• Carregando...
Imagem Pixabay
Imagem Pixabay| Foto:

por Gilberto Morbach

Nestes tempos interessantes — em que ministros do Supremo Tribunal Federal são protagonistas em horário nobre na televisão, trending topics no Twitter, alvos de ataques da direita e da esquerda, e até mesmo investigadores em inquérito policial sem objeto —, maiores detalhes parecem até dispensáveis para explicar o objeto do julgamento que segue no plenário da Corte nesta quarta-feira: a (in)constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal e a (im)possibilidade de prisão após decisão em segunda instância, em face do princípio constitucional da presunção de inocência. Nestes tempos interessantes, todos parecem ter uma opinião; várias foram as enquetes e pesquisas perguntando às pessoas se elas são, afinal, a favor ou contra a prisão antes do trânsito em julgado. Muito se falou e especulou sobre o que aconteceria ou deixaria de acontecer com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Acontece que o direito não é – não deve ser – uma questão de opinião. Não se trata de ser a favor ou contra, não se trata de um ex-presidente que, embora ex-presidente, é só um ex-presidente. Em uma democracia liberal que se pretende digna do rótulo, o império da lei é condição mínima de possibilidade. Tudo bem, também é verdade que, em uma democracia desse tipo, você pode ter a opinião que quiser, pode ser a favor ou contra o que quiser; o ponto é que não é isso que importa quando aquilo que se discute é uma questão constitucional. A autoridade é do direito; fora disso, só há tirania (de um, de uma minoria ou de uma maioria; regardless).

A autoridade é do direito; a discussão, em muitos aspectos e por vários momentos, parece gravitar em torno de outras questões. De um lado, muitos argumentos (muitas vezes retóricos, vazios e/ou até falaciosos) sobre o combate à corrupção e sobre a impunidade no Brasil; pedidos pelo respeito à (difusa) “vontade popular”, ao “clamor das ruas”. Pelo outro lado, slogans que pedem a liberdade de Lula; um (suposto) garantismo abstrato que, tendo subitamente descoberto em Gilmar Mendes seu novo símbolo de respeito à ordem legal, parece ser muito mais de ocasião política do que derivado de uma autêntica convicção constitucional impessoal. Em meio a essa bagunça, não é assim tão difícil acabar perdendo de vista aquilo que, afinal, realmente está em jogo – aquela mesma questão que parecia tão óbvia e que parecia dispensar maiores detalhes: a (in)constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal e a (im)possibilidade de prisão após decisão em segunda instância em face do princípio constitucional da presunção de inocência. É isso que está em discussão, é isso que não se pode perder de vista.

Por isso, voltemos. Um passo atrás. O que diz o art. 283 do Código de Processo Penal? O dispositivo diz, e grifo, que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. A (in)constitucionalidade do texto legal é debatida à luz do princípio da presunção de inocência, sacralizado no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Por que, afinal, o art. 283 seria inconstitucional? Esqueça, por um momento, seus juízos de moralidade política e suas preferências em termos de política criminal e segurança pública. Estou certo de que eles podem ser absolutamente legítimos; meu ponto é que, por legítimos que sejam, não devem ter lugar no Supremo Tribunal Federal. Para a declaração de (in)constitucionalidade de texto infraconstitucional, não importa se a maior parte dos países do mundo autoriza a prisão antes do trânsito em julgado; não importa se os recursos em matéria penal têm alto ou baixo índice de êxito para os réus. Para que a prisão após decisão em segunda instância seja legítima, via entendimento do STF, o defensor dessa posição tem a difícil tarefa de demonstrar por que razão o texto constitucional torna obrigatória a execução da pena antes do trânsito em julgado. Daí por que, pessoalmente, não me surpreendo com o fato de que o debate público esteja pautado em quase todo tipo de argumentos, pouquíssimos de natureza jurídica: o texto legal é muito claro. Ainda que se aceite uma argumentação no sentido de que a melhor interpretação constitucional permite a prisão antes do trânsito em julgado, isso não é suficiente; para além de uma questão de interpretação constitucional, existe um dispositivo do CPP que proíbe a execução antecipada.[[1]] É por isso que uma autorização judicial da prisão após segunda instância só poderia ser legítima se fosse capaz de demonstrar que o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal exige esse tipo de prisão.

Resumindo e sendo muito direto: não existe nenhuma razão pela qual o art. 283 do CPP seria inconstitucional. A consequência é lógica: não cabe ao Supremo Tribunal Federal autorizar aquilo que o texto legal proíbe. A prisão após segunda instância é inconstitucional.

Mas não precisa ser. Porque, embora a maioria dos argumentos em favor da prisão nada tenham de jurídicos, lembremos de outro ponto anterior: eles podem ser legítimos. Pessoalmente, penso que são. Só quero dizer que seu lugar não é o STF. A Suprema Corte, afinal, também é só a Suprema Corte. É claro que muitos que defendem tal posição, assim o fazem de má-fé, plenamente conscientes da inconstitucionalidade latente à eventual decisão em favor desse entendimento. Daí não se segue que uma sociedade pluralista, (ainda) inserida em um contexto de liberalismo democrático, não possa jamais discutir os parâmetros legais estabelecidos para a configuração dos critérios para prisão. Só que as coisas têm seu lugar.

Então, a pergunta óbvia: o que resta àqueles que, como eu, acreditam que a melhor política é aquela que autoriza a prisão após uma decisão judicial em segunda instância, mas aceitam a tese de que não cabe ao Supremo Tribunal Federal dizê-lo? A resposta também é óbvia: uma PEC.

Como sempre, porém, há nuances. Atualmente, na Câmara, tramita a PEC 410/2018, que alteraria o texto do art. 5º, LVII, para prever que “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”. Esse não me parece o caminho mais adequado. Essa proposta é bastante frágil, na medida em que o § 4º do art. 60 da Constituição Federal proíbe, entre outras coisas, emendas que venham a abolir “os direitos e garantias individuais”. Cabe discussão se a PEC realmente viola essa exigência constitucional, mas a discussão por si só já demonstra a fragilidade da proposta.

Existe um caminho melhor,[[2]] e este caminho parece-me ter sido iluminado ainda em 2011 pelo então ministro Cezar Peluso. Por que assumir o ônus político de discutir uma PEC muito possivelmente inconstitucional, por que atacar direitos e garantias fundamentais de forma ilegítima, quando se pode buscar uma alternativa ao disfuncional sistema recursal brasileiro? Em “termos simples” – termos do próprio autor da chamada PEC dos Recursos –, “o projeto estabelece o final do processo após duas decisões judiciais”. É mesmo simples: adotada uma linha ao menos parecida com aquela indicada pelo ministro, não haveria qualquer violação à proibição da prisão antes do trânsito em julgado; o trânsito em julgado estaria então configurado depois do julgamento do juiz de primeiro grau e do tribunal competente. Não haveria nenhum tipo de ofensa a direito ou garantia fundamental: os recursos continuariam existindo. A diferença é que uma PEC do tipo alteraria o status jurídico de recurso aos tribunais superiores, que passariam a ter o caráter de ações autônomas. Também é importante dizer que uma nova PEC dos Recursos em nada atingiria o habeas corpus, remédio constitucionalque é de longe o mais utilizado em caso de prisões ilegais.

É legítimo que se discuta a impunidade e a corrupção em um país patrimonialista. É verdade que a maior parte das democracias consolidadas autoriza a prisão já após decisão de segunda instância. É mesmo frustrante que um sistema recursal idealizado como garantia institucional seja desvirtuado de modo a dar razão aos argumentos daqueles que propõem a execução antecipada da pena. O ponto é que, tal como o ordenamento jurídico brasileiro está hoje colocado, esse tipo de prisão é inconstitucional e não cabe ao Supremo Tribunal Federal apropriar-se de argumentos de moralidade política para decidir à margem do que diz a lei. O STF, quando resolveu decidir com base naquilo que supôs ser a vontade geral, colocou-se como refém da opinião pública; já passa da hora de reafirmar a própria autoridade, reafirmando a autoridade do direito.

Ninguém é a favor da corrupção. Discutir, discordar sobre os melhores meios de combate-la, com efetividade e justiça, é absolutamente necessário. A “voz das ruas” só é unívoca quando reivindicada por aqueles que se veem com legitimidade para tal, de modo que é impossível prever o acordo que seria produzido a partir desses desacordos; seja como for, eles existem e têm seu lugar: a arena política. Quem deseja acabar com a impunidade e assim o faz ignorando os padrões de legalidade não está respeitando o império da lei; está reduzindo-o a nada.

De minha parte? A prisão após segunda instância, hoje, é inconstitucional, e a PEC que tramita atualmente não é boa. Discutir o parâmetro para início de cumprimento da pena é legítimo e necessário, e o melhor caminho é uma nova PEC dos Recursos, modificando um sistema recursal disfuncional sem que se flexibilize ou instrumentalize direitos e garantias fundamentais-constitucionais.

[1] Nesse sentido, recomendo com muito entusiasmo o didático (sem perder em rigor) vídeo do Professor Horacio Neiva (@horacioneiva).

[2] E o ponto que agora desenvolvo foi muito bem ilustrado ainda no início de 2018, no JOTA, pelo Professor Rafael Mafei (@RMafei)

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]