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August Landmesser, Hamburgo, 1936.
August Landmesser, Hamburgo, 1936.| Foto:

O desastroso – e nada surpreendente – governo Bolsonaro tem feito renascer uma discussão que parecia exaurida: quem é o pai de um filho tão feio?

Empanturrados de ironia, petistas resgataram um famoso editorial do Estadão, às vésperas do pleito, em que o jornal lamentava tratar-se de “uma escolha muito difícil”. Para eles, a resposta era muito fácil. Não porque tenham refletido sobre as possibilidades, mas porque sempre tiveram uma única resposta para tudo, fosse qual fosse o adversário.

É importante distinguir bem as coisas, separar o joio partidário do trigo democrático, para que o debate que de fato interessa – e interessará ainda mais nos próximos anos – não se reduza a blefe e a chantagem de lado a lado. Portanto, sem adversativas, o responsável pela eleição de Jair Bolsonaro é o eleitor de Jair Bolsonaro. No caso, os mais de 57 milhões de eleitores.

Collor foi eleito uma vez, FHC duas vezes, Lula duas vezes, Dilma duas vezes e, enfim, Bolsonaro. Gostemos ou não dos resultados, as regras são essas.

O que não significa que, depois de eleito, o mandatário tenha plenos poderes para sabotar a democracia, submetê-la ou instrumentalizá-la – e que tenhamos de ficar quietos. Existem mecanismos constitucionais para isso.

E, apesar de ser o gesto cívico por excelência, o voto é um ato mais simbólico que concreto. A política acontece entre uma eleição e outra: na fiscalização, nas cobranças, nas críticas, nos protestos, nos pedidos de impeachment, no constrangimento jurídico, na aprovação, na desaprovação.

Consciente dessa complexidade, anulei meu voto. Anularia de novo. Decidi, naquele momento, pela ética da convicção. Sabia que meu voto útil seria estatisticamente inútil. O povo não precisa de mim para acertar. Nem para errar. Defendo a legitimidade do voto nulo – e mais: defendo que, numa necessária reforma política, o voto facultativo seja proposto.

Não me responsabilizo por escolhas que não fiz. Bolsonaro não é minha culpa. Nem é minha culpa que Fernando Haddad estivesse fadado à derrota. Eu dispunha de apenas um voto. Lula dispunha de milhões. Minha escolha não mudaria nada. A escolha de Lula mudaria tudo. Por isso rejeito a chantagem e os respectivos chantagistas. Por isso, como Bartleby, “prefiro não”. Prefiro não soterrar minha vontade sob a vontade de 57 milhões. Prefiro não cerrar fileiras com outros 48 milhões. “Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade”. Mas não sou.

Depois de quatro mandatos e quatorze anos, o lulopetismo indicava esgotamento. A leitura do cenário era fácil até demais. O voto antipetista se coagulou como a força determinante; quem o atraísse, ganharia. Dito e feito. O primeiro sinal veio nas municipais, em que o partido foi varrido do mapa. Em seguida, o impeachment de Dilma Rousseff. Por fim, a prisão de Lula. Mais do que eleição, tivemos um plebiscito em 2018. Não julgo; constato.

Deixemos de lado a operação Lava Jato, suas causas e consequências. O fato é que uma grande massa de eleitores havia se cansado do imaginário petista, e isso não é culpa de Sérgio Moro. A recessão corroeu o otimismo do brasileiro. O PT se embrulhou na própria vaidade. Vozes importantes como Fernando Gabeira, Eduardo Jorge e Roberto Freire foram ignoradas. Marina Silva teve a cabeça pisada. Ciro Gomes, tantas vezes apoiador, não foi apoiado.

Os petistas agora cobram dos outros o pragmatismo que nunca tiveram. Exigiam de nós a responsabilidade, enquanto eles teimavam na convicção. Lula sabia que o fôlego de Fernando Haddad era curto. Mesmo assim, o PT não renunciou ao protagonismo. Não cedeu um milímetro de poder. Se tivesse apreço pela democracia, abriria espaços. Se tivesse apreço pela esquerda, incentivaria outros líderes. De jeito nenhum. Desde 1989, o centro de gravidade da esquerda brasileira é Lula. Sem ele, nada feito. Sem ele, nada de bola. Sem ele, nada de eleição.

Calculou mal. Ou, vai saber, calculou muitíssimo bem. Talvez Lula adivinhasse – é meu palpite – que a derrota fosse bastante provável, mas preferisse resgatar a semântica persecutória que sempre manejou com destreza, e que renderia dividendos em disputas (até mesmo processuais) futuras. Aceitou perder a batalha eleitoral para vencer a guerra narrativa. Fanático de si mesmo, lavou as mãos na pia do egocentrismo, rifou a democracia, dobrou a aposta e pagou para ver, custasse o que tivesse de custar. Custou Bolsonaro.

Lula não é o pai de Bolsonaro. Mas ajudou a fazer o parto.

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