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Paraisópolis (Wikimedia Divulgação)
Paraisópolis (Wikimedia Divulgação)| Foto:

Eu não gosto de pancadão.

Presumo que seja um aglomerado qualquer em que centenas, milhares de pessoas ouvem e dançam um tipo de música que eu não ouviria nem dançaria.

Mas sosseguem, isso não é preconceito meu. Retifico: não é meu único preconceito, porque também não gosto de carnaval.

É outro aglomerado em que centenas, milhares de pessoas ouvem e dançam um tipo de música que eu não ouviria nem dançaria.

Sambódromo? Declino do convite.

Abadá? Sai pra lá.

Cordão da bola preta? Nem amarrado.

Tampouco gosto das raves. Não tenho idade nem fígado para misturar uísque, energético e LSD.

Registro ainda que meu entusiasmo por grandes shows de rock diminui ano após ano, cabelo branco após cabelo branco.

Aproveitando o ensejo, não sei se vem ao caso, detesto festinhas de criança. Minhas irmãs e amigos têm conhecimento do fato e só me intimam, minto, convidam nas datas estritamente importantes, a depender do movimento das marés, da adequada umidade relativa do ar e da expectativa de vida do aniversariante.

Nesses ambientes, centenas, milhares de pessoas se aglomeram, ouvem e dançam música que talvez eu não ouvisse nem dançasse. Nesses ambientes há tráfico e consumo de drogas líticas e ilícitas. Há crimes e criminosos. Eu sei, você sabe, a polícia está cansada de saber.

Porém somente no pancadão, ou principalmente no pancadão, ou quase sempre nos lugares em que acontece o pancadão, a polícia comete os excessos que não comete no carnaval, na rave, no show de rock, na festinha de criança. Só no pancadão tem pancadaria policial com essa frequência e com esse, digamos, entusiasmo pela lei e pela ordem.

Deixemos de lado, por um ou dois minutos, nossos preconceitos. Sim, o pancadão desperta sentimentos inconfessáveis e incivilizados em muita gente. Quem sou eu para discordar. Mas os meus preconceitos, justificados ou não, são meus. Preconceito não é política de segurança pública.

Portanto, o que não se justifica nem se desculpa é que a violência estatal, oficial, fardada, condecorada seja demograficamente circunscrita. Sociologicamente motivada. Racialmente inspirada. O que aconteceu na favela de Paraisópolis, SP, não é casual, não é acidente, é só mais um exemplo entre tantos de que esse jeito de combater o crime, ou de mediar conflitos sociais, está esgotado. A distância entre Paraisópolis e Higienópolis não se mede em quilômetros.

Antes que me perguntem, não gosto de bandidos. Em especial daqueles que atentam contra a vida, a dignidade sexual, a liberdade. Precisam e devem estar presos ou punidos na forma da lei. Mas é para isso mesmo que existe a forma da lei: para que a violência estatal seja canalizada – e freudianamente sublimada – em sistemas de punição misericordiosos, equânimes, humanos. Em sociedades democráticas, processos e procedimentos importam. É o que distingue as sociedades democráticas das outras, em que imperam o arbítrio e a violência desmedida. Sociedades fascistas. Sociedades comunistas.

Liberalismo e conservadorismo, quando bem compreendidos, são duas versões de uma mesma aspiração ou ideia de política que se pretende cética e reativa, não reacionária: aquela que previne o indivíduo (liberalismo) e a comunidade (conservadorismo) dos abusos da ação estatal; aquela prudência de quem conhece e quer preservar os “limites da ação do Estado”, para fazer menção ao clássico de Wilhelm von Humboldt (1767-1835), filósofo admirado por Friedrich Hayek e Lord Acton.

Seja o recorte liberal, de Smith a Mises, seja o viés conservador, de Burke a Aron, o melhor que a direita democrática propõe é, ou deveria ser, muito diferente de tudo o que certa direita, que ascendeu nos estados e no Estado, Brasil e mundo, tem oferecido.

Gostemos ou não de pancadão.

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