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A jornalista Miriam Leitão e o cientista político Sérgio Abranches tiveram sua participação cancelada numa feira literária que acontecerá em agosto, na cidade de Jaraguá do Sul (SC). O nobre motivo: os promotores do evento não puderam garantir a segurança dos convidados. Petição online e protestos contrários à presença de ambos foram organizados porque, segundo consta, Jaraguá do Sul está com o presidente Jair Bolsonaro e não abre. Opiniões ofendem?

Convenhamos que isso não é novidade no Brasil. Há não muito tempo, a própria Miriam Leitão foi hostilizada por petistas; os mesmos petistas e congêneres que, por sua vez, também hostilizaram Yoani Sánchez, crítica do regime castrista, quando veio ao Brasil. Atitudes assim atentam contra a liberdade de expressão e de pensamento, não importa se à esquerda ou à direita. Tratar críticos ou dissidentes como pessoas não gratas; impedi-los de falar; expulsá-los de eventos ou cidades; atrapalhar a exibição de filmes – tudo isso tem nome e é aquele nome que toda a gente conhece. Sem eufemismo.

O que há de estranho é a sensação, aos poucos tornada certeza, de que o presidente corrobora esses atos sem muita cerimônia ou pudor. Não se trata de contexto ou distorção, pois o contexto é exatamente o mesmo: dias depois da represália dos eleitores da cidade catarinense, o eleito achou por bem acusar a jornalista de ter participado de luta armada (não participou) e supor que ela mente ao dizer que foi torturada (não mente). Ou seja, em vez de, como estadista, repudiar o incidente em Jaraguá do Sul, deu um jeito de sugerir que, pensando bem, ela até que fez por merecer.

Eu sei que Bolsonaro não inventou o radicalismo em que estamos metidos, não cortou o baralho e nem distribuiu as cartas viciadas dessa nossa política, mas tem jogado o jogo muito bem. Gostou dele e aprendeu novos truques. De certa maneira, ele é o efeito colateral de anos de lulopetismo, que dividiu o país e apostou alto na divisão. Enquanto ganhavam, ninguém reclamava. Mas o jogo virou, e a esquerda, que custa a entender o fenômeno, se agarra aos restos mortais do ególatra residente e domiciliado em Curitiba, ou flerta com o autoritarismo barroco de Ciro Gomes.

Nada disso, contudo, pode servir de permissão para as atitudes iliberais e de espírito antidemocrático da direita reacionária. Bolsonaro não era a única (nem a melhor) alternativa; vendeu-se como sendo; acreditaram no vendedor. Um caso de profecia auto-realizada: voto nele porque ele vencerá o PT, e ele vencerá o PT porque decidi votar nele. Que seja, eleição concluída, Inês é morta.

Inês é morta, enterrada, mas é passada a hora de amenizar o discurso, governar com prudência, liderar com respeito. Não somos nem queremos ser, eleitores e não eleitores, os súditos de um rei de fancaria. Conversar com jornalistas não é gesto de boa vontade. Aceitar dados e informações de institutos científicos, e respeitar testemunhos acreditados até mesmo pelo Exército, não são atos de liberalidade. Duvidar da fome que ainda grassa no país é insultante; confessar que privilegiaria o próprio filho não o é menos. Rir-se de torturas e renomear ditaduras depõe contra quem jura ter se convertido à democracia.

Ainda há tempo para o acerto da rota, e sobretudo: ainda há tempo para compreender as sérias implicações do liberalismo, ideário adotado em campanha. Resta saber se há vontade e vocação para isso.

Otto Maria Carpeaux (“A solidão de Croce”, Ensaios Reunidos) dizia que o velho – e genuíno – espírito liberal não se reduzia nem se resumia à liberdade de mercado; o liberalismo de seu mestre Benedetto Croce representava a luta do espírito individual contra “os totalitarismos fascistas, marxistas, capitalistas e idiotas” de nossa época. Boas medidas econômicas são oportunas, precisam ser feitas, mas não justificam nem desculpam as más condutas políticas, sejam de direita ou de esquerda. Sejam fascistas, marxistas, capitalistas ou simplesmente idiotas.

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