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Ronald Dworkin
Ronald Dworkin| Foto: Terence Spencer

por Gilberto Morbach

Engana-se quem pensa que o embate entre o positivismo jurídico e a proposta teórica de Dworkin encerrou-se em Taking Rights Seriously, obra recomendada na semana passada. A discussão se torna muito mais rica e, não só isso, lança as bases para discussões que são ainda hoje centrais na teoria do direito, sobretudo no contexto anglo-saxão.

Por isso, não se pode jamais ignorar a importância de Law’s Empire (O Império do Direito, publicado no Brasil também pela Martins Fontes) para a teoria do direito. Em 1986, Ronald Dworkin publicou aquela que é até hoje considerada uma de suas melhores obras. Refinando seus argumentos contra o positivismo jurídico, articulou sistemática e sofisticadamente a sua própria teoria: law as integrity, o “direito como integridade”. Se em Levando os Direitos a Sério Dworkin argumentou que o positivismo não oferecia uma boa explicação da prática jurídica, é n’O Império do Direito que ele explica por que esse erro era cometido. Ao fazê-lo, Dworkin oferece também a sua concepção sobre a melhor interpretação do fenômeno jurídico.

Falo em concepção e intepretação porque é exatamente esse um dos argumentos centrais em Law’s Empire. Se os positivistas pretendiam oferecer um conceito de direito, como vimos com Hart, Dworkin dirá que essa empreitada sofre de um problema fundamental já em sua origem: uma má-compreensão acerca da natureza própria do conceito. O positivismo analítico, segundo a nova tese dworkiniana, parte do pressuposto de que todos os conceitos – incluindo, pois, o conceito de direito – são conceitos criteriais: conceitos que são compartilháveis somente quando as pessoas que os compartilham concordam em uma definição prévia da qual se derivem os critérios para a aplicação correta do termo em questão. Assim, uma análise positivista do conceito de direito, que o toma por um conceito criterial, passaria pela elucidação de quais são os testes que aqueles que compõem a prática jurídica compartilham (à exceção dos casos marginais, limítrofes) para identificar quais proposições jurídicas são verdadeiras – i.e., quais proposições são realmente jurídicas; em última análise, o que é e o que não é direito válido. (O leitor que tem acompanhado as resenhas vai identificar aqui a regra de reconhecimento articulada por Hart.)

Esse é o início do argumento do semantic sting, o “aguilhão semântico”. Na análise de Dworkin, os juízes, ainda que concordem entre si com relação a quais estatutos sobre a matéria em questão foram promulgados, e com relação a quais precedentes têm relação com o ponto, podem ainda assim discordar sobre o que o direito realmente é e exige, sobre o significado e o alcance de seus fundamentos enquanto fundamentos jurídicos. Traduzindo em termos mais simples: o positivismo, diz Dworkin, parte da ideia de que o direito é um conceito criterial: há critérios prévios que devem ser preenchidos para que saibamos o que é direito e o que não é. O positivismo, diz Dworkin, está errado. Está errado porque há, na prática jurídica, desacordos teóricos sobre os fundamentos do direito. Há desacordos exatamente sobre os critérios. O direito, portanto, não pode ser um conceito criterial; trata-se de um conceito interpretativo.

Dworkin, novamente, lança mão do caso Riggs v. Palmer, que foi seu pano de fundo para o argumento dos princípios e vimos na semana passada. Agora, contudo, o argumento é um pouco diferente: Dworkin não quer somente mostrar que, em direito, há padrões, jurídicos, que estão para além das regras (os princípios). Isso já havia sido desenvolvido em The Model of Rules. Agora, Dworkin diz o seguinte: quando se discutiu, no caso do neto que assassinou o avô visando à herança, se o assassino tinha ou não o direito pleiteado, não se estava a discutir se os juízes deviam seguir a lei ou deixar o direito de lado em nome da justiça ou alguma reivindicação de direito natural ou moralidade substantiva; baseado nos fundamentos utilizados pelos próprios juízes em seus votos, Dworkin diz que o desacordo em questão “[e]ra uma disputa sobre o que o direto era, sobre o que o estatuto real, que os legisladores promulgaram, realmente dizia”.[1] Repito: para o positivismo, direito/não direito é uma questão de critérios; para Dworkin, há desacordos sobre os próprios critérios.

O direito, então, é um conceito interpretativo: um conceito sobre o qual diferentes concepções interpretativas oferecerão explicações distintas a partir dos fundamentos assumidos para tal. Mas daí não se segue que vale qualquer coisa; pelo contrário. A melhor interpretação será aquela que oferecer, de fato, a melhor explicação para o significado do direito, seu conteúdo e seus fundamentos. É isso que Dworkin pretende oferecer ao elaborar sua proposta de direito como integridade. Em sua concepção, “o raciocínio jurídico [legal reasoning] é um exercício de interpretação construtiva”, de modo que o direito de uma comunidade “consiste na melhor justificativa que sustenta as práticas jurídicas como um todo”; consiste, pois, “na história narrativa que faz dessas práticas o melhor que elas podem ser”.[2]

Essa é a proposta que marca Law’s Empire, e é a proposta que Dworkin contrapõe a duas outras concepções interpretativas dominantes: de um lado, o convencionalismo — nada mais que a decorrência lógica do positivismo, que parte da ideia de que o direito é meramente uma questão de convenções (muito parecido com o que já era indicado em The Model of Rules). De outro lado, o pragmatismo – uma concepção que, como o nome sugere, diz que o direito é simplesmente uma questão de escolha prospectiva de viés utilitarista, pouco importando questões de história e tradição institucional. Para Dworkin, ambas falham tanto como explicações do que realmente acontece na prática quanto como propostas normativas. Nem as convenções passadas do positivismo, nem o utilitarismo prospectivo do pragmatismo: para o direito como integridade, o direito deve ser aquilo que ele já é interpretado sob sua melhor luz.[3] O leitor que se debruçar sobre Law’s Empire, concordando ou discordando, vai encontrar os argumentos de um gênio que mudou a história da teoria do direito.

[1] Tradução livre, grifos meus. “[T]he dispute about Elmer [o neto assassino] was not about whether judges should follow the law or adjust it in the interests of justice. At least it was not if we take the opinions I described at face value and . . . we have no justification for taking them in any other way. It was a dispute about what the law was, about what the real statute the legislators enacted really said”. Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. 20.

[2] Tradução livre, grifos meus. “[L]egal reasoning is an exercise in constructive interpretation . . . [O]ur law consists in the best justification of our legal practices as a whole, [...] it consists in the narrative story that makes of these practices the best they can be”. Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. vii.

[3] Devo essa fantástica definição ao Prof. André Coelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que conhece teoria do direito como poucos.

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