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por Igor Sabino

Após quase dois anos de governo, ainda são incertos os rumos da política externa brasileira sob Bolsonaro. Não se tem uma estratégia clara de inserção internacional e o país isola-se cada vez mais nos organismos multilaterais. As únicas características reconhecíveis são um forte apoio aos EUA e a Israel e o combate ao chamado “globalismo”. Isso ficou claro ontem (19), em uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em que o Brasil, juntamente com os EUA e mais sete países, se opôs a uma Resolução aprovada com 22 votos favoráveis – incluindo todos os países sul-americanos – e 17 abstenções.

O documento, contrário aos interesses israelenses, busca reconhecer a validade do Direito Internacional nos territórios palestinos e pede que crimes cometidos nos mesmos sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional. A proposta é criticada por Israel porque é entendida como mais uma forma de oposição ao Estado judeu na comunidade internacional. Percepção que, convenhamos, não é sem motivos. Afinal, alguns dos membros atuais do Conselho de Direitos Humanos incluem Paquistão, Somália, Nigéria, Cuba, China, Venezuela, Sudão e Líbia. Isso para não mencionar a Arábia Saudita, o Egito e o Catar, que, apesar da aproximação fria com Israel, não são grandes exemplos de proteção aos Direitos Humanos. Pelo contrário, a sensação, no geral, é que o lobo está tomando conta do galinheiro. Isso, no entanto, não fica restrito apenas ao Conselho de Direitos Humanos.

Em 2019, foram aprovadas na 74º Assembleia Geral da ONU 18 resoluções contra Israel, e apenas 7 contra o resto do mundo, sendo uma contra a Coreia do Norte, uma contra o Irã, uma contra o Myanmar, uma contra a Síria, duas contra a Rússia e uma contra os EUA (em virtude do embargo cubano). Com exceção deste último, todos os demais países mencionados são conhecidos internacionalmente por suas violações contra os direitos humanos, que vão desde o uso de armas químicas contra civis até a repressão das liberdades civis individuais e a perseguição a minorias religiosas e membros da comunidade LGBT.

Até mesmo o ex-Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, reconheceu, em 2016, que a organização tinha um foco desproporcional em Israel. Fenômeno que, embora tenha se intensificado nos últimos anos, não é algo recente. Em novembro de 1975, por exemplo, os membros da Assembleia Geral adotaram a famigerada Resolução 3379, que equipara o sionismo – movimento de autodeterminação do povo judeu – com o racismo. O documento teve 72 votos a favor – incluindo o Brasil – e 35 contra, com 32 abstenções, sendo depois anulada pela Resolução 4686, em 1991, com 111 votos a favor, 25 contra e 13 abstenções. Como demonstram Jed Babbin e Hebert Lodon no livro A Nova Guerra Contra Israel, o lobby anti-Israel na ONU é forte e antigo. Isso pode ser percebido ainda nos primeiros anos de atuação da organização. Um exemplo claro é a própria Resolução 181, que levou à partilha da Palestina e à criação de Israel. A votação foi tão acirrada que o voto brasileiro, na época, também alinhado aos EUA, foi decisivo.

É devido a questões como essas que, nos últimos dias, muitos movimentos de direita têm declarado uma verdadeira guerra à ONU e a outras organizações internacionais, acusando-as de serem promotoras do “globalismo”. Na visão de ideólogos governistas como Olavo de Carvalho, existe uma conspiração mundial para acabar com a soberania nacional dos países e criar uma nova ordem mundial baseada em governo global sem fronteiras. Esse argumento é fundamentado também nos escritos e discursos de alguns acadêmicos e outras elites liberais que, de fato, defendem configurações sociais assim. Tudo isso ganhou ainda mais força nas últimas semanas devido aos erros da OMS no combate à COVID-19 e à clara intervenção do governo chinês no organismo, pondo ainda mais em xeque a credibilidade das organizações internacionais.

No Brasil, por causa da existência de um movimento direitista que se afirma como “conservador nos costumes e liberal na economia”, existe um esforço de muitos de tentar fazer uma distinção entre o globalismo enquanto uma ideologia de esquerda e a globalização, enquanto um fenômeno comercial desejável. Nos EUA, porém, essa distinção não existe. O cientista político Colin Dueck, da George Mason University, defende que uma característica desse novo movimento conservador anti-globalista, que ele chama de “novos tradicionalistas”, se opõem, na verdade, à própria globalização, e oferecem como alternativa uma nova configuração política baseada em Estados-nações, com um novo conceito de nacionalismo. Dentre eles, destaca-se o israelense Yoram Hazony, com sua obra A Virtude do Nacionalismo.

Paul D. Miller, professor de Relações Internacionais na Georgetown University, também não vê diferenças entre os termos e afirma que aqueles que se opõem ao globalismo se opõem na verdade à própria ordem liberal que durante anos foi promovida pelos EUA. O fato é que o cenário político internacional contemporâneo não é mais o mesmo surgido após o término da Segunda Guerra Mundial. Logo, é necessário sim ouvir as críticas e preocupações legítimas que têm sido feitas por muitos conservadores. O perigo, porém, é se deixar levar por questões meramente ideológicas e adotar discursos conspiratórios, como tem ocorrido no Brasil.

Nos EUA, os termos do debate já estão claros. De um lado, temos tradicionalistas como Hazony e Shorab Ahmari, comentarista político de origem iraniana, defendendo um nacionalismo antiliberal como solução para os problemas domésticos e internacionais do Ocidente, sobretudo dos EUA e de Israel. Do outro, conservadores que ainda enxergam a importância do liberalismo clássico, como o Miller e o escritor David French, o qual tem protagonizado, desde o ano passado, uma importante discussão com Ahmari sobre o futuro do conservadorismo.

Enquanto conservador e sionista, tomo partido por essa segunda posição. Apesar de enxergar os equívocos de organizações internacionais como a ONU, e de reconhecer o valor de algumas formas de nacionalismo, creio que a globalização é um fato dado, uma realidade contra a qual não temos como argumentar ou lutar contra. Nenhum país hoje consegue viver isolado do resto do mundo. A crise de refugiados em 2015 e, mais recentemente, a pandemia de COVID-19 são provas disso. Há questões cujos impactos não respeitam fronteiras nacionais, requerendo, portanto, certos níveis de cooperação internacional. Isso, no entanto, não significa que caminhamos para o estabelecimento de um governo mundial, como afirmam os defensores de uma cruzada anti-globalista. Nenhuma organização internacional, nem mesmo o Conselho de Segurança da ONU, é capaz de obrigar algum país a obedecer a qualquer resolução internacional.

Parafraseando Alexander Wendt, importante autor das Relações Internacionais (RI), podemos dizer que as organizações internacionais são o que os Estados fazem dela. A razão pela qual há tantas resoluções contrárias a Israel na ONU, por exemplo, é porque os seus membros assim o querem. As pautas da Assembleia Geral, bem como as eleições para órgãos como o Conselho de Direitos Humanos, são realizadas pelos próprios países que os integram. Logo, isso não passa de um reflexo das disputas de poder que têm caracterizado a própria política internacional e que pode ser compreendido, por exemplo, à luz da historiografia proposta pela Escola Inglesa de RI, com a qual me identifico.

Assim, não creio que a solução seja defender o fim das organizações e normas internacionais, como propõem os tradicionalistas. Pelo contrário, como conservador, acredito que essas instituições precisam ser reformadas, porém preservadas. Nikki Halley, ex-embaixadora dos EUA na ONU, designada por Trump e grande defensora de Israel, partilha de uma visão semelhante em seu livro de memórias With All Due Respect, no qual relata as disputas de poder presentes no seio do Conselho de Segurança, o órgão onusiano mais importante. Para Halley, apesar de seus muitos problemas, a ONU ainda presta importantes serviços para a ordem internacional, a exemplo das ações com refugiados e vítimas de tragédias humanitárias.

No caso brasileiro, principalmente em relação a Israel, é essa compreensão que falta ao governo Bolsonaro. Quando se trata do conflito palestino-israelense é difícil se aproximar de um lado sem causar desconforto no outro. Historicamente, a nossa postura quanto ao tema sempre foi de uma confiança quase cega no multilateralismo e nas decisões da comunidade internacional, ignorando, muitas vezes, esse viés anti-Israel presente em organismos como a ONU. Essa é uma das razões pelas quais a política externa do governo Lula era vista com desconfiança por muitos judeus e evangélicos sionistas. É como se o ex-presidente ignorasse completamente as preocupações de segurança dos israelenses.

Bolsonaro, por outro lado, não somente se aproxima mais de Israel, como deixa clara a sua indiferença – e, em algumas ocasiões, até desprezo – pela causa palestina. Ele ignora, por exemplo, que o Brasil sempre foi a favor da solução de dois Estados e que, até recentemente, essa também era a postura oficial israelense, embora comprometida nos últimos dias pelas tentativas de Netanyahu de anexar a Cisjordânia. Algo contra qual particularmente me oponho, e que também não é um consenso dentro da própria sociedade israelense.

Piora ainda mais o fato de que o governo Bolsonaro tem sido conhecido nos últimos meses, entre a comunidade judaica internacional, pelas falas de alguns de seus membros que relativizam o Holocausto e corroboram teorias da conspiração usadas historicamente para justificar o antissemitismo e negar o genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores, é o maior exemplo disso, ao afirmar que as medidas de isolamento social em combate à COVID-19 são semelhantes às políticas nazistas da criação de campos de concentração para os judeus. Ao ser acusado de fazer uma comparação indevida, o chanceler defendeu-se mencionando exatamente o apoio dado a Israel na ONU.

Assim, nota-se que, de um lado, os críticos – quase sempre legítimos – da atual política externa brasileira negligenciam os problemas do multilateralismo, principalmente em relação ao conflito palestino-israelense. Por sua vez, os bolsonaristas, além de não compreenderem a importância das organizações internacionais e a complexidade da política entre os Estados como um todo, ainda se orgulham de sua ignorância, destruindo cada vez mais a reputação e o caráter técnico do Itamaraty. A solução, portanto, é uma volta ao verdadeiro conservadorismo, baseado na prudência e na manutenção das tradições, inclusive diplomáticas.

Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.

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