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“A Vida de Brian”, de Terry Jones (Monty Python)
“A Vida de Brian”, de Terry Jones (Monty Python)| Foto:

A polêmica do Porta dos Fundos já é velha de anteontem, mas convém registrar algumas observações que, de um jeito ou de outro, podem ser úteis para o debate público sobre liberdade de expressão, limites do humor, sensibilidade moral, blábláblá.

Em suma: convém arrumar assunto para a crônica desta terça-feira.

Para quem assistiu ao engraçadíssimo A Vida de Brian, do Monty Python, ou ao grave A Última Tentação de Cristo, de Scorsese, A Primeira Tentação de Cristo é café pequeno. O argumento é outro, mas a tentativa é a mesma: assustar criancinhas. No humor ofensivo do grupo carioca, que tem lá seus bons momentos, há mais tentativa de ofensa que de humor. É tão previsível que o roteiro do filme de Natal se transforma em spoiler de si mesmo. Esse é o pecado deles.

Quanto a mim, sou cristão e pouco sensível a controvérsias dessa natureza; e o cristianismo também é muito mais resiliente do que isso. A história conta que, quando um lado está bem assado, basta virar para que o outro lado fique no ponto. Assim como São Lourenço, acredito que Jesus Cristo seja bem-humorado o suficiente para não levar a sério o que não é sério. Há coisas piores e melhores do que o Porta dos Fundos acontecendo aqui embaixo.

O problema é que, com 7 bilhões de almas desnorteadas pelo mundo, está cada vez mais difícil chegar a um acordo sobre os limites de um e de outro; entre, por exemplo, a liberdade de expressão e os valores morais e religiosos. Como impedir que um ateu critique ou faça troça da religião na qual ele não acredita? Como impedir que o protestante zombe do católico, e este caçoe do espírita, e este ironize o... Bem, espírita não tem moral para gozar da cara de ninguém.

De minha parte, gosto da solução bruta de Christopher Hitchens: liberdade de expressão é liberdade de ofensa, ponto. Expressar coisas afáveis e opiniões hegemônicas é fácil, qualquer um faz. O fato é que em sociedades laicas e democráticas é quase impossível arranjar outra maneira de lidar com a tensão entre valores divergentes. Se existe, desconheço. Que joio e trigo cresçam.

O limite da ofensa, por sua vez, tem de ser aquele determinado pelo Código Penal (que também merece ser repensado, para meu gosto) ou pelo dano concreto e inexcusável. Fora isso, paciência. Tem de saber brincar.

Porque é melhor que prevaleça o princípio da liberdade antes que os tempos mudem, os costumes idem, os censores sejam outros e chegue a nossa vez de ter a liberdade restringida. Se eu defendo restrições quando posso, como me defenderei das restrições quando outros porventura possam? Em muitos lugares do mundo, lembremos, a censura se volta contra os próprios cristãos.

Contudo, tem mais caroço nesse angu. Até aqui, de certa forma, defendi o (direito do) Porta dos Fundos diante dos religiosos. Também me parece razoável que os religiosos boicotem o Porta dos Fundos ou a Netflix, se quiserem. Faz parte do jogo. Mas faz ainda mais parte do jogo que essa liberdade se estenda a todos, em todas ou na maioria das circunstâncias, quando a sensibilidade destes é fustigada pela gracinha daqueles.

Ora, não é curioso que progressistas acusem alguns de fazer o que eles próprios fazem todo dia? Fazem sim. O progressista que ofende a religião tem sido o primeiro a reclamar da ofensa alheia. Pois é disso que trata o politicamente correto: uma tentativa de modular e controlar a linguagem para domesticar o humor, as discussões, as conversas familiares, a paquera, a publicidade, a política, o padre no altar.

Se a liberdade de expressão, mesmo quando ofensiva, tem de ser defendida a todo custo – e tem mesmo: não por ser ofensiva mas por ser expressão –, o que dizer das tantas interdições, cada vez mais recorrentes, cada vez mais justificadas, quando os alvos da piada ou da ofensa são os, digamos, “cristãos” da vez? Noutras palavras: por que a sensibilidade de gordos, magros, negros, gays, feministas, mulheres, feios, burros, anões, trans, umbandistas, muçulmanos, judeus, deficientes, veganos, eleitores do Ciro Gomes vale mais que a de cristãos?

Que ninguém me venha a essa altura do campeonato apelar ao deus ex machina e dizer que a crença religiosa é um valor disponível, a que se adere, a que se escolhe, enquanto a cor da pele, a orientação sexual, a etnia, a nacionalidade, a condição física, o voto no Ciro Gomes são valores indisponíveis.

Valores são valores. O que me ofende não ofende o meu vizinho; o que para mim é indesculpável é motivo de escárnio para meu inimigo; o que na minha casa é sagrado na casa da frente é piada. Se temos – e é bom que tenhamos – respeito à cor, à etnia, à limitação física, ao sexo, ao gênero, à fé em Mangabeira Unger, deveríamos ter o mesmo respeito à religião de outrem. Ou não?

Sociedades não são feitas nem se organizam apenas ao redor de bens materiais ou tangíveis. O mundo social é feito de símbolos, sensibilidades, crenças, textos profanos e sagrados, códigos éticos e tabus, proibições e transgressões, regras e violações, leis escritas e não escritas. Tudo isso é tão ou mais necessário à vida quanto o pão e a água.

Que me ofendam à vontade, estão todos convidados, os leitores já até se acostumaram, são de casa, mas que a recíproca seja verdadeira. O senhor e a senhora me permitem ofendê-los? Espero sinceramente que sim. Afinal de contas, todos gostamos de liberdade de expressão, mas liberdade de expressão na sensibilidade dos outros é refresco, não é mesmo?

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