episódio “Queda livre”, do seriado Black Mirror (Netflix)
Reprodução de cena do episódio “Queda livre”, do seriado Black Mirror (Netflix)| Foto:

Nasci em 1980. Havia comunistas de verdade comendo criancinhas, o terrorismo era um bebezinho, a ditadura militar terminava e as telecomunicações no Brasil eram coisa de Isaac Asimov. Dou graças a Deus que minha infância e minha adolescência foram vividas na pré-história do universo digital, nas catacumbas do mundo analógico, pouco depois da descoberta do fogo. As besteiras que fiz e disse quando tinha mais hormônios que neurônios ficaram onde deveriam ficar: no esquecimento.

Hoje, tudo é visto e ouvido em tempo real, mas pior: registrado e publicado para sempre. Estamos condenados (ou nos condenando) à construção e à deformação da própria biografia diante do distinto público, que por sua vez reage ao que somos ou deixamos de ser, e também ele nos constrói e nos deforma incessantemente. E assim todos fazem com todos, sem piedade nenhuma. O pior de nós é o melhor para os outros.

Num dos programas dos canais Fox Sports Brasil, Felippe Facincani ridicularizou um certo telespectador porque este apareceu comendo arroz com ovo. Eis o crime. Eis o pecado. Eis o Caim. O comentarista disse, com evidente exagero, que arroz com ovo é comida que nem seu cachorro come.

A primeira coisa que me vem à cabeça é o tipo de interação estabelecida nessa voragem midiática: num programa sobre futebol existe a possibilidade de um telespectador aparecer comendo arroz com ovo – e poderia ser ovas de esturjão, pouco importa –, e essa refeição provocar o comentário dum comentarista de futebol. Pois é. Existe a possibilidade, porque tudo se enfia em tudo quando se trata de audiência.

Como não poderia deixar de ser, “a web reagiu”. Facincani foi tido como preconceituoso, estúpido, elitista, racista, niilista, nietzschiano, petista, lobisomem: qualquer adjetivo que traduzisse o mais perfeito repúdio do público sempre tão distinto e a salvo de impurezas. O desgraçado pediu desculpas, tentou se explicar, rasgou as vestes, garantiu ser tão livre de preconceitos quanto um taxi, mas nada adiantou. Na gíria das últimas doze horas, está “cancelado”.

Longe de mim defender Facincani; talvez ele seja mesmo tudo isso e ainda mais. Achei de mau gosto a fala porque acho de gosto bom o arroz com ovo. Mas, vejam só, eu não sou capaz de comer pastel em pastelaria chinesa. Dispenso explicações ou justificativas, o leitor que as imagine. Sou cheio de fobias, frescuras e suscetibilidades para comer. Tenho certa condição que me impede de tratar a comida como o divertimento que é para muitos. Sou dado a nojos e a caras feias diante do prato.

Não me orgulho disso, é mesmo constrangedor. Mas o ponto é: sou o que sou. Esta não é minha porção mais bonita, mais apresentável, mas é o que é. Existe. Sou pecador, sou irritante, sou desagradável, sou cheio de coisas, sou humano e um pouquinho humano demais. Que posso fazer? Tento melhorar, falho miseravelmente, tento de novo. Não represento que sou melhor em ato do que pretendo ser em potência.

Quero ter uma segunda, uma terceira, uma quarta e talvez uma quinta chance para fazer direitinho da próxima vez. Quero que saibam que santo não serei. Como o senhor, como a senhora e qualquer um de nós. Que me perdoem, que nos perdoem, setenta vezes sete vezes, pois quem hoje acusa amanhã será acusado. Tão feio quanto o preconceito, real ou suposto, deste comentarista ou daquele escritor, é o furor persecutório e escandalizado de quem sinaliza todas as virtudes que não tem.

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