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Michel de Montaigne, autor dos "Ensaios"
Michel de Montaigne, autor dos "Ensaios"| Foto:

Na Sibéria editorial brasileira, especialmente aquela dedicada à produção ensaística, uma publicação se destaca pela qualidade, ainda que pouca gente que eu conheço a conheça: serrote, título em minúscula para uma revista maiúscula, trimestral e de não-ficção, publicada há dez anos pelo Instituto Moreira Sales. Dela saíram os textos reunidos no livro Doze ensaios sobre o ensaioantologia serrote, organizado por Paulo Roberto Pires.

É uma ótima pedida para quem ainda confunde alhos com bugalhos e ensaios com ensaios. Recomendável sobretudo para quem não sabe a diferença entre escrever com graça sobre a chatice e escrever com chatice sobre a graça. O gênero de Michel de Montaigne é de difícil limitação: não se sabe ao certo como defini-lo, e talvez por isso muita gente o confunda com qualquer coisa que lhe seja parecida. Por exemplo, com o próprio ensaio.

O ensaio (de verdade) é semelhante ao ensaio (de mentira), como um falso cognato no interior do gênero, sempre cambiante e evasivo. Pois o que Montaigne inventou (se não inventou, patenteou) é um texto pessoal, livre, leve e solto de peso erudito e pretensão científica. O ensaio flerta com a autobiografia, a memorialística, a crônica, o aforismo, o relato de viagem, o artigo de opinião, a crítica de costumes – flerta com tudo isso sem ser isso. É outra coisa ainda mais interessante.

No entanto, aos poucos, o ensaio foi abduzido pelo ensaio acadêmico. Este lhe roubou o nome e injetou anabolizantes: o academicismo, a tese, a pretensão, a cintura-dura, a falta de senso de humor. Ensaio de verdade não se presta a esses formalismos de bacharel, a esses moralismos estilísticos de mestre-escola.

O livro Doze ensaios sobre o ensaio não serve como teoria, mas como conjunto de exemplos práticos: mais do que definições, os diversos ensaios sobre o ensaio trazem (e são) amostras do que se pode fazer com esse tipo de peça. Por pura falta de bom senso, arrisco dizer que o ensaio é um tema que foge de si mesmo e se encontra nas suas variações.

No Brasil, curiosamente, a tradição tal e qual é pequena, sob certo aspecto, mas promissora, sob outro. Se é verdade que muitos confundiram o ensaio com a dissertação sociológica, outros entenderam que a crônica está muito mais próxima do espírito original do ensaísmo que a dissertação e a tese. Um texto do Nelson Rodrigues tem mais de ensaio do que qualquer coisa de Caio Prado Junior.

No Brasil, quem pegou bem o espírito da coisa foi o não por acaso anglófilo Gilberto Freyre. O mestre de Apipucos, que entre tantos títulos gostava mesmo era de ser chamado de escritor, produziu textos saborosíssimos e conscientes de suas intenções estéticas e estilísticas; soube procurar noutros, e reconhecer em tantos, o mesmo elã que animava Montaigne, querido autor dos Ensaios, que o leitor desta Gazeta do Povo faria um bem danado em ler e reler.

 

(uma versão reduzida deste texto foi publicada na Revista Amálgama)

 

 

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