• Carregando...
Pixabay
Pixabay| Foto:

por Gilberto Morbach

No dia 07 de janeiro, neste mesmo espaço, Gustavo Nogy discutiu “[a] retórica da guerra”; a retórica da guerra que não o foi, após a ação militar dos Estados Unidos em território iraquiano que, não poderia ser diferente, abalou o cenário geopolítico. Muito oportunamente, Nogy lembrou que “em meio aos tiranos, burocratas e drones, deste ou daquele país, há gente de verdade que não têm nada que ver com a geopolítica de mentira. Numa guerra, declarada ou subentendida, os que sofrem não são os que a iniciam”.

Eu não poderia concordar mais. Sobre isso, nada mais teria a acrescentar. Tampouco teria a acrescentar sobre os aspectos geopolíticos e as repercussões no âmbito da política internacional. Por honestidade intelectual e respeito aos leitores e a meus próprios limites, deixo essa parte àqueles que a conhecem muito melhor do que eu. Enquanto pesquisador do direito, preocupado em naturalizar a discussão jurídica no debate público, quero aqui apenas tecer algumas breves observações sobre os contornos jurídicos da ação militar que matou Soleimani. O direito, afinal, é só uma prática social como muitas outras — mas é a prática que ainda permite um mínimo de coordenação social e coexistência pacífica entre toda aquela “gente de verdade que não têm nada que ver com a geopolítica de mentira”.

Primeiro, comecemos nossa análise pela ótica das leis domésticas, pela perspectiva do próprio ordenamento jurídico dos Estados Unidos. No direito norte-americano, há três fundamentos possíveis para uma ação militar tal como o ataque ordenado por Donald Trump: (a) A Autorização para o Uso de Força Militar de 2001 [AUMF], (b) A Autorização para o Uso de Força Militar contra o Iraque de 2002 [Iraq Resolution], e (c) a prerrogativa constitucional do Chefe do Executivo.

Sob essa perspectiva doméstica, a ação tem um amparo jurídico frágil. A autorização nos termos da AUMF de 2001 exige, em seu próprio texto, algum nexo com os ataques terroristas do 11/09/2001. A Resolução sobre o Iraque de 2002, por sua vez, faz expressa menção a ameaças vindas do, e ataques contra o, Iraque. Embora a ação que matou Soleimani tenha sido em território iraquiano, a ameaça não veio do Iraque. Finalmente, com relação à prerrogativa constitucional do Presidente, é fato que, pelo Artigo II, Seção 02, da Constituição dos Estados Unidos, o Presidente é o Comandante em Chefe das Forças Armadas; dito isso, a tradição constitucional impõe que um ataque ordenado unilateralmente pelo Presidente seja cabível apenas em hipóteses bastante limitadas, de ameaça iminente, nas quais não há tempo para a devida deliberação e discussão no Congresso. Não é sem razão que Barack Obama sempre relutou em invocar essa prerrogativa.

Agora, com relação ao direito internacional. Há que se observar, antes de tudo, que a presença norte-americana no Iraque é baseada no consentimento do Estado Iraquiano. E o Iraque, por sua vez, deixou desde logo muito claro que não consentiu o ataque que matou Soleimani. Na esfera jurídico-internacional, portanto, o que resta a ser discutido — e, penso, sustentado pelo Departamento de Defesa, que desde o início alegou e tem alegado legítima defesa (inclusive perante as Nações Unidas) — é se o consentimento iraquiano sobre a presença de tropas dos Estados Unidos em seu território autorizaria, por si só, o uso de força militar sob alegações de legítima e necessária defesa de indivíduos que, a serviço do país, estariam sob risco iminente. Pessoalmente, penso que a alegação é, em abstrato, bastante razoável. Em abstrato. Resta seguir acompanhando o desenrolar da história, as justificações apresentadas e, sobretudo, a robustez das alegações baseadas em inteligência por parte dos EUA que demonstre e aponte à legítima defesa.

Em síntese: do ponto de vista legal, doméstico e internacional, o amparo jurídico à ação norte-americana que matou Soleimani é bastante frágil. Resta saber, se é que o saberemos um dia, se os Estados Unidos tinham elementos de inteligência que indicassem a urgência da ação. É possível que sim, de modo que a fragilidade dos fundamentos jurídicos, por si só, não aponta já de pronto e necessariamente à ilegitimidade da ação. Por outro lado, as alegações do Departamento de Defesa, por si sós, não apontam já de pronto e necessariamente à sua legitimidade. Em se tratando de figuras como Donald Trump e Qasem Soleimani, eu não duvido de nada; pela primeira vez em muito tempo, discutir os complexos aspectos jurídicos de um complexo um país de common law e do complexo direito internacional parece ser uma tarefa muito menos complexa.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]