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"Ulisses e as Sereias", de Herbert Draper
"Ulisses e as Sereias", de Herbert Draper| Foto:

Está na boca do povo. Não sei quando apareceu no vocabulário retórico brasileiro, mas me lembro de tê-la lido, a primeira vez, num artigo do sociólogo Demétrio Magnoli. A narrativa petista isso, a narrativa petista aquilo, a narrativa da esquerda, a narrativa da direita. Aos poucos, um termo útil vai se transformando em muleta linguística e servindo a críticas cada vez menos precisas e cada vez mais ideológicas.

Basta escrever que tal alegação é parte da “narrativa de Fulano” que tudo se resolve e ganha ares de seriedade. Nada contra ela, pobrezinha, eu mesmo a usei uma e outra vez, mas andam exagerando na dose. Com o exagero, o som se descola do sentido, a palavra é descarregada de seu valor semântico e, aos poucos, passa a ser usada de qualquer jeito, em qualquer ocasião, contra qualquer pessoa. Usada e jogada fora. Como “fascista” ou “comunista”, não quer dizer mais nada.

E o que isso, afinal de contas, tem a ver com o PT, com a esquerda, com a política e com os nossos problemas muito rasteiros? Política é linguagem e, bem sabia George Orwell, a corrupção da linguagem antecede a corrupção da política. A política é um repertório, uma gramática e uma história a ser contada. Lula não se tornou o homem mais poderoso do país por tantos anos – poder agora arrefecido – em virtude de seus lindos olhos azuis. Ele tinha uma história para contar, e o brasileiro acreditou nela. Os brasileiros ficaram sentadinhos, ouvindo o conto do vigário, depois votaram maciçamente no vigário.

A construção de uma hegemonia política se dá no campo da cultura, do vocabulário e dos preconceitos. Por isso mesmo, desconfio desse entusiasmo de quem acredita, piamente, que o PT acabou, está fora do jogo, fim de papo, vamos sambar na cara da sociedade e aproveitar a revanche. Um país que elegeu por tanto tempo certos políticos não pode ter se convertido, de repente, no paraíso “liberal-conservador” (arranjo que tem cara de oximoro, mas isso fica para depois). Estou certo de que o voto antipetista pode se transformar num voto petista, já nas próximas eleições, ou num voto à esquerda, com Ciro Gomes.

Foram tantas as leituras feitas sobre essa guinada à direita, que uma delas acabou ignorada e não apareceu no cardápio: talvez essa escolha não tenha sido nada mais do que o palpite da vez, o calor das ruas, a rejeição costumeira a quem já está no poder, o apetite pela alternância mais apaixonada que racional. Em português: quem votou no Bolsonaro pode ter votado nele porque seu discurso pegou, porque suas piadas fizeram rir, porque seus golpes entraram, somente isso, sem outras grandes considerações. Nada de “o brasileiro se cansou da esquerda”.

Uma das coisas mais misteriosas é a motivação do voto. Pensem comigo: se votamos tantos anos no PT, por que diabos, de repente, resolvemos votar no candidato mais antipetista entre todos? A volatilidade das escolhas do eleitor é algo que deve ser levado em (muita) conta, antes de análises caudalosas sobre os pecados deste ou as virtudes daquele. Conheço quem tenha votado no Lula em todas as vezes que disputou, também na Dilma as duas vezes e, voilà!, escolheu Bolsonaro “porque ele é contra o PT!” Antipetismo instantâneo, inapreensível à ciência dos homens.

Justamente aqui mora o perigo: o PT sabe jogar esse jogo como ninguém. Sofreu um nocaute, está nas cordas, mas não foi derrubado. O discurso triunfalista dos eleitores do Bolsonaro (e de todos os eleitores que, não gostando do Bolsonaro, também rejeitam o PT) pode se voltar contra eles (contra nós). Política é símbolo, vocabulário, “narrativa”, como dizem tanto. Não se deve ignorar a insistência com que o partido fala em golpe e perseguição política, e não sei se é boa ideia acreditar que esse assunto é assunto encerrado. O discurso reiterado, com o tempo, termina por se tornar crível. A cada dois anos, o brasileiro esquece o que comeu na eleição anterior.

Por essas e por outras, em princípio não gostei que Sérgio Moro tenha aceito o convite para comandar um ‘superministério’ no governo de Bolsonaro. Muito de sua reputação depende da credibilidade nos julgamentos da Operação Lava Jato, mais do que do conhecimento estritamente técnico. Algumas atitudes tomadas, processualmente questionáveis, já haviam arranhado – sem machucar de fato – a imagem de juiz frio, imparcial e reto.

Antes que o leitor estrebuche, respondo: Lula não é, nunca foi, preso político, mas sim um político preso. E exatamente essa era a boa novidade: que políticos graúdos também fossem (pudessem ser) presos. No entanto, ao aceitar o ministério, Moro corre o risco de legitimar o discurso de que houve perseguição política. Moro aceita ser ministro do presidente que só se tornou viável por causa do agora ministro Moro. Contada de trás para frente, do fim para o começo, a história ganhará alguma verossimilhança.

Que ele esperasse por uma vaga no Supremo Tribunal Federal seria compreensível – e, aí sim, razoável. Como ministro, será mais um entre tantos. Poderá cair a qualquer momento, ou meter-se nas mais variadas confusões de que a política é feita. Não somente isso, mas esse tipo de movimento borra ainda mais as linhas que distinguem o Direito da Política. Para o homem comum, tudo é política, até as decisões judiciais mais estritas. Se tudo é política, todos são, em última análise, políticos – com os muitos ônus e os poucos bônus dessa identidade. Sérgio Moro deveria ter seguido o exemplo de Ulisses e se acorrentado num mastro qualquer, em Curitiba, para resistir ao canto das ordinárias sereias de Brasília. Deixou-se seduzir, e isso é arriscado. Que chegue a bom termo. Diante dessa escolha, não o acuso, mas também não o aplaudo. Voltando ao início: política é “narrativa”. A depender do rumo da história, o final pode não ser feliz.

 

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