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Há alguns dias, Jair Bolsonaro fez pouco caso da nova doença que se espalha pelo mundo todo. No entender dele, que é um desentender pleno de convicção, o coronavírus é “muito mais fantasia... que a grande mídia propaga”.

Até que o fantasioso vírus que a grande mídia propaga lhe beliscou os calcanhares, e ele próprio teve de aparecer fantasiado em sua comunicação semanal, agora para pedir que os manifestantes desistissem dos corajosos protestos a favor, marcados para o dia 15.

Mas nem mesmo o desajeitado zelo presidencial foi o bastante para arrefecer os ânimos conspiratórios dos súditos. O show de horrores não pode parar. Já há quem insinue que o vírus é invenção chinesa para alavancar mercados e controlar a economia; ou ainda, como um certo picareta diplomado tem defendido nas mídias sociais, o coronavírus não mata ninguém e o alarmismo tem inspiração política.

Que a direita governista não se vanglorie de ter o monopólio da desinformação. Nisso, a velha esquerda tem experiência de décadas.

Pela enésima vez alguém afirma, confirma e jura com a mão n’O Capital que a cura para o vírus está prontinha em Cuba. Guilherme Boulos, sempre ele, saiu-se com essa. A medicina castrista descobriu a solução para tudo: da impotência ao câncer, da calvície à pobreza. Só não sabem ainda como tratar as mentiras em que acreditam ou fingem acreditar.

E se existe quem suspeite que o coronavírus foi inventado em laboratório pelos chineses, há quem desconfie que, muito pelo contrário, foram militares norte-americanos que levaram a nova moléstia à China, com intuitos tão malévolos quanto aqueles que supostamente teriam os chineses ao levá-la para o resto do mundo.

Resumo da ópera: para uns a doença sequer existe; para outros existe e acabará conosco; uns culpam os chineses; outros apontam os americanos.

Minha opinião é sem-graça. A situação é grave, mas em breve seremos capazes de conter a pandemia. Culpa da ciência, essa inconveniente estraga-prazeres. A cura passa pelo desconhecimento inicial, os primeiros casos catalogados, o alerta das autoridades, a escalada epidêmica, as mortes que assustam e, enfim, mapeamento, protocolo, controle, desenvolvimento de vacinas e anticorpos naturais. Que desta vez seja como das outras vezes.

Coronavírus muito à parte, o que preocupa mesmo é a falta de bom-senso e o desapreço pela noção de verdade (ou de confiabilidade) que têm infectado as gentes. Eu conheço alguns e temo por sua sanidade.

Antigamente era um pouco mais difícil mentir.

Mentir dava trabalho. Precisava engenho, deliberação, estudo, alguma habilidade. Com o avanço tecnológico, o barateamento dos aparelhos e a acessibilidade dos dispositivos, manipular imagens, vídeos e sons deixou de ser coisa para técnicos ou peritos; qualquer um, com interesse e um pouco de capricho, reinventa a verdade e a distribui sem muita cerimônia. Qualquer priminho vira um Goebbels mirim.

Não que esse tipo de interferência seja inédito; inédita é a escala de sua expansão.

Queremos editar a realidade para que ela caiba em nossas expectativas de realidade. Não aceitamos mais a hipótese contrária, o confronto entre o que desejamos e o que a realidade nos devolve. Não admitimos que a informação de órgãos oficiais contrarie as informações que recebemos do nosso vizinho por meio do aplicativo de mensagem. É uma disposição viciosa de só acreditar naquilo que previamente se encaixa nas expectativas, no que queremos acreditar. Entramos de cabeça na era da mentira em escala industrial e, aparentemente, estamos nos divertindo.

Quando, ainda nos anos 90, Umberto Eco subia o tom e exagerava no temor à proliferação de idiotas e mentirosos na internet, eu franzia o cenho.

Embora fosse – e continue a ser – leitor devoto do semiólogo italiano, incomodava-me o tom catastrofista de um erudito que parecia estar pouco à vontade – por questões geracionais? por vaidade aristocrática? – com a verdadeira revolução nas comunicações e na teoria da informação. Justo ele, que tanto estudava e sabia sobre cultura de massa e suas metástases.

Nada disso. Os anos se passaram e hoje reconheço o que na época devia ter ao menos desconfiado: obviamente, Umberto Eco tinha razão.

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