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Armando Marques, famoso árbitro de futebol, falecido em 2014
Armando Marques, famoso árbitro de futebol, falecido em 2014| Foto:

Nelson Rodrigues foi dramaturgo, cronista, contista e, agora sabemos, profeta. Com décadas de antecipação, garantiu: “O videoteipe é burro”. Quando o Fluminense perdia, só podia ter sido roubado. Quando lhe provavam que fora pênalti, retrucava: “Se o vídeo diz que foi pênalti, pior para o videoteipe”.

Impossível não se lembrar disso nesses tempos de VAR (em inglês: video assistant referee; em português: estraga-prazeres). Quem gosta de futebol sabe do que se trata. A quem não gosta, explico: é um sistema de câmeras e um conselho que fazem a checagem do lance controverso ou capital e ajudam na decisão do cada vez mais inútil apitador de campo. Em tese, veio para ajudar. Na prática, só tem atrapalhado.

Não, não sou daqueles para quem o erro dá gostinho ao futebol. Às favas com o gostinho. O gostinho do erro é bom quando nos favorece ou não nos prejudica; é horrível quando nosso time perde. Portanto, deixo de lado todo romantismo e aceito alguma inovação tecnológica. Liguem as máquinas.

O que não aceito é que a inovação tecnológica potencialize nossa capacidade de errar e decidir mal. Antes, errávamos e errar era humano. Agora, erramos e isso é humano e cibernético. Aconteceu com meu time, mas têm acontecido com todos os times. A maioria tem sofrido mais do que o razoável com essa desgraçada inovação.

Desgraçada, sim, porque o erro, com o VAR, fica ainda mais escandaloso. O erro fica mais errado e ganha ares de punição divina. O torcedor se transforma num inconsolável Sisifo, obrigado a ver e rever a contraprova do erro, subindo e descendo, indo e voltando, sem ter a quem apelar.

Antes, quando um árbitro errava, víamos o replay que ele não via. Por mais que o quiséssemos matar, e por mais que ele o merecesse, no fim das contas sabíamos que ele decidia numa fração de segundo. Se nem os juízes da Suprema Corte decidem direito, o que esperar do juiz do futebol.

Pois agora acontece o lance. O gol, por exemplo. A torcida urra. Minto: a torcida urrava. Hoje ela faz que vai urrar e, como animal golpeado, abafa o urro. O gol deixou de ser orgasmo e virou coito interrompido. Roubaram-nos a catarse do gol.

Gol acontecido, os membros do inexpugnável VAR conferem as imagens. Nós conferimos as mesmas imagens. Minutos se passam. Meses se passam. O gol está sub judice. Uma angústia kierkegaardiana se instala.

Enfim, decidem com as imagens e, muitas vezes, contra as imagens. Sei lá como decidem. A imagem está ali, à nossa frente, dizendo uma coisa. A suprema corte do ludopédio vê a mesma imagem, dizendo a mesma coisa, e decide outra.

Recomeça a partida e não há a quem recorrer. Nem ao videoteipe, nem ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó. O VAR é a primeira, a segunda e a última instância. Quando acerta, muito bem, agradecemos ao soberano. Quando erra, maltrata. O erro desmentido pelas câmeras, e ainda assim confirmado por quem as manipula, refulge como uma traição há muito suspeita e agora confirmada.

Deus inventou o VAR. O diabo o trouxe ao Brasil.

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