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Foto Sergio Lima/ AFP
Foto Sergio Lima/ AFP| Foto: AFP

Existem fundamentos jurídicos para o impeachment? Existem. A lei 1079/50 define como crime de responsabilidade os atos que porventura atentem contra a Constituição e os poderes constituídos – Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal –, bem como  “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.

Quando Jair Bolsonaro declara, incentiva e participa de protestos que têm como alvo representantes eleitos e instituições legítimas da vida democrática, e ainda sugere, sem provas, ter havido fraude eleitoral, comete crime de responsabilidade; quando faz insinuações sexuais ou constrange jornalistas, falta com o decoro.

E que não se apele à desculpa de que são falas, chistes, piadas, sinceridades, mais do que atitudes concretas. O professor Rafael Mafei argumenta, e concordo com ele, que os discursos presidenciais – os atos de fala do presidente – são “formas de exercício do poder político”. O que é, deveria ser, óbvio. Conrado Hübner Mendes faz o mapeamento dos padrões de conduta incompatíveis com o cargo.

Ocorre que a letra fria da lei costuma fritar no calor da popularidade.

Enfatizo a possibilidade somente jurídica porque eu, tu, ele, nós, vós, eles sabemos que o instituto do impeachment é jurídico de dia e político à noite; recatado à luz dos códigos e luxurioso na meia-luz dos acordos. Não temos clima para mais um recall. Nem temos fôlego institucional para isso.

O leitor desta Gazeta não ignora o que penso sobre a mitológica figura que nos preside. Verbalizo-o porque é meu dever e minha liberdade intelectual, e também por entender que a democracia não está restrita às urnas. Democracia é ir à rua e se manifestar, como muita gente tem ido, mas é também ficar em casa e escrever, como tenho feito.

O que se poderá julgar, e o tempo do julgamento não tarda, é a motivação, a real e íntegra motivação, de cada protesto – feito na rua ou da escrivaninha. O que está e estará em juízo será a verdade desse protesto, a inteligência dessa posição, a credibilidade desse engajamento.

Quem sobreviver ao coronavírus, verá.

Mas voltemos ao ponto de partida: impeachment.

Argumentos jurídicos à parte, defendo que o cenário político não é propício para mais um impedimento. Impeachment é remédio agressivo em corpo fragilizado, e os solavancos periódicos, cada vez mais brutos, podem fraturar de vez a nossa já combalida confiança na democracia.

Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente (embora ele tenha dúvidas). Que cumpra seu mandato. Se não for capaz de cumprir, renuncie. Mas é importante tolerar as escolhas feitas, mesmo quando mal feitas, para que as escolhas em si mesmas sejam toleradas. Inclusive as próximas.

Ou contestaremos os resultados de todas as futuras eleições? A democracia depende da confiabilidade nas regras do jogo, e de sua aceitação tácita e explícita. É parte do contrato social, em que pesem as inconvenientes letrinhas miúdas no rodapé.

Um processo, neste momento, arrebentaria de vez os diques institucionais e aproximaria o país de um estado de anomia. Como se, afinal de contas, ninguém precisasse aceitar decisão nenhuma. O mais prudente é esgotar as possibilidades cada vez menores desse governo e pensar em outras. É dar a ele a oportunidade de ser herança de si mesmo, de encarar sua própria face no espelho da história, ou de terminar antes do tempo com a renúncia. Não seria má ideia.

Contudo, fique claro, rejeitar a hipótese do impeachment não significa adesão ao governo ou quietismo cívico. Primeiro, porque Bolsonaro não tem passe-livre para desmandos e desvarios. Hoje afirmo que o impeachment é inoportuno, depois de amanhã talvez afirme o contrário. Depende dele: existem fronteiras e ele as ignora. Segundo, porque essa prudência não se confunde com sujeição moral. Antes, impele a exercer uma crítica dura, diária, didática. Precisamos lembrar o presidente de que ele não está acima da Constituição, não caminha à margem da lei, não é proprietário da democracia, sua família não é a família imperial.

Qualquer cidadão livre, com os direitos políticos em dia e a cabeça em condições razoáveis, está convocado a fazer o controle de qualidade do governo, de qualquer governo, e constrangê-lo juridicamente, acossá-lo eticamente, repudiar seus excessos, cobrar suas omissões, para que os eleitos se atenham aos limites e prerrogativas de que são investidos. Nem mais, nem menos. As panelas já começaram a bater.

Impeachment tem de ser como chinelada de mãe: a expectativa que inibe e dói muito mais do que a própria dor.

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