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Tramoias envolvendo governos e empresas, políticos e empresários, despertam um sentimento de indignação bastante seletivo. É comum que, nesses casos, muita gente aponte os barões da indústria como os maiores vilões da história, enquanto os políticos são relegados ao papel de coadjuvantes. A verdade me parece o contrário disso.

Embora eu seja a favor de mercados radicalmente livres, não defendo empresários. São homens como quaisquer outros. Se cometerem crimes, têm de ser punidos. Se oferecerem produtos ou serviços ruins, têm de falir.

No entanto, entre um empresário corrupto e um político corrupto, o político sempre será mais condenável, mais perigoso, por uma razão simples: ainda que o dinheiro tenha poder, ele depende da política para realmente influenciar.

Governos podem (e o fazem constantemente) depreciar moedas e levar à falência os homens mais poderosos. Governos podem trocar moedas da noite para o dia e subverter todo o sistema econômico. Um reles fiscal de agência sanitária põe a perder empreendimentos inteiros. Isso para não dizer que grande parte da corrupção tem origem nas exigências descabidas e nas arcanas proibições que os legisladores são capazes de criar.

O Estado tem o poder de polícia que o mercado não tem. O povo espera do homem público justamente o desinteresse que do empreiteiro não se espera. A legitimidade conferida aos políticos, quando eleitos, deveria obriga-los a ser muito mais decentes que os mais decentes capitalistas. Ninguém é santo, mas os políticos são um tipo especialmente detestável de pecadores.

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A propósito de feminismo, machismo, militância, controle da linguagem e ideologias, importa dizer o seguinte: nem toda paquera é assédio, nem todo assédio é estupro. Existem graduações nos pecados e nos crimes, e preservá-las significa ser capaz de reconhecê-las tais como são. Misturar tudo com tudo, como querem os grupos militantes, atrapalha, em vez de ajudar.

Se qualquer fiu-fiu é estupro, o estupro, este sim gravíssimo, tende a se reduzir, com o tempo, a fiu-fiu. Tempos mudam, costumes idem, e daqui a pouco nem saberemos ao certo o que é sério ou não. Assim como as questões de cor, de preconceito, de etnia.

No entanto, ainda que admitamos as distorções  e exageros nitidamente ideológicos de muitas das acusações e causas, também não podemos deixar de admitir que, quando acontecem, assédio é assédio e estupro é estupro, ponto. Não são, como direi?, coisas divertidas para quem as sofre. Não são mimimi.

Para combater o politicamente correto não podemos estimular uma espécie de “contra-ideologia” que negue sistematicamente que males existem, que mulheres são violentadas, que gente é tratada como bicho, ou propriedade, por ser pobre, por ser preto, por ser estrangeiro, por ser gay, por ser mulher, por ser albino na Tanzânia (não estou brincando; pesquisem).

E, antes que me acusem, isso não é tentativa de bom mocismo. Isso é apenas o reconhecimento de que somos – vivemos entre – pecadores: para resgatar aqui um termo tão démodé e, mil perdões, politicamente incorreto demais para nossos tempos.

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Não acredito que exista uma guerra cultural em curso. Não nos termos em que normalmente se acredita. Ou, por outro lado, se existe uma guerra cultural é porque ela sempre existiu: não houve momento em que os embates éticos, espirituais, teológicos, artísticos, filosóficos ou políticos não tenham acontecido.

Na história humana, o que de fato nunca houve foi paz ou quietude: dos pré socráticos à morte de Sócrates, da perseguição aos primeiros cristãos às invasões bárbaras, de Herodes a Constantino, subindo a colina da Idade Média, entre mouros e cruzados, entre Tomás e Averróis, para descer à baixa escolástica com o trem descarrilhado, passando pela longa planície moderna, anti-moderna, pós-moderna, tão cheia de superstições científicas e religiosas, que de algum modo vieram a desembocar na Primeira Guerra, que ninguém parecia esperar, e desta para a Segunda Guerra, com o assombro do Holocausto e a falência de todas as esperanças mais ingênuas.

O que se seguiu foi, continua sendo, movimento, ruído, debates, combates, desatinos. Não acredito que exista uma guerra cultural em curso porque nunca houve momento de paz ou de quietude. O mundo é isso aí, o homem é esse caniço metafísico tropeçando nas próprias pernas, a cultura é essa cartola de mágico de feira donde saem milagres e mentiras, deuses e demônios, covardes e heróis, gênios e farsantes.

Nada disso é novidade, ninguém é general em campo de batalha, Sócrates bebeu a cicuta antes de que soubessem quem era Sócrates e o que era cicuta, Cristo já naquela época reclamou que não tinha onde repousar a cabeça e foi pregado na Cruz.

Nada de novo debaixo do sol, Coélet.

 

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